sexta-feira, novembro 24, 2006

e, se eu vos contasse? – 28º programa - história da óptica e dos óculos

Contar-vos a história dos óculos, obriga desde logo a contar-vos a história da óptica e do vidro, melhor dizendo, do vidro e da óptica, já que se devem colocar as coisas segundo a sua ordem. Poucas pessoas se terão interrogado algum dia sobre a data e o modo como apareceu o vidro. Quase apostava que a maioria delas, seria capaz de nos dizer que se trata de uma matéria de aparecimento recente. Muito dificilmente alguém poderá avançar com uma data correcta sobre esse aparecimento, mas já se poderá avançar com datas muito recuadas em que se sabe que ele já existia. Por exemplo, no século XV A C., já os egípcios conheciam o vidro havia muito tempo e até o usavam já em formas complementares, como os esmaltes. Os romanos sabe-se que usaram o vidro para iluminação das suas casas de banho. Entre os achados vários da antiguidade, têm aparecido lentes encontradas em Pompeia e Knós e também moedas com inscrições de tal forma microscópicas que teriam que ter sido feitas com o auxílio de poderosas lentes. Se neste último caso elas terão servido como auxiliares da visão, pensa-se hoje que as lentes daquele tempo tinham mais funções sagradas ou para acender o lume, do que auxiliares de visão. Confúcio já falava de um sapateiro que usava uns vidros nos olhos, mas também neste caso se pensa que a razão do seu uso seria ornamental ou mágico. Sabe-se também que gregos, romanos e árabes, indus e chineses usaram lentes como cautérios, no tratamento de feridas. Foi Aristóteles quem pela primeira vez se referiu ao facto de haver uma visão para perto e outra para longe. Foram vários os usos das lentes feitas de vidro. Já disse que as usavam para acender o lume, e curiosamente, Arquimedes diz-se ter inutilizado os navios romanos, queimando-lhe as velas e mastros usando espelhos e a luz do sol. Significa que a reflexão era também já conhecida. Nesse tempo usava-se para a fabricação do vidro, madeira seca e leve junta com cobre e posteriormente a areia. Há quem pense que o primeiro vidro terá aparecido, como produto residual das escórias, após a fundição dos metais. Galeno, conhecido nosso de outros programas, escreveu mais de cem trabalhos sobre os olhos e Ptolomeu escreveu um livro sobre óptica, em que já fala de refracção. Sabe-se que com a queda do Império Romano, quase desapareceu a fabricação do vidro, sendo necessário chegar ao século XI D. C., para se assistir ao renascimento da sua fabricação, sobretudo em Veneza e Murano. Parece que a razão da instalação da fabricação do vidro na ilha de Murano, terá sido devida ou a um evitar os riscos de incêndio que os fornos representariam dentro de Veneza, a um controlo mais apertado dos trabalhadores da fábrica no espaço de uma ilha ou ainda a um especial cuidado em preservar os segredos da fabricação, mostrando que já naquele tempo havia a preocupação da espionagem industrial... Tal como sucedeu na medicina, deve-se aos árabes a preservação dos conhecimentos greco-romanos, muito especialmente na Península Ibérica, por feliz confluência de 3 culturas, cristã, árabe e judaica. Também Averróis e Avicena se preocuparam com a visão e as leis da óptica. No século XI, num livro chinês fala-se pela primeira vez em cataratas e diz-se que a causa tem que ver com as radiações térmicas dos fornos. E vai ser no século XIII que aparecem os antolhos como auxiliares da visão. Deve-se a Roberto Grosseteste e ao seu discípulo Roger Bacon (o conhecido doutor Mirabilis ou Admirabilis), ambos frades franciscanos, também no século XIII, a descrição das lentes convexas e a ajuda que dão à visão dos idosos. Na sua obra «Opus Majus», fala ainda das lentes negativas. Petrarca, na sua «Carta à posteridade», diz que aos 60 anos precisava de lentes para poder ler. Parece não haver dúvidas sobre o facto de o aparecimento dos antolhos ter sucedido no século XIII, mas também parece não haver dúvidas, que só quatro séculos depois se generalizou o seu uso. O aparecimento das lentes planoconvexas, terá sido um acaso, em Murano. Esta demora na sua generalização deve-se ao chamado período da «Conspiração do silêncio», que vai de 1285 a 1589 e se deverá ao facto de se terem estabelecido duas correntes ópticas, uma que representava o saber oficial e outra artesanal, que se combatiam e não se ajudavam, o que levou a haver uma sentença que dizia que a visão se tinha colocado sob a batuta do tacto.. Mas, não são apenas descrições em livros que nos garantem que os óculos apareceram no século XIII. Há um tapete espanhol com o motivo da criação de Eva, em que aparece um velho usando óculos e, muito recentemente foram encontrados uns óculos ou antolhos, em escavações na Alemanha num convento do século XIII. Também a pintura nos mostra representações de óculos, mas a primeira que se conhece e que está na Igreja de São Nicolau, em Treviso e mostra o Cardeal Hugo, usando óculos. E também na Basílica de Santo António de Pádua existe a representação de um Bispo usando antolhos. Mas, há quem diga que já havia óculos no século XII, uma vez que um monge dominicano num dos seus sermões em 1305, teria dito e isso está registado, que os óculos tinham sido inventados 20 anos antes. Os primeiros óculos terão sido feitos em madeira, couro e corno. Sabe-se que eram peças caras e há um registo que fala do seu valor, dizendo que valiam tanto como um magnífico cavalo branco. Devo salientar que no Livro de Ofícios de Veneza do ano 1300, consta a profissão de fabricantes de antolhos. Com o aparecimento da impressão trazida por Gutemberg, alarga-se o número de leitores e também a necessidade de ajuda de visão e consequente fabricação de óculos, levando à criação em Nuremberga do primeiro Grémio dos Fabricantes de Óculos. Com a Imprensa, nasce também o Renascimento. O primeiro retrato de óculos com lentes correctivas negativas é o do Papa Leão X, um Medici, pintado por Rafael. As lentes só deixaram de ser mágicas e misteriosas, depois de Galileu Galilei as tornar ciência, no seu livro «Dioptrias». Kepler discorda de Galileu quanto ao uso das lentes negativas e propõe as positivas e Copérnico considera a retina o orgão receptor, acabando com a ideia antiga de que era o cristalino. Diz-se que foi Nero o primeiro a usar antolhos de sol, mas foi no século XVI e XVII que foram dadas várias ideias sobre eles, como aqueles que defendiam que a cor das lentes devia ser verde, porque era essa a cor da natureza e assim não faria sentido serem amarelos ou vermelhos. No Palácio dos Marqueses de Fronteira, em Benfica, existem azulejos num dos tanques, que representam crianças atrás de corais e de pérolas, protegidas por óculos de mergulho, isto num palácio seiscentista. Foi ainda no século XVI que apareceu um livro sobre a refracção e inteiramente dedicado à óptica. Leuwenhoech descobre o microscópio o século XVII. O astigmatismo é descrito pela primeira vez no século XVIII, por Thomas Young. É também neste século que os óculos começam a ter hastes, primeiro curtas e depois compridas. E aparece o monóculo. E aparece o primeiro vidro com chumbo. No século XIX, Helmholtz apresenta a sua teoria da visão cromática e introduz as lentes cilíndricas no astigmatismo, tendo desenhado o primeiro oftalmómetro. Em 1823, Purkinje, descreve o primeiro oftalmoscópio. Depois da Revolução Francesa assiste-se à transformação dos óculos em verdadeiras jóias e desenvolve-se a fabricação e o uso das lunetas e dos monóculos. Pode dizer-se que o fundador da moderna oftalmologia foi Von Graefe, que em meados do século XIX, curiosamente, publicou um anúncio em todos os jornais de Berlim, em que oferecia os seus serviços gratuitos. No princípio do século XX, em 1905 mais exactamente, Max Planck apresenta a sua teoria quântica que permite no campo da luz, justificar fenómenos como a emissão e a absorção. E tal como Newton dissera muito tempo antes, ficou assente de vez que a luz se propaga corpúsculo a corpúsculo, fotão a fotão, quanta a quanta. Louis de Broglie, reabilita a teoria ondulatória
Não posso deixar de falar sobre os óculos e os portugueses. Fomos um povo que cedo os usou. Mas o período talvez mais significativo tenha coincidido com os descobrimentos portugueses e com a espantação que chineses e japoneses tiveram com a quantidade de portugueses que usavam óculos. Parece ter sido Francisco Xavier o introdutor dos óculos no Japão, embora o grande sucesso pelo seu uso se tenha ficado a dever ao padre Francisco Cabral que quando desembarcou em 1571 em Guifu, levou ao ajuntamento de uma pequena multidão de 4 a 5 mil pessoas para verem o homem dos quatro olhos. Nos biombos Nanbam existentes no Museu de Arte Antiga de Lisboa, em que a chegada dos portugueses ao Japão está registada como que em banda desenhada, são vários os casos de portugueses com óculos. Os mais idosos e respeitáveis usando óculos para a presbiopia, outros com óculos de sol e outros para a miopia, com os seus óculos parecendo fundos de garrafas, chegando primeiro que os proprietários... No século XIX, imperava a luneta e qualquer dandy que se tivesse em boa conta, tinha que usar uma, ou então um monóculo. A maioria destas lunetas ou monóculos nem lentes graduadas tinham e eram só por puro exibicionismo e petulância. Foi uma altura em que se passaram a usar materiais nobres e caros na confecção das armações, bem como nas caixas para os guardar e proteger, algumas delas de grande beleza. Era de tal modo que o jornal Diário de Notícias, no seu Folhetim, publicava um dia um extenso artigo intitulado o «Elogio dos óculos, em prejuízo da luneta, feito por um cegueta que não vê dois palmos adiante do nariz», em que entre outros preciosismos se lia que «ter luneta é o mesmo que deixar os olhos da cara na algibeira do colete que ficou em casa», ou então «estou vendo isto por um óculo. Jamais se disse: por uma luneta!». Em 1828, imprime-se em Lisboa um livro intitulado «Arte de conservar a vista em bom estado até à extrema velhice....Sobre os inconvenientes e perigos que resultam do uso dos óculos ordinários....». E são ordinários aqueles em que os dois vidros são irregulares, com um foco diferente cada um deles, que não tem grossura igual, que não são bem polidos, que as lentes têm manchas e em que a convexidade não é regular..... Eça de Queirós parodia os cuidados a ter com a limpeza das lentes, contando o caso daquele lord inglês que espantado com uma notícia do Times, que lhe parece inaceitável, tira os óculos e os limpa cuidadosamente, por imaginar que leu mal. Ao longo dos tempos, o formato e tamanho dos óculos sofreu grandes alterações, como se pode ver nestas belíssimas imagens. A primeira mulher representada usando óculos encontra-se na tela existente no Museu de Aveiro, «A Princesa Santa Joana toma hábito no Convento de Jesus. Cerimónia do corte dos cabelos», em que uma das freiras que assiste à cerimónia foi pintada com óculos. Também na gravura em madeira, «Retrato de Clara Lopes, cristaleira» esta é representada usando óculos. Para além daqueles que usavam lunetas, monóculos ou mesmo óculos por pura vaidade e adorno, há que ter em conta aqueles que usavam os óculos por necessidade e porque aquilo que faziam exigia uma boa visão, o mais correcta possível, para que não comprometesse uma acertada execução da tarefa que tinham em mãos. É o caso, por exemplo desta magnífica tela do Museu de Arte Antiga de Lisboa que mostra um Bispo, de óculos, executando uma circuncisão a uma criança. Os pintores, na maior parte dos casos, procuraram dar as características dos óculos, através da luz que atravessava as lentes e das imagens que através delas se viam, o que mostra um certo domínio das teorias da luz da reflexão e da refracção. Atente-se neste magnífico exemplo do retrato de São Tomás de Aquino existente no Museu Nacional de Arte Antiga, em que parte de uma lente está fora da mesa, permitindo com a passagem da luz uma ideia da lente que está em causa. Porque são muitos os casos de pintura portuguesa que retrata pessoas com óculos, deixo-os agora com algumas dessas belíssimas obras que penso não precisarem de palavras para que produzam o efeito desejado de se tornarem objectos visuais de grande beleza.

