quinta-feira, agosto 31, 2006

oito reflexões sobre a capicua

São várias as coisas e os factos que nos levam a dar corda ao neurónio que é como quem diz, a pensar sobre as coisas. São inúmeras essas razões. Mas hoje, sinto que a corda está no limite e deve precisar que se mantenha em tensão até ao fim, para poder aguentar o tic tac que aí vem. É que sinto atravessarem-me o pensamento várias coisas determinantes para este brain-storming (fica sempre bem um estrangeirismo em discursos deste tipo), neste caso, individual, já que a escrita é um acto solitário, embora povoado por uma multidão de factos e de gentes. A corda está no limite, a tensão mantida e as regras também. Como se pode fazer um brain-storming com regras? Como pode dizer-se ao cérebro – pensa, mas não penses mais do que 5.000 caracteres, que são o limite que impuseram ao teu texto, ao registo escrito do que pensares nos momentos que se vão seguir? Vou tentar, pois é coisa que todos andamos a fazer há muito tempo. A tentar qualquer coisa, mas sempre a tentar. A tentar escrever, a tentar arranjar emprego, a tentar amar, a tentar ser feliz, a tentar, sempre a tentar. Será assim mais uma vez. E, só no fim poderei dar título a este escrito, depois de saber no que tudo isto dá. Vamos a isto, neurónios meus.Embora estejamos já no dia 21 de Novembro de 2001, data em que rabisco ou passo a papel aquilo que se passa no andar superior do meu corpo, na penthouse (como diriam os americanos) ou na cobertura (como dizem os brasileiros), andar nobre do corpo e da construção civil, verifico que ainda anda por lá, a bailar, uma capicua mágica e trágica, feita por dois uns. 11, onze, é o número, agora definitivamente ligado ao mês de Setembro, fazendo esquecer todas as outras razões que, anteriormente, nos faziam pensar nessa data - aniversários, acontecimentos outros.Agora e para sempre, o 11 de Setembro passará a ser a data que o mundo inteiro fixou, como sendo a data em que o mundo mudou.Primeira reflexão – E, mudou mesmo? Ou apenas acelerou o processo de mudança em curso? Ou tornou apenas mais visível essa mudança? E, mudou para sempre ou só por algum tempo ainda indeterminado?Segunda reflexão – Se mudou, o que mudou? A forma de encarar o futuro? A consciencialização do medo? A noção da nossa pequenez? A inevitabilidade das coisas? O caminhar acelerado para um qualquer abismo? A generalização da desconfiança? Os limites da confiança? O racismo? O fim da democracia? O renascer da ditadura, da mão de ferro?Terceira reflexão – A eterna luta entre o bem e o mal. Onde está um e onde está outro? E, definido o lado de cada um, poderemos dizer que eles estão sempre no lado que lhes compete, ou só às vezes? O bem e o mal têm pátrias ou são universais e, umas vezes estão num lado e logo depois noutro?Quarta reflexão – Se não estivéssemos tão acelerados no processo aparentemente imparável da globalização, teria tido esta dimensão o hediondo atentado de 11 de Setembro? Estariam as companhias aéreas, a indústria do turismo, a economia global a sofrer esses efeitos? Estaria a bolsa numa dança constante entre a vida e o crash? (mais bonito do que morte, concordem). O exemplo recente do salvadorenho Salomon Vides, que viveu 32 anos na selva, fugido de uma guerra que tinha durado apenas quatro dias, servirá de exemplo para contrapor à globalização, ou é apenas um fait-divers? (hoje estou imparável)Quinta reflexão – Entrámos mesmo numa guerra sem fim? Ou já andávamos nela desde que nos conhecemos? Quem se lembra de haver algum ano em que não tenha havido um conflito armado, forma subtil de escrever guerra, em qualquer parte do mundo? Há quantos anos vivemos paredes meias com o terrorismo, venha ele vestido com as roupagens várias com que se pode disfarçar? E, a guerra santa, é só de agora?Sexta reflexão – O efeito que todos estamos a sentir, de uma forma global, universal, afecta mais os estados, as organizações, as famílias ou os indivíduos? Sofrem todos igualmente ou, aqui como em tudo, há sempre uns que são sempre mais qualquer coisa do que outros, para o bem ou para o mal?Sétima reflexão – Chegaremos ao ponto de num casal, um dos seus elementos, ou cada um por sua vez, ou os dois igualmente, verem no outro um possível terrorista? Vamos ter a desconfiança instalada, a dúvida possível e constituída em realidade comum? Do terrorismo mental, ao psicológico, ao verbal e por último ao físico. Será esse o caminho? E, as crianças? Vão ser os novos desalojados? Do coração dos pais? A intifada verbal pode instalar-se, antes de atiradas as pedras, antes das Kalashnikoves dispararem?Oitava e última reflexão – Será que temos de voltar aos tempos e templos antigos dos gregos, deitarmo-nos no «abaton» disponível, deixar que os deuses nos visitem e nos aconselhem e também a quem de nós tratar, se houver quem, e pensando e sonhando tentarmos sobreviver e endireitar este triste e torto mundo? Ou muito simples e pragmaticamente, devemos deixar crescer as barbas, comprar uma burqua para a nossa mulher, desligar ou destruir rádio e televisão, queimar os livros, e deixar de rir e de sonhar?
Responda quem saiba.
Por mim, que sempre fui um outsider (lá estou eu, outra vez), em vez de deixar crescer a barba, cortei o pouco cabelo que tinha, rio, às vezes nem sei de quê, mas rio e sonho o que posso e garanto-vos que tento que seja cada vez mais.
Pesadelos? O que é isso?
Publicado no n.º 157 da Revista do Auto clube Médico Português (Outubro/Dezembro de 2001) e neste blog em 05NOV05, sem imagens.