sábado, setembro 23, 2006

um cocktail de mitos ou uma taça cheia de nada

Dizem os dicionários e a memória de quem estudou, que, mito, é a narração dos tempos fabulosos ou heróicos ou qualquer fábula aplicada a uma religião politeísta e, em sentido figurativo, coisa rara ou totalmente fabulosa. Se ao sentido figurativo, juntarmos o sentido familiar, mito pode significar aquilo que apenas existe na imaginação das pessoas crédulas, coisa inacreditável, que não tem realidade, enigma. E, mitismo, significa abuso das explicações míticas. Por sua vez, fábula, significa narração em que é quase impossível discernir o verdadeiro ou o falso, mito, lenda, narrativa imaginária, facto histórico inventado, pessoa ou coisa em que se fala, de que se faz falatório. E, fabular, significa também, inventar, imaginar, mentir.Juntos que estão estes ingredientes culturais, podemos fazer uma papa de significantes, para receita base deste cocktail de mitos, bebida padrão, marca universal de todas as happy hours, de todos os bares, de porta aberta ou fechada, deste tresloucado mundo em que vivemos, hoje, ano 2001, a iniciarmos este século XXI, a que todos queríamos chegar, não se sabe porquê, nem se sabe para quê, mas que podemos desconfiar ser por uma ideação suicida colectiva, um mitismo interiorizado, que nos prometia, com o selo de garantia da fábula escrita por Nostradamus, um fim de mundo apocalíptico, com chuva de estrelas em queda feérica.
Agarremos agora no shaker e comecemos a fabricação, é este o verdadeiro nome, do cocktail de mitos que andamos a servir uns aos outros, que andamos a beber com uma frequência que muitos não desejariam tão grande, com um grau de satisfação e amargura, um sabor agridoce não esperado, mas constante.O shaker está vazio e o primeiro ingrediente que para lá atiramos, é uma mão cheia de cifrões. Ingrediente base, base de tudo, respeitado deus desta nossa triste época. Convém agitar levemente o shaker, para que os cifrões se instalem bem, ocupem por completo a base e não permitam que outro ingrediente passe através deles, senão quando eles o determinarem e lhes abrirem caminho. Para os mais religiosos, e devotos ferrenhos deste novo deus, recomenda-se colocar um pouco mais que uma mão cheia deles. Começa aqui a dificuldade de fabricação deste cocktail. Porque se é verdade que, na maioria dos casos, cada um de nós sabe exactamente a dose que deve por no seu cocktail, é também verdade que quando este se destina a terceiras pessoas, clientes ou amigos e convidados, a dúvida se coloca, e nos perguntamos se a dose deve ou não ser reforçada, deve ou não ser diminuída. Deitamos depois uma medida de hipocrisia, meia medida de sacanice e uma colher média de mentira. Agita-se suavemente, como o agente 007, gostava. Deixa-se descansar um pouco.
Quando os últimos ingredientes acrescentados, deixarem de se ver e for apenas aparente o fundo de cifrões, vamos juntar meia dúzia de palavrões obscenos, tornando-se indispensável usar a palavra fuck, em quantidade, podendo substituir-se pela palavra hooker, sem a mesma garantia de sucesso. Agita-se novamente e, logo de seguida, acrescenta-se meio shaker de palavras mal ditas ou mal escritas, misturadas em molho de gramática desprezada, passando a bebida a ter corpo e a ver-se menos a base de cifrões. Descansa, pouco tempo.
De seguida, juntam-se vários golpes de karaté, de preferência mortais, devendo a introdução no shaker ser acompanhado de urros. O shaker deve então ser agitado violentamente.
É aconselhável introduzir um pouco de difamação, duas doses de heroína, uma dose de corrupção e, se possível, algumas violações ou, em substituição, um pouco de pedofilia.
Dependendo do destinatário, poderá também juntar-se uma AK47 ou um pouco de trinitroglicerina com ajuda de um lança rockets. Há quem junte alguns diamantes. Deixar assentar novamente. Não juntar gelo.
Já na parte final, acrescentar uma dose de squash ou um pouco de jogging ou fitness, em substituição, ou consoante o gosto de cada um. Agitar suavemente.
Para gostos mais refinados, convém juntar um pouco de especulação bolsista ou, se possível, uns pós de inside information.
Agita-se novamente, agora mais fortemente, para garantir total mistura dos componentes e, após isso, verifica-se com toda a atenção a espuma da superfície, para ver se há qualquer impureza. É fundamental retirar qualquer resquício de cultura, qualquer livro, momento de teatro, andamento de sinfonia, versos de poema, frases de um qualquer ensaio, qualquer pitada de honestidade, que tenham sido introduzidos por acaso e contaminação e ter particular atenção para não deixar qualquer porção, por mínima que seja, de princípios morais e regras de conduta. Feita esta limpeza, passa-se à decoração e arte final.
Decora-se com uma cereja de Madona, chocolate com chip de Schoemaker, uma sombrinha chinesa com imagens de Figo ou Zidane, uma framboesa de Cláudia Schiffer, um pouco de compota de Navratilova e polvilha-se depois com notícias da CNN e algumas top models e aplica-se uma palhinha MacDonnald’s. Está pronto a servir.Deve beber-se com cuidado e em pequenos golos, embora haja quem goste de o beber como um shot, de um só trago.Por mim, aconselho que se deite fora, com copo e tudo. Após o que se deve encher o peito de ar, respirar calma e sossegadamente, agarrar num bom livro, escutar uma boa música e viver assim o resto da vida, mesmo que seja sozinho.
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despertar



Num grasnar de gaivotas,
Me fui levantando.
O mar todo, dentro.
Circulando.
Mastro apontado ao céu.
E, tua mão de vento,
Afagando, afagando.


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terça-feira, setembro 19, 2006

ano novo, vida velha

Dizia-se – ano novo, vida nova. Mas, hoje é tempo de vida velha. E que outra coisa podia ser?
Se o tempo passa continuamente, a vida não pode deixar de ser cada vez mais velha. Se as coisas correntes e necessárias à vida de cada um encarecem, o poder de compra é menor, não pode a vida deixar de ser velha, e cada português não pode deixar de pensar que a vida está difícil, velha, como já esteve noutros velhos tempos.
A revolta surda vai-se instalando, aumentando progressivamente, a rua começa a ser palco de manifestações, o descontentamento vai alastrando, os nababos enriquecendo cada vez mais, os negócios escondidos (sujos a maioria) são os únicos que compensam, as falências sucedem-se, o desemprego aumenta a um ritmo nunca visto, o país está à venda, compra quem pode e tem lucro garantido, os sem abrigo aumentam, a prostituição impera como fonte de rendimento de muita gente, a SIDA parece ser uma entidade desconhecida da maioria dos portugueses, e se não desconhecida, pelo menos ignorada, a droga circula quase livremente, a agressividade começa a ser manifestação de quase todos os portugueses, até agora suaves, tal como a marca de cigarros a quem mandaram cortar o apelido.
Mas, o governo diz que tudo está bem e controlado e, por isso, quem somos nós para contestar tal verdade?
A Europa, sarcástica e sobranceira, destina-nos um rosário de defeitos inenarráveis e sorri ao esforço perdido e inútil da barreira dos 3 por cento.
E enquanto isto, largas centenas (milhares?) de sortalhudos senhores, apregoados como respeitáveis e que se pensam respeitados, vivem no melhor dos mundos, onde tudo lhes é permitido e possível, com ganhos e proventos quase a nível de figurarem na «Forbes», com os seus cartões de empresa ou de representação, a desbravarem todos os caminhos, todas as ementas, todas as estrelas Michelin, passando por serem os gourmets que não são. A alguns, o charuto dá-lhes respeitável pose. Os carros topo de gama transpiram conforto e segurança, dão status e este dá-lhes a hipótese de circularem a 200 Km. por hora nas autoestradas, sem receio que a Brigada de Trânsito cometa a indelicadeza e a imprudência de os mandar parar e lhes dizer delicadamente para soprarem no balão. Compromissos de Estado (qual deles? ele há tantos...) justificam a velocidade, dirão eles, e o «nosso» motorista nunca bebe... (mesmo quando apanhado em fins de semana, conduzindo uma viatura oficial, para seu exclusivo proveito, ocasionando acidentes, é considerado culpado, porque o haveria de ser quando transporta suas excelências?)
O tráfico de influências campeia, beneficiando poucos, quase sempre os mesmos, sobrando migalhas para muitos. O privado é o sétimo céu. Só com privado há concorrência e esta, dizem os sábios (sempre os mesmos), é salutar, desenvolvimentista, e traz benefícios a toda a gente, depois da sétima geração de gestores ter adquirido pelo valor restante a sua magnífica e escolhida viatura de uso pessoal.
Antigamente, as siglas eram SARL, agora são SA. Até a responsabilidade, mesmo que limitada, se foi. Sociedade anónima chega, como anónimos são quase sempre os negócios por baixo da mesa. Responsabilidade? Que é isso? E para quê, meus senhores, se os gestores estão lá para zelarem pelo bem de todos? São pessoas competentes, esclarecidas, rodadas, senhores de todas as chaves dos segredos para resolverem as dificuldades, o mau funcionamento dos serviços, os problemas de secretaria e sobretudo de tesouraria. Porquê preocuparmo-nos, então?
Listas de espera, já não há. Os serviços estão equipados como nunca estiveram, certificados de qualidade estão a ser passados por idóneas entidades internacionais, que não se importam de receber em libras, euros ou dólares, atestando que aquele e aqueloutro hospital (penso que todos...), obedecem aos mais modernos e apertados critérios de qualidade. Mas, se estamos no céu, porquê chamarmos-lhe inferno?
Tenho pena do governo. Tão competente, tão coeso, tão disponível, tão preocupado com o bem estar dos portugueses, tão trabalhador, tão esclarecido, tão aberto a negociações, e aparecem uns energúmenos, uns sem classe, uns borrabotas sem diferenciação, nem atributos, a criticar e dizer mal de tão competente núcleo de senhores.
É por isso que a vida não é nova, mas é velha. Já há mais de 40 anos, houve um governo tão bom como este e logo uma minoria de vermelhos, vermelhuscos e afins passavam a vida a dizer mal, a dizer mal, a minar a ordem, o respeito e as instituições. E tanto fizeram, tanto destabilizaram, que conseguiram fazer a cabeça de um punhado de irresponsáveis capitães que um dia resolveram brincar às revoluções e fizeram aquilo que se viu! O fim de um império, o fim do respeito, a mistura de classes, o ensino para todos, um conjunto de erros e procedimentos inclassificáveis, que nunca teriam sido possíveis se os gestores e assessores daquele tempo fossem como deviam ser, quer dizer como os de agora.
Tenhamos tento, senhores. Deixemo-nos de dizer mal e façamos aquilo que devemos fazer – aplaudamos quem merece. Não dissemos já que nunca vivemos tão bem como hoje?Sem inflação, sem desemprego, sem aumentos do custo de vida, com garantia de trabalho, com vencimentos acima da média europeia, com chefias ocupadas por mérito, com todos os lugares ocupados em concursos imparciais, sem numerus clausus, sem corrupção, sem compadrios, sem lobbies, sem cartões partidários, sem crime organizado, em paz, com respeitáveis e esclarecidas chefias, inteiramente devotados ao bem público e colectivo, mas ainda assim liberais? Com um governo exemplar, que consegue dar-nos justiça, educação, saúde, e segurança social exemplares e que ainda por cima fez do Estado uma pessoa de bem, fiável e cumpridora de todos os compromissos, tal como exige ao cidadão comum, só podemos estar satisfeitos. Por isso, deixemo-nos de protestos, que nem sequer têm qualquer sentido. Tenham tento, senhores. Aplaudamos quem merece. E não se esqueçam de votar...
Publicado no n.º 166 da Revista do Auto Clube Médico Português (Janeiro/Março de 2004) e neste blog em NOV05, sem imagens.