quarta-feira, agosto 30, 2006

e, se eu vos contasse? – 35º programa – história da medicina tropical

Quando se fala de Medicina Tropical, referimo-nos àquele tipo de doenças que aparecem exclusiva, ou mais frequentemente, em países tropicais, onde o calor e a humidade próprias dos trópicos são condicionantes da saúde das populações que ali habitam, não esquecendo que àqueles dois factores se associam normalmente outros, tanto ou mais importantes do que aqueles, como sejam as condições sociais, a promiscuidade, a poligamia, a falta de higiene e saneamento e a falta de cuidados médicos. Se quisermos restringir o conceito de medicina tropical àquelas doenças que são exclusivas desses países, ficaremos apenas com a doença do sono, a doença de Chagas, o pian, as filaríases, o paludismo e a febre amarela. As primeiras referências de doenças tropicais remontam às datas de 3.000 A. C., com a existência de vermes em múmias do Egipto e de 600 A. C. com a menção, por hindus e persas, dos sintomas da filária de Bancrofti, causadora das elefantíases. Do mesmo modo há referências milenares à triquinose que afectava os porcos, pelo que é de supor que afectaria igualmente os homens. Estas doenças atravessariam os séculos quase completamente desconhecidas e sem avanços no seu diagnóstico e tratamento, até ao século XIX e às descobertas e estudos de Pasteur e de Claude Bernard. O papel dos portugueses no que respeita à Medicina Tropical iniciou-se com Pedro Hispano no século XIII, depois no século XVI, com Amato Lusitano que descreveu as sezões e a elefantíase, Garcia de Orta que descreveu a cólera e as febres, onde estava incluído o paludismo, António Galvão que descreveu a pulga penetrante, Gabriel Soares que fez a «Descrição geográfica da América Portuguesa» e no século XVIII, com Ribeiro Sanches, que no seu livro «Tratado da conservação da saúde dos povos», faz a descrição da cólera e do escorbuto. Os portugueses foram tão sensíveis a esta espécie de doenças que, já em 1542, iniciaram o ensino da medicina na Índia, onde ficou célebre o Colégio de S. Paulo, em Goa, que tinha 3.000 camas e em 1568, criaram da Escola de Naban, em Kioto, no Japão, fundada por Luís de Almeida. E nos meados do século XVI, o rei D. Manuel I, fundou em Tavira, um hospital para «nele se internarem os doentes que viessem nas nossas naus». E no Brasil, com a criação das Misericórdias, fundou-se em 1543, o primeiro hospital na cidade de Todos os Santos, ou Bahia como hoje se chama. Mas foi no final do século XIX e princípio do século XX, que se criaram as condições necessárias para o desenvolvimento científico da Medicina Tropical e se começou a ensinar este ramo da medicina. Em Portugal, o ensino da Medicina Tropical foi iniciado no ano de 1902, com a criação da Escola de Medicina Tropical de Lisboa, por carta de lei, datada de 24 de Abril de 1902, que foi instalada no rés do chão da ala norte da Cordoaria Nacional, funcionando no primeiro andar o chamado Hospital Colonial, depois chamado Hospital do Ultramar e que, em 1930, ainda ali se mantinha.Os estudos assentavam em duas secções, a de Patologia Exótica e a de Higiene Naval. A quem estranhe que uma das secções diga respeito à Higiene Naval, devo dizer-lhes que foram os médicos da Armada, aqueles que mais se preocuparam com esta patologia e mais contactos tinham com ela, devido à sua presença nos navios portugueses em missões de soberania pelo mundo. Foi um médico naval o encarregado de estudar a organização das cadeiras a ministrar, de seu nome Ayres Kopke e era também médico naval o primeiro professor de Higiene Naval, o Dr. D. António de Lancastre. Passado pouco tempo, em 1905, foram criados os chamados «Arquivos da Higiene e Medicina Patológica Exótica» e a actividade de investigação era grande e consubstanciada por acções profiláticas e de erradicação das doenças, como a célebre campanha de erradicação da mosca tsé-tsé e da doença do sono, realizada em 1907, em Angola e de 1911 a 1914, na Ilha do Príncipe e que culminaria com a eliminação desse flagelo. Devo dizer que 42 anos depois, voltou a haver mosca tsé-tsé, na Ilha do Príncipe, tendo sido novamente combatida e erradicada dois anos depois, por acção do então chamado Instituto de Medicina Tropical. Várias outras campanhas de mérito foram sendo desenvolvidas na Guiné, Cabo Verde, Moçambique, para estudo da ancilostomíase, da febre biliosa hemoglobinúrica e outras doenças. Em 12 de Dezembro de 1958, foi inaugurado o edifício em que ainda hoje se encontra o Instituto de Higiene e Medicina Tropical, situado em local privilegiado, com grande envolvente ajardinada, contemplando o rio e o mar que levou os portugueses ao contacto de tais doenças.È um edifício de razoável imponência arquitectónica, bem dimensionado e dispondo de todos os requisitos para o ensino e investigação da Medicina Tropical. Defronte do imponente edifício, foi inaugurada em 8 de Setembro de 1958, uma estátua de Garcia de Orta, considerado o primeiro escritor de Medicina Tropical, com elogio feito pelo Professor Luís de Pina, que, em termos eloquentes, descreveu a obra de Garcia de Orta e não deixou de chamar a atenção para o facto de em pleno século XVI, com uma vida centrada em Portugal, Espanha e Índia, Garcia de Orta conhecer e dominar várias línguas, como o árabe, grego, latim, italiano, francês e espanhol, o que mostra a personalidade distinta que ele era. Em 1943, começaram a publicar-se os «Anais do Instituto de Medicina Tropical», bem como uma informação bibliográfica trimestral, que eram enviados gratuitamente a todas delegações ultramarinas. Em 29 de Maio de 1935, foi alterada a designação de Escola Nacional de Medicina Tropical, passando a chamar-se Instituto de Medicina Tropical. Mas, em 16 de Julho de 1966, com a criação da Direcção Geral de Saúde e da Assistência do Ultramar, foi extinto o Instituto de Medicina Tropical, que passou a designar-se como Escola Nacional de Saúde Pública e Medicina Tropical. Rapidamente se verificou que tinha sido uma má decisão, mas apesar disso, só em 21 de Setembro de 1972, se corrigiu o erro, criando duas instituições separadas – Escola Nacional de Saúde Pública e Instituto de Higiene e Medicina Tropical. Tendo sido a quarta escola a ser fundada na Europa, desempenhou ao longo destes quase cem anos, um papel notável na investigação, profilaxia, tratamento e ensino da Medicina Tropical. Foi graças ao Instituto de Medicina Tropical que centenas de médicos dos quadros do Ultramar, puderam tirar essa especialização, tornando-se assim capazes de fazer frente àquele tipo de patologia, bem como puderam beneficiar também grande parte dos médicos mobilizados para a guerra colonial, para quem as doenças tropicais eram completamente desconhecidas. O Instituto de Medicina Tropical sempre se destacou entre os vários Institutos congéneres de todo o mundo, sendo uma instituição respeitada e ouvida. Hoje, com a perda das antigas colónias e o nascimento dos novos países, poderia pensar-se que o seu papel diminuiu de importância e se esvaziou a sua finalidade. Nada disso sucedeu. O Instituto de Higiene e Medicina Tropical continua a ser útil e a ter mérito, ajudando e ensinando os médicos e técnicos dos novos países, oferecendo serviços de vacinação e aconselhamento, como a notável consulta do viajante, em que são examinados e aconselhados todos aqueles que vão viajar para países tropicais ou do terceiro mundo e desenvolve acção notável no apoio aos cooperantes portugueses a trabalhar nos Palop’s. O Instituto de Medicina Tropical continua a ser uma referência positiva da Medicina Portuguesa.