segunda-feira, setembro 18, 2006

dar corda ao neurónio

Sentado nesta esplanada, ecologicamente errada, mas esteticamente perfeita, bem colocada sobre as dunas, o mar mesmo ali, ou mesmo aqui, dou-me conta de que estamos no Verão e que estamos de férias. Estamos, simplesmente. No Verão e de férias. Como eu, nesta esplanada. Estamos. Mas, somos?
Verão, férias, descanso. E também fuga à rotina, encontro de amigos, mudança de terra, hábitos, cor da pele e até de política, por vezes.
A cada um seu gosto, seu prazer. Para uns, o sol no lombo, para outros, a noite, banhados pela lua, que de tão bela não queima, que de tão bela, tantas queima. Lua do amor, dos sussurros, costas na areia, olhos apontados ao céu. Lua das voltas lentas, dos corpos rebolando, dos lábios que se encontram, das mãos que tocam, da roupa que se tira, do prazer que vem, dos riscos que se correm, das surpresas por vir, agora voltas, logo revoltas, nove meses passados.
É tempo de sol, de lua, de praia, mares e bares. Tempo de gelados e de shots, shorts e long drinks. De peixe e de mariscos. De lagostas, santolas e percebes, de cerveja, vinho e champagne. É tempo de gordos. É tempo de magras, de umbigos ao léu, de peitos e coxas oferecidas, de voluptuosos véus e sandálias leves, prontas a saltar fora, para início de strip de todas as horas, happys ou não. Tempo de bermudas, biquinis, topelesses e nus, que se faz tarde.
Tempo de cavalgar as ondas na proa dos barcos de amigos, de conhecidos de ocasião, ou simplesmente daqueles que convidam os que querem nas suas camas, no chão dos seus convés.Tempo de sorrisos e esgares, de perfumes, de bronzes e queimaduras. Tempo de passeio nocturno, nas passerelles das ruas, para o exercício diário de ser visto.
Caras ou máscaras? Pessoas ou actores? De uns e de outros se faz o Verão, todos num faz de conta, que só conta, para quem pensa que conta. A conta, sim, ou as contas, são também Verão, são também férias. São também problemas a dividir por doze, tantas as prestações acordadas com aquele tipo cinzento e engravatado que trabalha no Banco. Acerto de contas, que se fará mais tarde. Agora, é Verão, são férias. Depois se pensa nisso. E, se hoje fossemos comer uns percebes? Um dia não são dias, percebes?
Aqui sentado, nesta esplanada de calor, copos, corpos e cheiros de protectores solares, estou farto de olhar o mar, a dezasseis imagens por minuto, pois há sempre um peito de mulher, uma barriga de cerveja, um guarda sol de ocasião, a roubar-me a sua imagem. O mar, quando se olha é para nele nos perdermos, para deixar-nos ir na crista da onda, livres, soltos, navegando ao acaso e não para o ver assim, interceptado e roubado em cada instante por aqueles que dizem também gostar dele. Por isso desisti de o procurar e de deixar meu olhar cavalgá-lo. Por isso, mergulhei fundo nas águas revoltas das páginas do jornal diário, cheias de crimes, desgraças, burlas, corrupção e descrédito de pessoas e instituições. Por isso, salvei meu olhar da tormenta dessas páginas e lhe procurei dar sossego, repousando-o nas páginas brancas do meu caderno de notas, feito das pequenas manchas brancas dos finos e frágeis guardanapos enfiados em caixas plásticas de propaganda, daquelas que existem em todas as mesas de esplanadas.
Mas, pouco repousaram meus olhos, porque sem querer, me pus a dar corda ao neurónio e a escrever estas notas desconexas que até agora alinhei. Critiquei meio mundo e pus-me de lado, como se fosse intocável. Mas, sou? Alguém o é? Mesmo aqueles de quem dizemos que são? Será que alguns de nós se conseguiram realmente safar de serem contaminados por este mundo de infâmia, de preguiça, de falta de valores em que, a contra gosto, nos sentimos mergulhar e viver?
Que autoridade tenho para criticar aqueles que fazem das suas férias, feiras de exibição, compras de favores e vendas de tudo? Se os valores se perderam ou se têm perdido tanto, porque regras nos regemos, quais os fusos horários do relógio moral com que nos devemos orientar ou situar? O norte fica aonde? No cumprimento do dever, no trabalho honrado, no procedimento recto, no respeito da palavra dada ou, pelo contrário, no seu contrário, no sul de todas as satisfações? Ter e respeitar valores, parece ser coisa do passado, coisa de cotas, espartilhados em figurinos antigos e fora de moda.
Custa-me a acreditar que seja assim. E custa-me a acreditar, porque me custa a aceitar. E, se é apenas por isso que me custa a acreditar, é porque já fui contaminado, ou pelo contrário, porque estou ainda reagindo à contaminação? Ténue fronteira entre o reagir e o ceder.
E reagir, para quê? Porventura sou senhor da razão e senhor da verdade? Se a globalização nos empurra para situações ainda há pouco tempo impensáveis e inaceitáveis, quem sou eu ou quem como eu pense, para nos acharmos senhores da verdade? Aonde a verdade? Nos resistentes, como eu, ou na mole imensa daqueles que falam em novos valores que não mostram, mas dizem ter?
Que estranhos pensamentos e que estúpido filosofar, para um local como este em que me encontro, nesta manhã soalheira, em que centenas de pessoas se movimentam com grande à vontade e aparente felicidade, em que risos e gargalhadas são permanentes, se trocam cumprimentos e abraços, em que todos parecem viver no melhor dos mundos. Reforma-te, meu velho. Estás passado.
E, desliga o neurónio, não vá derreter...

Publicado no n.º 156 da Revista do Auto Clube Médico Português (Julho/Setembro de 2001) e neste blog em NOV05, sem imagens.

sábado, setembro 09, 2006

a exclusão social e a violência

De facto, o mundo está perigoso. Quando supomos que já vimos tudo, já assistimos a tudo e já mais nada pode acontecer que nos surpreenda, nos inquiete ou nos assuste, eis que logo algo sucede que nos põe a pensar, que nos obriga à convocação imediata de todo o nosso conhecimento, à consulta rápida dos nossos ficheiros mentais organizados, numa tentativa sincera e esperançada de assim podermos entender, compreender essa última coisa, esse último acontecimento que nos desinquietou.
Não estou a falar do Iraque e do muito que lá acontece todos os dias, nem sequer da primeira baixa de militares portugueses em missões internacionais. Estou apenas a querer referir-me e a tentar perceber o que se tem passado nas noites francesas das últimas semanas.
Tentar perceber, disse bem. Já que, cada vez mais, se mostra difícil chegarmos a certezas, tendo que nos ficar pelas maiores probabilidades, podendo estas, temos que o admitir, corresponderem realmente a certezas. Quero dizer – as certezas de hoje não se podem assumir ou afirmar como tais, mesmo quando chegamos a elas, mas lhes chamamos qualquer outra coisa. O mundo está, de facto, perigoso. Mesmo quando pensamos.
Se há coisas que nos parecem evidentes a todos nós, sobressaindo de entre elas o sentimento de exclusão social, ponto de partida e justificativo para as acções de violência a que assistimos todos os dias, outras há, ou haverá, que sendo menos aparentes, terão o mesmo peso determinante no passar à acção.
Há um outro factor que se impõe analisar que é a relatividade das coisas. Foi voz corrente na boca dos repórteres televisivos portugueses que têm acompanhado as notícias da violência nos subúrbios de Paris, o espanto por eles referido, deles e daqueles que entrevistavam, da aparente falta de razão dos revoltados (já que de revolta se trata) quando se queixam de exclusão e de viverem em guetos, quando é certo que eles vivem em bairros, qualquer deles melhor que o melhor bairro português existente nos subúrbios ou nos dormitórios, como lhe chamamos, melhores até que muitos bairros que albergam outras classes sociais.
Acompanha tudo isto, um cortejo infinito de outras razões, que passam pela falta de emprego, pela falta de motivação, pelo isolamento, pela ausência da ideia de futuro, pelas drogas, pela ausência da célula familiar, pela falta de referências, pela raiva contida, sob pressão, que espreita apenas o apitar da libertação, como a água fervente em panela de pressão. Tudo está aparentemente calmo e basta uma desastrada palavra de um desastrado ministro ambicioso e racista, para a pressão se soltar e a violência surgir.
Como se manifesta essa violência? Contra o ministro de palavra desastrada ou contra não se sabe o quê? Parece que, apenas, contra não se sabe o quê. Os milhares de carros incendiados eram propriedade de quem? As montras partidas a quem pertenciam? Quem eram os seus donos tão odiados? Os tiros disparados ao acaso, sem alvo determinado, até sobre pessoas em cadeira de rodas, foram disparados porquê e contra quem?
Parece poder concluir-se que não havia alvo definido. E razão definida, havia?
Também se percebeu que bastou a primeira noite de violência para esta alastrar a outros bairros, outros subúrbios, outros países, embora os noticiários tudo fizessem para que não se pudessem estabelecer associações ou ligações de umas a outras.
Pode perguntar-se porque é que a violência só se manifesta de noite. A violência, o ódio, são assim tão controláveis por quem o sente, por quem a pratica? Será que eles saem de casa e dizem uns para os outros – vamos a isto; ao amanhecer, tudo em casa …Mas se esta violência, esta revolta, tem ponto de partida na exclusão social, temo que um dia destes nova violência surja, não sei com que forma. Ela não virá de novas etnias, de outro sexo, mas com uma violência de sinal contrário, porque exercida sobre os já de si excluídos.
Refiro-me à exclusão social dos idosos, para não dizer dos velhos, como é de uso dizer-se.
Os primeiros estudos sobre este novo fenómeno (?) que dá pelo nome de «agism» nos países anglosaxónicos e que entre nós parece ter sido adaptado para «idadismo», foram realizados nos E.U.A.. Esses estudos incidem sobre pessoas a partir dos 70 anos de idade e demonstram que é bem real a discriminação de pessoas com base na idade e que sobre elas se emitem opiniões pouco abonatórias. Os idosos são definidos como «incompetentes e menos atractivos, menos inteligentes, menos sexuados e menos produtivos». Menos do que quem? Do que quem os investiga ou dos investigados enquanto jovens?
Os preconceitos e a discriminação são já de tal monta que de pouco serve haver quem, pelo contrário, os considera «sábios, calmos, maduros ou experientes».
Como se depreende de um estudo realizado em Portugal por Sibila Marques, o que prevalece é a ideia e a opinião de que os idosos são «esquecidos, doentes, chatos, incapazes, confusos, lentos e dependentes».
Não será esta discriminação ainda pior, uma vez que ninguém nasce velho e não estão em causa as clássicas fontes de discriminação – a raça e o sexo? Não se trata de saber se é pior ou não, pois qualquer delas é discriminação e como tal condenável e injusta.
Ah, jovens! Nem sabem em que caminhos se estão a meter. O caminho faz-se andando. O que vos esperará a vós depois dos 70 anos? E que violência vos estará reservada qualquer dia, antes de lá chegarem? Não será uma violência cega.
Mas poderá ser sábia, madura, experiente …
Publicado no n.º 173 da Revista do Auto Clube Médico Português (Outubro/Dezembro de 2005) e neste blog em 01 DEZ05, sem imagens.

somos todos uns arantos

Li há dias um trabalho de divulgação, da autoria de um amigo meu (Amândio Madeira Lopes), intitulado «O que é a vida? O que vemos e pensamos dela», que me deixou a pensar (exactamente o que o autor pretendia de quem o lesse), muito especialmente sobre algumas partes dele.Ali se lê, a certa altura, que «A evolução, teoria assente em fortes apoios experimentais – mas teoria, não facto – seria uma característica da vida, no seu tema de ordem a partir da ordem. As reformulações que tem sofrido ultimamente – por via de sequência genómica (DNA) e proteómica (proteínas) em centena e meia de organismos, e sua generalização a outros – conduziram a uma teia filogenética, em vez de árvore. Além de mutação e de duplicação (na evolução vertical, de pais para filhos, com geração de espécies novas), parece ter cabimento pensarmos ainda em variadas transferências génicas horizontais (entre indivíduos de espécies diferentes). Deste modo, todos os seres vivos actualmente conhecidos seriam quimeras. É que, mesmo nos seres arrumados em cada um dos dois domínios considerados menos complexos – arquebactérias e eubactérias – encontraram-se porções significativas de DNA, geralmente consideradas como características do outro domínio. Os eucariontes (animais, plantas, fungos, algas, protozoários) teriam genomas provenientes de até nove bactérias, ou talvez mesmo mais».
E mais à frente «Habituámo-nos a pensar na vida como propriedade exclusiva dos humanos. Com algum esforço, alargámos o conceito a outros animais e, depois, às plantas. Mais dificilmente, fomos levados a considerar os microrganismos: mas é entre eles que se tem encontrado a maior diversidade de vida. Será que também devemos considerar como vida cada uma das diversas fases do ciclo de vida dum organismo? Por exemplo, será mais vivo o basideocarpo dum cogumelo do género Agaricus do que cada um dos basideósporos gerados, por meiose, num basídeo do seu chapéu? Se desse basideósporo se não construísse uma hifa monocariótica que fundindo-se com outra desse uma hifa dicariótica, nunca esta chegaria a sofrer diferenciação e compactação, reconstituindo o basideocarpo. De todas estas fases, qual é o organismo? Talvez o que gostamos de ter no prato: o basideocarpo! …».
Sucedeu que li este artigo no comboio que me trazia de volta ao meu paraíso terráqueo de todos os dias e, enquanto passeava no jardim e meditava sobre o que lera, me encontrei a olhar fixamente para uma estranha planta, um estranho ser vivo, que vive há vários anos no meu jardim, dependurado numa corda que o suspende do ramo de uma romãzeira. Este estranho ser, dá pelo nome de aranto, do latim Aranthus, palavra que nenhum dos dicionários que possuo contempla. A estranheza de tal ser, de tal planta, está em ter raízes aéreas, isto é, ter raízes e não estar ligada a nada. Dela se pode dizer que vive do ar.
E é exactamente daí que ela vive, não do ar, em sentido geral, mas daquilo que por lá existe, melhor dizendo daquelas coisas essenciais à vida, de que o ar está cheio. Falo, evidentemente do oxigénio, do carbono (vindo do dióxido de carbono ou de compostos orgânicos), do azoto, do hidrogénio, de alguns sais minerais. Disto, viverá o aranto. Do ar.
Foi aí que me ocorreu que nas teorias evolutivas actuais, os cientistas terão que se debruçar sobre estes novos fenómenos da vida e reparar que os humanos, pelo menos a maioria dos portugueses, se estão a transformar em arantos, pois à imagem deles, estão, cada vez mais, a viver do ar. E há muito tempo já, grande parte deles, sem viverem do ar, viviam já no ar, de cabeça no ar, como o povo diz.Em todo o lado, se ouve perguntar – mas, de que é que ele vive, afinal? Do ar, penso eu – é a resposta habitual.
E, do mesmo modo, à semelhança dos arantos, os homens (e, neste caso, não só os portugueses) apesar de terem raízes, parece não se servirem delas e encontram-se desligados de tudo aquilo a que as raízes antigamente os ligavam.
Mas, enquanto os arantos, tal como os conhecemos, sempre foram assim, plantas desligadas, vivendo do que cai do céu, os homens só agora iniciam esta mudança radical de comportamento face à vida.
E tal como escreve o meu amigo, temos que ter cuidado com a forma como escrevemos, com as palavras que empregámos para tratar de assuntos de tanta importância. Como ele diz «somos, muitas vezes, tentados a pensar que já sabemos tudo o que há para saber, sendo disto exemplo a expressão corrente – dantes pensava-se … mas sabe-se agora. Em 25 de Abril de 2003, comemorou-se o cinquentenário da formulação da hipótese da hélice dupla para a estrutura do DNA e hoje temos já formuladas hipóteses, apoiadas experimentalmente, para mais de 600 estruturas de DNA. No entanto, a informação observacional relativa ao modelo da estrutura do DNA em hélice dupla está ainda limitada a sequências ricas em citosina e guanina, e a muito poucas sequências (apenas duas) com pares de adenina e timina». É por isto tudo que eu me interrogo, para além do humor crítico que pretendi, sem sucesso, certamente, introduzir neste texto. Será que o nosso conceito de vida vai mudar? O que é a vida, afinal? O que pensamos dela ou o que pensamos nós que seja viver? Que olhar temos para ela? Preferimo-nos com raízes, bem ligados ao passado, à família, à estrutura moral, aos costumes, à verdade, ao bem, à beleza, ao conhecimento ou, pelo contrário, o que pretendemos da vida é que ela seja fácil, ligeira, sem preconceitos nem ditames, livre, guiando-se apenas pelo conceito de liberdade de cada um, desligada de raízes e grilhetas morais?
Não cometerei o erro de que meu amigo fala no seu artigo. Não direi «dantes pensava-se», nem tão pouco «mas sabe-se agora», pois quero crer que sei que o mundo é feito de mudanças e a investigação em geral, apesar dos avanços tecnológicos quase inacreditáveis que possui, está ainda longe de chegar à verdade, de chegar ao fim de tudo, que é forma de dizer, ao princípio de tudo.
Não é verdade que continuamos a descobrir planetas?
Mas, eu queria ter ficado apenas pela tentativa de humor fácil, brincando com o natural viver do ar dos arantos e o viver forçado dos portugueses, que em vez do bitoque com ovo a cavalo, se vê forçado a viver do ar do tempo …, menos aqueles, evidentemente, que continuam teimosamente a poder ter e comer o basideocarpo, no prato!
O que é estranho, nisto tudo, é que as praias estão cheias, os aviões e hoteis overbooking e cresceu exponencialmente a venda de roadsters descapotáveis vendidos como cerejas a preços exorbitantes. Não é estranho?
Será que é para estar mais perto do ar de que os portugueses vivem?Publicado no n.º 172 da Revista do Auto Clube Médico Português (Julho/Setembro de 2005) e neste blog em 05NOV05, sem imgens.

sexta-feira, setembro 08, 2006

a confiança e a esperança, à procura uma da outra, com um narrador à mistura

Há dias, horas, meses ou anos, em que, de um momento para o outro, se modifica de uma forma bem evidente a nossa forma de pensar, toda a acção do pensamento.
Desde o modo de o usar, à vontade de o fazer, sem que para isso haja uma razão aparente.
Hoje sinto-me num desses dias, ou numa hora dessas, no início de um mês ou de um ano desses, ainda o não sei.
Tendo prometido enviar hoje esta crónica, e porque cumpro sempre a minha palavra, sentei-me para lhe dar início, meio e fim. Foi então que reparei na evidência com que iniciei este texto.
Foi com mágoa que verifiquei que não só não tinha qualquer ideia ou tema sobre que escrever, como não tinha vontade de o fazer e muito menos capacidade de dar forma às pobres e poucas palavras que ainda atravessavam o que restava do meu pensamento.
Sinto a cabeça como um campo de trigo acabado de ceifar, em que todo o trigo se foi e só o joio restou.
Como amassar então o pão desta crónica? Que facto ocorreu que justifique dar corda ao neurónio já de si tão cansado, tão pouco oleado e tão desmotivado?
Mesmo que me force a fazer o que neste momento menos quero – pensar – o que é que encontro para além de um Portugal de auto-estima perdida, um Mundo que não sabe bem para onde caminha, uma ONU à beira da desagregação, uma NATO ferida gravemente, uma Europa com mais estrelas e cada vez menos brilho?
De que falar então? Da confiança perdida? Mas não será isso um repisar o pisado, um amassar de uva seca? De que falar, então? Da esperança? Mas quem a tem e onde está ela?
Foi então que ouvi uma voz dentro de mim, dizendo – e porque não falares da confiança e da esperança?
E, sinceramente, achei que servia como tema. À falta de melhor, evidentemente. Que outra coisa podia eu fazer?
Se eu me sinto assim, tão desamparado, tão escandalosamente ausente e vazio, não posso deixar de pensar, mesmo que o faça contra vontade, que a auto-estima individual de cada português está em queda ou em perda e que é exactamente a soma destes milhões de perdas que fazem de Portugal um cadáver adiado.
Fala a confiança (melhor, a perda dela) – Se bem o pensaste, melhor o disseste. Só pode haver confiança enquanto sentimento colectivo. Quando um acredita no outro e o outro no outro e por aí fora, numa sequência de verdade ou presunção dela.
Fala agora a esperança – Mesmo na queda mais profunda, na descida ao maior abismo, na tragédia mais dramática, há direito à esperança.
Fala o cronista – Há direito à esperança? A esperança é um direito?
Responde a esperança – Todos temos o direito de ter esperança, mesmo que tenha que ser cada um de nós a construí-la.
O cronista – Queres dizer, ter fé?
A esperança – Não. Quero dizer ter esperança.
Cronista – Como?
Entra a confiança – Tudo isso é possível, sim. Mas apenas quando eu existo. Quando cada um dos seres tem confiança em alguma coisa, ou se quiseres, tem fé nalguma coisa. Mas para isso, é necessário ter valores. Valores de referência. E eu própria me pergunto – onde estão eles?
Cronista – Era exactamente a isso que eu me referia. Como posso eu ter esperança se os valores se perderam?
A esperança – Nem que seja de uma forma cega, nunca me percas, cronista. Sem mim não vais a nenhum lado. Comigo podes ajudar a refazer o equilíbrio do mundo. Podes ajudar a recuperar os valores, a fazer com que eles voltem a existir, mesmo que sejam diferentes dos que antes conhecias.
Cronista – Pedes-me que seja cego para chegar à luz?
A confiança – Querem de ti utopia, ó pragmático cronista.
A esperança – Não é utopia que peço. É realidade.
Cronista – Não quero utopia, quero verdade. Sonhos, sim. Deixem-me com eles, mas também com a realidade de que se faz meu dia a dia.Mas não vejo sinais, não vejo luz, não vejo terra para assentar meus instáveis pés.Quem me dá sinais de que eu possa vir a ter esperança, de que eu possa voltar a acreditar que a verdade, o bem e a beleza voltarão a ser valores, voltarão a ser reis, cobertos de pérolas de chuva em países onde não chove, como cantavam Aznavour e Brel?
E tal como eles, eu murmuro – por favor não me deixem. Confiança, esperança, vida.
Senti então meus neurónios felizes, dando-se corda, começando a ter esperança, começando a confiar nas suas possibilidades.
Telefonei a amigos. Perguntei. Inquiri. Li jornais, ouvi noticiários, escutei pensadores. Sempre à procura de sinais que me dessem esperança de que a confiança vinha a caminho.
Mas os jornais, os noticiários, as manchetes, os comentários dos analistas, continuavam a apontar não para a esperança, mas para a falta dela.
Deixo-me novamente arrastar por esta onda cheia de tragédias e fim, ou arranjo maneira de alimentar a minha pequeníssima esperança nascente?
Não hesitei. Optei por esta segunda hipótese. Pareceu-me então ouvir novamente a voz da confiança, dizendo-me – querem de ti utopia, ó pragmático cronista!
Será. Será utopia. Mas, vou por aqui. Juntarei à minha pequena esperança, a de todos que eu encontrar que ainda tenham alguma. E hoje um, amanhã dez, qualquer dia mil, tudo faremos para restaurar a confiança perdida.
Não é que escrever isto já me dá confiança?
Sim, tens razão, amigo. Talvez de mais.
Concordo!
Publicado no n.º 164 (Julho/Setembro de 2003) da Revista do Auto Clube Médico Português e neste blog em 01NOV05, sem imagens.

quinta-feira, setembro 07, 2006

alegria e tristeza

Os arautos luminosos e acústicos do Natal, estão aí, anunciando a data futura que aí vem, a tal que se diz «ser todos os dias». Seria natural que hoje escrevesse sobre o Natal ou sobre um outro tema que com ele tivesse a ver. Tudo indicava que assim ia ser, apesar de eu nunca saber sobre o que vou escrever senão quando me sento para o fazer. Não fora um doloroso e desagradável imprevisto e seria esse o tema. Mas, sucedeu que há horas atrás morreu um amigo meu, daqueles de infância, daqueles em que se perde ou se dilui bastante a fronteira entre o amigo e o irmão.Veio-me logo à cabeça um texto que há seis anos atrás escrevi no dia em que morreu o meu antigo professor, vizinho e amigo, António Gedeão. Sobre uma frase de alguém muito importante no mundo da cultura, de quem esqueci o nome, mas não o que escreveu, construí o texto a que chamei «Na morte de um amigo»: o poeta morreu esta manhã, mas eu não sou obrigado a acreditar. A dor dói muito, e dói tanto mais quantas mais razões houver paradesejarmos não a ter. Não no sentido de a sentir, mas no sentido de nãoter para ela, a razão de a sentir. O poeta morreu esta manhã, mas eu não sou obrigado a acreditar. Istoé – eu já senti a dor, ainda agora. E, tão brutal foi, que brutalmente asenti, quando a notícia me atravessou na ponta de sua espada, numgolpe rápido e seco, tão rápido, tão seco, que eu não fui obrigado a acreditar. E, no entanto, o poeta morreu. Esta manhã, dizem. Mas, que sei eu da morte do poeta, se ele, para mim, ainda não morreu e eu não sou obrigado a acreditar naqueles que me dizem que o poeta morreu. Esta manhã, dizem. Aliás, o que é a morte? O que é isso a que chamam morte? A morte sóé, se nós quisermos que ela seja. Com a excepção, bem óbvia, da nossaprópria. E, mesmo nessa, não temos que acreditar, mas apenas aqueles que nos sobreviverem e que se debaterão depois com a dúvida de saberem se nós morremos, ou não. A morte, o que é? O cessar de todas as funções vitais, dizem alguns, ouquase todos. Mas, será realmente isto? Será realmente, só isto? Ou nemisto será? Que sabemos nós da morte, para além da sua representação, do seu cerimonial, do teatro da sua dor? Se pouco sabemos, ou nada sabemos, porque temos que acreditar nela? Da morte, eu só sei da dor que me atravessa quando um amigo morre,ou alguém me diz que um amigo meu morreu, como hoje sucedeu como poeta, que todos insistem em me dizer que morreu esta manhã. E, para mim o poeta não morreu. Não sei da morte. Só sei da dor. E, se é verdade que o poeta morreu, mesmo assim, eu não sou obrigadoa acreditar. E também hoje não sou obrigado a acreditar que este meu amigo de infância morreu. Contudo os meus neurónios começaram a formar e disparar em todos os sentidos as cinco letras de morte. Morte. Morte. E, de repente, deram-se conta que até a morte ou os seus rituais já não são o que eram. Hoje, o ritual da morte tem outro sentido. Já não é feito de velórios a tempo inteiro ou completo, com máscaras de dor, silêncios, orações, choros, histeria. Hoje, a família e os amigos velam o morto por tempo certo, tal como os contractos de emprego. O acompanhamento do morto termina no momento em que a capela é encerrada, à chave, por razões de segurança ... Assaltantes empreendedores também já investem nestes locais de dor e reflexão, fazendo concorrência às agências funerárias ...Se a morte acontece na residência, a maioria dos mortos das cidades, já sai de casa dentro da urna, mas em pé, obedecendo à lei do espaço do ascensor. No funeral, se o morto vai para um cemitério que fique longe, a fila dos acompanhantes é constantemente infiltrada por Fangios e Schoemackers, alguns verdadeiros fãs do tunning, acrescentando com essa sua paixão música techno ou similar ao silêncio do cortejo fúnebre. E se tudo se passar na autoestrada, lá teremos o carro funerário a parar na portagem, para cumprir o dever cívico de pagar a taxa devida a quem explora. Já haverá via verde no Céu? E se o morto for para uma capela privada, pertença de qualquer instituição respeitável, pode suceder, como sucedeu no velório deste meu amigo, que os familiares, amigos e outros acompanhantes tenham de passar pela fieira do controlo securitário, para em troca de um documento pessoal receber um cartão de ingresso de «visitante». Neste caso, o segurança exigia um cartão com fotografia, mas que não fosse o Bilhete de Identidade. Os meus neurónios ainda não conseguiram obter explicação para tal critério ...É, no mínimo, surrealista visualizar aquele quadro de um respeitável morto deitado numa não menos respeitável urna de mogno, rodeada de flores, no centro de uma lindíssima capela do século XVIII, cercado ou envolvido pelo seu pequeno mundo de amigos, todos eles de tabuleta ao peito, exibindo o seu V de visitante. Os amigos não são visitas. São amigos. Será possível explicar a quem parece tão terrivelmente obcecado pelo medo, o controlo e a segurança, que quem vela um amigo só pensa nele? Mas vem aí o Natal. Festa de paz, alegria, concórdia, esperança e união. Tempo de esperança.Festejemos então e acalmemos nossa revolta por este mundo estar como está, girando à mesma velocidade, com as mesmas fases da lua, as mesmas estrelas, é certo, mas com sinais cada vez mais evidentes de que um destes dias haverá um novo bang bang que o fará voltar à harmonia das coisas e das pessoas. É Natal. Tempo de concórdia e de esperança. Comemoremos. Feliz Natal. Bom Ano Novo.
Publicado no n.º 165 da Revista do Auto Clube Médico Português (Outubro/Dezembro de 2003) e neste blog em 05NOV05, sem imagens.

quarta-feira, setembro 06, 2006

desculpem se ainda estou vivo ...

Por uma razão inadiável e muito a contra gosto, entrei hoje numa instituição bancária, para tratar de um assunto suficientemente importante para me obrigar a entrar. São locais que não gosto de frequentar, embora nos últimos tempos alguma coisa tenha melhorado, desde a introdução da figura do gestor de conta, às máquinas automáticas que executam algumas tarefas e até ao acesso ao Banco via Internet que nos permite no conforto dos nossos escritórios resolver algumas operações, obter algumas informações e dar algumas ordens. Mas, há sempre qualquer coisa que foge a esta significativa melhoria da actividade bancária e que um dia nos obriga a visitar as suas instalações, sobretudo, como no meu caso de hoje, quando não se trata do «nosso» banco.A Agência bancária a que hoje tive de ir não pertencia, de facto, ao «meu» Banco, razão porque não tinha o «meu» gestor de conta e me vi obrigado a recorrer ao balcão de atendimento público. Uma funcionária a atender e vários clientes em espera. Pensei – vou primeiro tomar uma bica e volto depois. Repensei – para quê, se a cena se vai repetir? Fiquei. E ainda bem que fiquei pois se o não tivesse feito não tinha seguramente assunto para esta crónica, tal o vazio que ultimamente se instalou na minha cabeça, numa tentativa subconsciente de não pensar, como quem faz que esquece, para não sofrer. Logo a seguir à parte do balcão de atendimento onde eu me estacionei o meu corpo para uma longa espera anunciada, existem duas pequenas secretárias, mal resguardadas por dois biombos, onde numa delas, um antipático, frio e soberbo funcionário bancário fingia exercer o seu papel, atendendo, ou não atendendo, um cliente sentado à sua frente.Este pequeno espaço onde a cena se vai passar, era encimado por uma tabuleta que dizia – Crédito Pessoal. O cliente aparentava uma idade próxima dos 70 anos, era aparentemente calmo, um ar quase domesticado. Apesar disso e talvez porque tenha sentido uma vez mais o aguilhão da injustiça e da discriminação, falava num tom um pouco acima daquele que seria de esperar do seu ar comportado. Foi por isso que eu pude ouvir parte da conversa que entre os dois se estabeleceu, a parte bastante para me permitir agora escrever sobre ela. Da troca de palavras que consegui ouvir, deu para perceber, claramente, que a «política» bancária impõe um limite temporal à concessão de crédito pessoal e impõe que este não possa ser concedido a quem tenha 70 anos ou mais, evidentemente. O cliente argumentava que a necessidade daquele crédito que reclamava era transitória, por muito pouco tempo e que, felizmente, tinha bens materiais suficientes para poder encarar o seu futuro com tranquilidade e ainda uma pensão de reforma que mais de 80% dos portugueses gostariam de ter. E afirmava ainda que podia, tranquilamente vender um dos seus vários apartamentos e realizar com essa venda uma importância quase obscena, absolutamente escandalosa e desajustada ao real valor, dada a especulação imobiliária da zona onde eles se situavam.De nada lhe serviu argumentar. De nada serviu tentar explicar que se estava ali a tentar um crédito pessoal de uma verba verdadeiramente modesta e insignificante, era apenas para não ter que optar por outras soluções mais drásticas, quando se tratava apenas de resolver um pequeno problema monetário ocasional. Toda a sua argumentação embatia contra a rocha firme e gélida do burocrata bancário que desconhecia totalmente o que era ser afável, atencioso, delicado, compreensivo e muito menos conhecia o valor das palavras quando elas podem ser salvadoras e tranquilizadoras de pessoas em crise. O cliente falou ainda na hipótese última de dar um dos seus imóveis como garantia bancária. O estúpido e inapto funcionário, que qualquer patrão atento desligaria rapidamente daquele tipo de trabalho, se não de todo, teve um instantâneo impulso humano e disse que essa solução poderia ser, mas que a sua concretização iria demorar pelo menos dois meses e seria concedido o crédito por escasso tempo, os meses que faltavam ao cliente para completar os 70 anos. Mas o cliente precisava de ajuda imediata e não passados dois meses. E como última esperança invocou ainda a sua condição de cliente antigo daquele banco e a excelente pensão de reforma que mensalmente era ali depositada na sua conta. O rochedo continuou imperturbável, ainda com maior enfado. Nem um sorriso, mas exibindo uma máscara afivelada que lhe dava uma expressão desagradável de soberba, de senhor de reinos inatingíveis por comuns mortais. Senhor do mundo, com todas as chaves na mão. Mas, curiosamente, um senhor do mundo que tinha sido ferido pela inveja, quando o cliente aflito lhe tinha atirado com o valor de um só dos seus apartamentos. Quando tal ouviu, o senhor do mundo baqueou um pouco, pensando que senhor era afinal ele, que nunca viria a ter tal importância?Não interessa o resto da conversa. Interessa apenas que o cliente já não tinha idade para ter direito a um crédito pessoal por parte do «seu» banco de toda a vida e que sendo assim, nem direito tinha, em boa verdade, a estar sentado naquela cadeira, daquele modesto espaço por cima do qual se lia numa tabuleta – crédito pessoal. Foi assim que tendo entrado eu a contra gosto naquela instituição bancária, me vi contra vontade a dar corda aos meus neurónios, subconscientemente parados por algum tempo, em tempo de defesa, para não sofrerem demasiado com os factos que todos os dias sem excepção tinha de encarar e tentar compreender.A última frase que eu ouvira ao aflito e desprotegido cliente e que agora dá título a esta crónica, trouxe-me rapidamente à memória outras situações igualmente indignas da espécie humana e do sentido da vida. Que dizer ou como classificar a política inglesa, da polida e fria Albion, que proíbe, ou não aconselha (o que é o mesmo), que se façam determinadas intervenções cirúrgicas em pessoas de idade por ser o mesmo que «deitar dinheiro à rua»? Que dificulta o acesso dos velhos a drogas dispendiosas, a tratamentos prolongados, até à fisioterapia? Já não se internam idosos com determinadas patologias nos Hospitais, pois estes devem estar reservados para as forças produtivas! Os velhos porque não morrem em casa? Ou nos Lares de Idosos, que é para isso que servem? perguntam muitas esclarecidas mentes, não muito esclarecidas contudo, ou tão tão esclarecidas, que ainda não perceberam que se estão a condenar, por antecipação, a si próprios. Maldito cifrão, maldito dinheiro, maldita economia, malditos senhores poderosos deste pobre mundo, tão tão pobre, que até se deixa governar por vós e à vossa ordem. Por mim, que me sinto jovem e por isso sou realmente jovem, associo-me com revolta ao sentir do aflito cliente desta crónica e grito como ele – desculpem se ainda estou vivo!
Publicado no n.º 163 da Revista do AutoClube Médico Português (Abril/Junho de 2003) e neste blog em 01NOV05.

reflexões sobre a arte de ser chefe

Estava há poucos dias sentado na esplanada de um pequeno café de uma pequena e sossegada cidade do Ribatejo, quando se me deparou um espectáculo, não anunciado, e de plena rotina, que, sem os actores disso terem tido a menor ideia, me puseram os neurónios à volta, dando-se corda.O pequeno café tipo pronto a comer, com duas donas do falso tipo «olá tia, tá boa?» situa-se numa daquelas ruas só para peões.Portanto, e em princípio, é uma rua sossegada, com um movimento continuado, mas ligeiro, de pessoas que compram, de pessoas que olham para aquilo que pretendem comprar ou gostariam de comprar, de pessoas que apenas passam, porque aquele é o caminho que leva aonde querem ir e também daquelas pessoas que, como eu, querem estar um pouco em paz, lendo sossegadamente enquanto saboreiam aqueles 50 centímetros cúbicos de um café quente e aromático, como é aquele que servem no local onde eu estava sentado.Sentado, sossegado e lendo.Foi então que um barulho inusitado, mais ruído que barulho, me tirou dessa paz em que me encontrava e me fez olhar. E vi que, numa marcha lenta, avançava por aquela rua de peões, uma pequena camioneta dos serviços camarários, que, de quando em quando, parava durante escassos minutos.Quando me apercebi disso, reparei que eram três os actores desta súbita alteração na paz que eu vivia, mas só quando definitivamente interromperam a minha leitura, e me obrigaram a olhar continuadamente para a sua performance, tal o ruído que provocavam, é que eu vi exactamente que, dos três actores, dois eram homens acompanhados por uma jovem mulher.Os actores eram estes. A cena era aquela rua de peões, com pavimento de blocos préfabricados, candeeiros modernos de 50 em 50 metros, de ambos os lados, colocados intercaladamente de um e outro lado, bancos corridos, de madeira, apoiada em blocos de cimento, floreiras redondas, do mesmo cimento, com flores viçosas, naturais, em mar de piriscas de cigarros e um ou outro pau de gelado.Por causa deste dispensável leito para flores, convenci-me inicialmente, que a larga boca do gordo tubo que a rapariga segurava nas mãos estava ligado a um forte aspirador que levaria na sua feliz e higiénica sucção, todo aquele lixo que gente selvagem para ali atirara.Mas, não. Afinal não era um aspirador, mas apenas uma mangueira de água.A jovem que segurava a grossa mangueira estava fardada e com colete reflector, apesar do sol que fazia. Aproximava a larga boca da mangueira das floreiras altas e, como por encanto, a água começava a correr para, de repente, acabar, em golpe de mágica. Na floreira seguinte, a cena repetia-se.Foi então que reparei no personagem principal, naquele que decidia quando a água corria ou deixava de correr. Era o mais vigoroso dos três, entre os 30 e os 40 anos, ar gingão, de malandro ribatejano, telemóvel à cinta, sem farda, bem vestido, cigarro entre os dedos da mão esquerda, ar imperturbável e distante.Quando a camioneta parava e a rapariga aproximava a mangueira da floreira, aquela imperturbável criatura, num gesto decidido, único e fundamental, movia a manete da torneira do depósito da água e permitia, com o seu gesto magnânimo de noventa graus, que a água corresse livremente e fosse alimentar as aquecidas flores amestradas. E, do mesmo modo, decidia quando a água já era bastante, sem cuidar de saber o que elas diriam.Sem que fizesse qualquer gesto, pois isso representaria trabalho, a camioneta reiniciava a marcha lenta, instruído que devia estar o motorista para controlar através do retrovisor, as tarefas que se realizavam na retaguarda da camioneta.Começava então a parte fulcral e majestosa da peça teatral. A camioneta avançava lentamente e, atrás dela, seguiam a rapariga, devidamente fardada, segurando nas mãos a mangueira, em posição elevada que não permitisse o seu arrasto pelo chão e o chefe. Este caminhava direito, sem uma palavra para a trabalhadora às suas ordens, em passo compassado, fumando, sempre fumando, telemóvel à cinta, sua ligação permanente ao mundo dos chefes e quejandos.E, vinte metros adiante, nova paragem, nova cena, numa performance non stop.Os meus neurónios não resistiram a tal espectáculo e desataram a dar-se corda para além da conveniência do seu prazo de validade.Apesar do aquecimento ou mesmo sobre aquecimento a que se estavam a entregar, era impossível pararem, pois tinham a certeza de que se tratava de um assunto de interesse nacional e não podiam deixar de dar o seu contributo para a pobre nação sair de tão trágica crise, ali tão bem ilustrada por aqueles três actores desconhecidos.Pobre nação esta que tem de perder a sua identidade nacional, a sua maneira tão própria de ser e actuar, por ter de rapidamente se desfazer dos milhares de chefes que a arrastam para a crise em que está mergulhada.Como pode avançar um país, quando para se fazer a tarefa simples de regar umas flores, são precisas três pessoas, todas empenhadas num acto importantíssimo e vital.Já pensaram no que passará pela cabeça do chefe? A importância que ele se dá, a importância que ele pensa ter, a importância que quer transmitir aos outros? Um senhor, um verdadeiro senhor, um verdadeiro artista português, empossado em rei da água, comandando em pequenos gestos decididos, o início e fim do trabalho da funcionária da mangueira, o início e pausa do trabalho do motorista. Impressiona aquele ar de chefe, de detentor do poder, pequeno realmente, mas enorme naquele microcosmo onde ele é chefe.Delegado sindical não deve ser. Pagam-lhe para passear atrás duma pequena camioneta e dão-lhe uma manete e poderes para decidir quando e como.E, no fim do mês, lá estará o seu vencimento, médio por certo, depositado na sua conta do banco.Dorme sossegado. Não tem pesadelos. Cumpre escrupulosamente a sua gigantesca tarefa de abrir e fechar a manete, nunca mais de noventa graus.Uma brincadeira de país. Um jogo de faz de conta. Jogos de água e fogo de artifício. Pão e circo. Triste País.Publicado no n.º 159 da Revista do Auto Clube Médico Português (Abril/Junho de 2002) e neste blog em 05NOV05.

domingo, setembro 03, 2006

em vinte dias, apenas vinte dias

No curto espaço de vinte dias, vários factos aconteceram no mundo, que, de uma forma ou de outra, o afectaram ou podem vir a afectar – Bush foi reeleito, Arafat morreu, Kofi Anan foi posto em causa, acusado de alguns actos reprováveis, José Manuel Barroso entrou finalmente em funções, o Fêquêpê já se encontra na liderança do campeonato, o BCP com as suas acções eternamente em queda, ofereceu ao mundo televisivo e aos lisboetas em especial, a maior árvore de Natal, iluminada, da Europa, com seus milhões de lâmpadas, quilómetros de tubos e vinte andares de altura, o Orçamento para 2005 foi aprovado pela maioria governante na Assembleia da República Portuguesa, a Cinha e o Alexandre porno, do Quintal dos Ranhosos, fizeram as pazes, cheios de esperança em risonhos futuros a vir, cheios de guerras em paz, vários lisboetas entrevistados nas ruas, disseram não compreender a pergunta esclarecidamente redigida, por esclarecidos cérebros, que constará do Referendo a vir, as SCUT passaram a CCUT (de sem-S, para com-C custo), pelo Largo do Arneiro, em Golegã, passaram mais de um milhão de europeus, bípedes e quadrúpedes, bem espremidos uns contra outros, em passo lento, paciente e interrogativo (porquê, meu Deus, me meti eu nisto), a SIC e a TVI continuam a transmitir aquelas dúzias de novelas diárias, a Dois persiste em cativar espectadores, a mordaça anda por aí, disfarçada ou não, desejosa de silenciar alguns, enquanto e, apesar de tudo isto, em Portugal o sol brilha todos os dias e tenta trazer-nos algum calor.Colin Powell pediu a demissão e Cori (para os amigos) entrou com seu voo de falcão a ocupar o poleiro do pombo demissionário. Wall Street ainda não decidiu bem, se sobe se desce e o Brent vai oscilando lentamente, ora acenando com uma ligeira descida, ora subindo um pouco mais, aproximando-se perigosamente do ponto em que o preço atingido conduza inexoravelmente a uma outra guerra mundial.Os políticos dos cinco continentes (penso que continuam a ser cinco), politicam bem, mal e assim assim, à medida do que sabem e do que é politicamente correcto em cada momento. Mas, sempre felizes, sorridentes, contentinhos consigo mesmos e com os proveitos que, mesmo nos menos afortunados, não são de desprezar. E também nos cinco continentes a legião de aprendizes, os jotas, só pensam na maneira mais rápida de passarem a perna aos cotas. E é vê-los, ainda de cueiros, a mandar vir nas televisões, nos comícios, nos congressos dos partidos, nas assembleias, a desfazerem-se em chuveiros de palavras luminosas, quando falam dos seus confrades e a lançarem vários morteiros quando se referem à concorrência, que me parece melhor palavra que oposição. E é um verdadeiro espectáculo de fogo de artifício. Mas, as lágrimas ficam para nós, os que assistimos todos os dias aos seus espectáculos de falsos conhecimentos, de falsa cultura, de nula experiência, de nula vivência e todavia, todos empertigados, qual periquitos engravatados, quase acreditando no que dizem e só pensando na hora em que alguém desprevenido os convide para secretários de estado ou chefes de gabinete, porque é preciso acenar com estas coisas à juventude, detentora de muitos votos.Também nos cinco continentes, as pessoas se interrogam, aquelas que se interrogam, tentando perceber por que estranha razão aquela pata gigantesca, toda em azul, vermelho e branco, cheia de riscas e estrelas, se sente autorizada, como o mundo sente cada vez mais, a fazer sombra nas nossas cabeças, nas nossas vidas, sufocando o que ainda há para sufocar, vendendo-nos tudo que já se não pode comprar, dando abraços e apertos de mão sem significado real e que apenas contam para a fotografia que obriga os participantes a fazerem aquele sorriso apatetado, antinatural, que todos fazem, balouçando as mãos, como se as apertassem (nisso o inglês é uma língua maravilhosa, pois chama a esse apertar, shake!).O túnel do Marquês continua parado, sem se saber até quando, em homenagem diária ao seu ideólogo, o túnel do Rossio encerrou por um ano, em emergência, antes de qualquer catástrofe, mas podemos estar todos tranquilos (umas dezenas de metros de terra os separa), porque isso nada tem a ver com as escavações do túnel do Marquês, mesmo que as reparações urgentes a fazer sejam exactamente nos pontos de contacto de um com outro. E, se eles dizem que assim é, quem somos nós para afirmar o contrário? O caneiro de Alcântara ameaça criar problemas se o sol nos abandonar e vier a chuva devida a esta estação do ano; esperemos que não haja tragédias, para além daquelas a que assistiremos em directo, em todos os canais, de uns e outros se acusarem mutuamente, tentando demonstrar que se há incúria e culpa, ela não é de agora e é da responsabilidade de outros, no ping pong habitual que já ninguém suporta. Uma parte de Lisboa ficou hoje sem água, por abatimento de terras em Santa Apolónia, o que também nada tem a ver com as obras do metro que ali vai terminar. Sim, claro que da chuva não foi, porque está um sol radioso, mas das obras também não. E mais dois trabalhadores ficaram soterrados, quando faziam escavações. Claro, que estavam executadas todas as medidas devidas à segurança do pessoal. Os bombeiros não viram que as terras estavam escoradas? Então, o amigo não vê essas tábuas que para aí estão espalhadas? Foram os bombeiros que as tiraram, durante as manobras para salvar os soterrados!Entretanto um dos «gatos fedorentos» vai conquistando todo o povo e fazendo da sua fala, a fala de todos, conquistados que estão por aquele magnífico «eles falam, falam, mas eu não os vejo fazer nada, e fico chateado, com certeza que fico chateado».Haja esperança!

Publicado no n.º 169 da Revista do Auto Clube Médico Português (Outubro/Dezembro de 2004) e neste blog em 05NOV05, sem imagens.

sexta-feira, setembro 01, 2006

considerações em volta dos zeros corruptores

Por vezes é fácil dar corda ao neurónio. Pois são tantas, e de tal monta, as coisas que acontecem no dia a dia português e de tal forma acontecem, de tal forma invadem o nosso quotidiano, trazidas de várias e diferentes maneiras, seja pelo vento das palavras dos amigos, seja pelos impulsos electrostáticos do ecrã de televisão, onde estáticos locutores, por vezes eléctricos, debitam as desgraças do mundo, de uma forma tão continuada, que chegamos a pensar que eles vivem naquelas cadeiras, rodeados daqueles cenários, atrás daquelas mesas e que só se levantarão para a toalete vesical e intestinal que a fisiologia impõe, por isso, dizia eu, é fácil nestas condições dar-se corda ao neurónio.Basta deixar pousar essa informação, evitar dar-lhe o tratamento habitual de deixá-la entrar a 10 no ouvido direito para sair a 300 pelo ouvido esquerdo, e em vez disso, enviá-la para o circuito processador de informação, deixá-la correr os caminhos necessários para que seja libertada da canga excedente e seja levada a um grau de depuração tal, que o neurónio que lhe foi atribuído, a possa analisar ao pormenor, pela frente e por de trás, por um lado e pelo outro, por cima e por baixo, partindo do princípio que essa informação depurada terá ponta por onde se lhe pegue.Vezes há e são mais do que as desejadas, em que por mais volta que se lhe dê, nada resulta dessa observação senão o absoluto nada e já não digo o vazio absoluto, porque se sabe hoje que ele está recheado de milhares de coisas, segundo dizem os cientistas mais apegreidides.Bom, tudo isto será muito bonito, mas o que é que hoje me vai dar corda ao neurónio, perguntarão os leitores? E pergunto eu, mais interessado ainda que os leitores, que haja quem lhes dê corda para não ter que lhes por óleo lubrificante.Hoje, para ser franco, e mesmo que o não deseje, pois já estou farto de ouvir falar disso, não posso nem consigo deixar de processar na cadeia neuronal, a palavra, o conceito, a prática, o benefício, o malefício, a vergonha, a desvergonha, da corrupção.Corrupção. Acto ou efeito de corromper, de tornar podre, decompor, apodrecer. Qualquer coisa que corrompe. Que corrompe o que é corruptível ou corruptivo, o que não está bem, em boas condições materiais e funcionais.A ferrugem corrói o ferro porque este é corrosível e não deseja nem ambiciona ser aço ou comportar-se como aço. É ferro que não se protege, não coloca em si o escudo visível ou invisível do óleo que anule os efeitos dos vários 000 que o atacam.Corrupção. Quando humana, dita passiva e activa. «É tão corrupto o corrompido, como o que corrompe». E, mais uma vez temos a corrupção a chegar na forma de 0000, agora não de oxigénio, mas de forma numérica, colocados à esquerda dos cifrões.Ainda mal acabei de escrever a última linha e logo fui assaltado pela dúvida de poder haver, ou não, corrupção na União Europeia, a ser verdade a teoria dos 00000. De facto, se nos Estados Unidos da América ou em Inglaterra, por exemplo, os 0000 aparecem depois dos outros algarismos e estes depois do cifrão e se em Portugal os 0000 se colocavam à esquerda do cifrão para terem valor corruptivo, agora, na União Europeia, não havendo cifrões, onde colocar os 000 corruptores?Não me parece que a eliminação do cifrão pudesse acabar com a corrupção, razão porque se introduziu a vírgula, entre euros e cêntimos, separando o que corrompe e o que se atira fora por serem pinates. Algarismo, 00000000, virgula, 00 e aí está novamente a corrupção. Ponto.Mas, há que separar ainda a corrupção inteligente, da corrupção estúpida, do chico esperto em país de atrasados mentais. Se os gnr’s não tivessem mostrado sinais exteriores de riqueza teriam sido descobertos?Mas, diz-se mais – diz-se que, se os ordenados fossem maiores, não haveria corrupção. Será isto verdade ou é apenas um embuste, um doce engano? Quem põe as mãos no cepo em defesa desta afirmação?Mas, se este princípio não é verdadeiro, significará isto que aceitamos o determinismo, género, é corrupto quem é corrupto, pronto?E, logo a seguir, vem a comparação com as ovelhas ranhosas das famílias. Vários irmãos na mesma casa, os mesmos pais, as mesmas escolas, a mesma educação e entre os vários irmãos lá está a ovelha negra.Será que há condições especiais para ser corrupto? A ambição desmedida, a falta de qualidade e aptidão para ser, lutar e vencer? A inveja, a falta de valores, a subjugação total ao deus cifrão?Mas a ser assim, deveria haver classes sociais, profissões, tendências políticas, visões do mundo, que fossem mais imunes à corrupção activa e passiva, mas o que se vê neste triste mundo, neste cada vez mais desgraçado país, é uma corrupção em crescendo, desenvolvendo-se como cogumelos, envolvendo como um líquen, classes sociais, profissões, políticos, pessoal e quadros responsáveis ou que o deviam ser.O facilitismo, a vida fácil e prazenteira, a inveja do vizinho e de tudo que lhe pertence, casa, carro, dinheiro, até mulher, são fulminantes, que picados, percutidos pelo corruptor activo, vão explodir causando uma erosão da moral, uma destruição dos princípios, num salve-se quem puder.Sorrateiramente, as teorias de mercado foram instituindo aquele pequeno líquen das comissões, normais e quase legais, nas compras, o pagamento de favores de pressão lobística, o pagamento de notícias laudatórias ou difamatórias, consoante o interesse do pagante, a flutuação bolsista inflacionada por notícias que de verdadeiras nada tiveram, o pagamento em acções douradas, o pagamento subterrâneo de outro ordenado através de cartões de empresa, a compra pelo valor restante dos automóveis em leasing, um sem número de pequenos e grandes truques que só conduzem à habituação, como a bebida social, como uma droga pesada.Hoje foi a fotocópia que se vendeu com o fax comprometedor, amanhã será a informação privilegiada, depois de amanhã os passaportes ainda virgens e autênticos que vão servir todos os fins, para a semana um transporte de droga, amanhã noutro local a declaração de IRS mal preenchida, para a semana o prédio que vai a leilão só para aquele que foi informado e para o outro, ou outros, com ele combinados.E onde eram vales, já são montanhas de actos corruptos, começando a não chegar os off-shores deste mundo para tanta vigarice, tanta corrupção.Corrupção. O que corrompe o que é corruptível.E se não fecharem os ouvidos, caros leitores, ouvirão sempre o canto da sereia que, com aquela sua voz maviosa, vos dirá que todo o homem tem um preço.O mundo está perigoso, como diz Vasco Pulido Valente. Tão perigoso que, qualquer dia, todos começarão a pensar qual será o seu justo preço e a dizer que, pensando melhor, é uma verdade, que ninguém aceita valores morais em pagamento seja do que for.É a isto que se chama progresso? Que se chama evolução?Sinto-me cada vez mais um homem de outro tempo.
Publicado no n.º 161 da Revista do Auto Clube Médico Português (Outubro/Dezembro de 2002) e neste blog em 05NOV05, sem imagens.

quinta-feira, agosto 31, 2006

oito reflexões sobre a capicua

São várias as coisas e os factos que nos levam a dar corda ao neurónio que é como quem diz, a pensar sobre as coisas. São inúmeras essas razões. Mas hoje, sinto que a corda está no limite e deve precisar que se mantenha em tensão até ao fim, para poder aguentar o tic tac que aí vem. É que sinto atravessarem-me o pensamento várias coisas determinantes para este brain-storming (fica sempre bem um estrangeirismo em discursos deste tipo), neste caso, individual, já que a escrita é um acto solitário, embora povoado por uma multidão de factos e de gentes. A corda está no limite, a tensão mantida e as regras também. Como se pode fazer um brain-storming com regras? Como pode dizer-se ao cérebro – pensa, mas não penses mais do que 5.000 caracteres, que são o limite que impuseram ao teu texto, ao registo escrito do que pensares nos momentos que se vão seguir? Vou tentar, pois é coisa que todos andamos a fazer há muito tempo. A tentar qualquer coisa, mas sempre a tentar. A tentar escrever, a tentar arranjar emprego, a tentar amar, a tentar ser feliz, a tentar, sempre a tentar. Será assim mais uma vez. E, só no fim poderei dar título a este escrito, depois de saber no que tudo isto dá. Vamos a isto, neurónios meus.Embora estejamos já no dia 21 de Novembro de 2001, data em que rabisco ou passo a papel aquilo que se passa no andar superior do meu corpo, na penthouse (como diriam os americanos) ou na cobertura (como dizem os brasileiros), andar nobre do corpo e da construção civil, verifico que ainda anda por lá, a bailar, uma capicua mágica e trágica, feita por dois uns. 11, onze, é o número, agora definitivamente ligado ao mês de Setembro, fazendo esquecer todas as outras razões que, anteriormente, nos faziam pensar nessa data - aniversários, acontecimentos outros.Agora e para sempre, o 11 de Setembro passará a ser a data que o mundo inteiro fixou, como sendo a data em que o mundo mudou.Primeira reflexão – E, mudou mesmo? Ou apenas acelerou o processo de mudança em curso? Ou tornou apenas mais visível essa mudança? E, mudou para sempre ou só por algum tempo ainda indeterminado?Segunda reflexão – Se mudou, o que mudou? A forma de encarar o futuro? A consciencialização do medo? A noção da nossa pequenez? A inevitabilidade das coisas? O caminhar acelerado para um qualquer abismo? A generalização da desconfiança? Os limites da confiança? O racismo? O fim da democracia? O renascer da ditadura, da mão de ferro?Terceira reflexão – A eterna luta entre o bem e o mal. Onde está um e onde está outro? E, definido o lado de cada um, poderemos dizer que eles estão sempre no lado que lhes compete, ou só às vezes? O bem e o mal têm pátrias ou são universais e, umas vezes estão num lado e logo depois noutro?Quarta reflexão – Se não estivéssemos tão acelerados no processo aparentemente imparável da globalização, teria tido esta dimensão o hediondo atentado de 11 de Setembro? Estariam as companhias aéreas, a indústria do turismo, a economia global a sofrer esses efeitos? Estaria a bolsa numa dança constante entre a vida e o crash? (mais bonito do que morte, concordem). O exemplo recente do salvadorenho Salomon Vides, que viveu 32 anos na selva, fugido de uma guerra que tinha durado apenas quatro dias, servirá de exemplo para contrapor à globalização, ou é apenas um fait-divers? (hoje estou imparável)Quinta reflexão – Entrámos mesmo numa guerra sem fim? Ou já andávamos nela desde que nos conhecemos? Quem se lembra de haver algum ano em que não tenha havido um conflito armado, forma subtil de escrever guerra, em qualquer parte do mundo? Há quantos anos vivemos paredes meias com o terrorismo, venha ele vestido com as roupagens várias com que se pode disfarçar? E, a guerra santa, é só de agora?Sexta reflexão – O efeito que todos estamos a sentir, de uma forma global, universal, afecta mais os estados, as organizações, as famílias ou os indivíduos? Sofrem todos igualmente ou, aqui como em tudo, há sempre uns que são sempre mais qualquer coisa do que outros, para o bem ou para o mal?Sétima reflexão – Chegaremos ao ponto de num casal, um dos seus elementos, ou cada um por sua vez, ou os dois igualmente, verem no outro um possível terrorista? Vamos ter a desconfiança instalada, a dúvida possível e constituída em realidade comum? Do terrorismo mental, ao psicológico, ao verbal e por último ao físico. Será esse o caminho? E, as crianças? Vão ser os novos desalojados? Do coração dos pais? A intifada verbal pode instalar-se, antes de atiradas as pedras, antes das Kalashnikoves dispararem?Oitava e última reflexão – Será que temos de voltar aos tempos e templos antigos dos gregos, deitarmo-nos no «abaton» disponível, deixar que os deuses nos visitem e nos aconselhem e também a quem de nós tratar, se houver quem, e pensando e sonhando tentarmos sobreviver e endireitar este triste e torto mundo? Ou muito simples e pragmaticamente, devemos deixar crescer as barbas, comprar uma burqua para a nossa mulher, desligar ou destruir rádio e televisão, queimar os livros, e deixar de rir e de sonhar?
Responda quem saiba.
Por mim, que sempre fui um outsider (lá estou eu, outra vez), em vez de deixar crescer a barba, cortei o pouco cabelo que tinha, rio, às vezes nem sei de quê, mas rio e sonho o que posso e garanto-vos que tento que seja cada vez mais.
Pesadelos? O que é isso?
Publicado no n.º 157 da Revista do Auto clube Médico Português (Outubro/Dezembro de 2001) e neste blog em 05NOV05, sem imagens.