e, se eu vos contasse? – 34º programa – a história da medicina em pintura

O programa de hoje é diferente dos habituais. Vou contar-vos uma história, como habitualmente, mas de uma forma diferente. Vou falar-vos da história da medicina, do princípio dela até aos finais do século XIX, mas não vou socorrer-me dos elementos que até hoje nos têm servido de suporte, mas sim de uma outra forma de ver a História e que é através da pintura, ou, mais exactamente, através da forma como um pintor respeitado e de grande nome, encontrou para a contar. O que hoje vão ver durante todo o programa são as telas maravilhosas pintadas por Veloso Salgado e que decoram a Sala de Actos da actual Faculdade de Ciências Médicas de Lisboa, de início chamada Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, cuja construção foi iniciada em 1890, datando os painéis de Veloso Salgado de 1906.
O primeiro painel, tem como figura central Esculápio e representa o início da História da Medicina ou a chamada «Medicina religiosa».Esculápio, ou Asclépio segundo os gregos, foi considerado como filho de Apolo, o pai da Medicina. Na sua mão direita detém um bastão, símbolo do poder e a seus pés, o galo, símbolo da vigilância. Na mão esquerda, a serpente, símbolo da prudência e dos poderes ocultos e a seus pés, a taça, representando a terapêutica. No painel da direita, Esculápio aparece acompanhado de suas filhas Jaso e Panaceia, curando um cego, representado por Pluto, deus da riqueza e que por ser cego não distribui bem a riqueza. Esculápio dá-lhe a vista, para ele fazer uma distribuição correcta da riqueza. O painel da direita, mostra doentes agradecidos a Esculápio. À Medicina religiosa, segue-se «O início da Ciência», em que a figura central representa Pitágoras, o primeiro filósofo que também foi médico.Pitágoras encontra-se acompanhado por importantes filósofos, como Tales de Mileto, logo à sua direita, considerado um dos sete sábios da Grécia e para o qual a substância primordial é a água. A seu lado, Anaximandro, que defendia o poder das forças opostas (calor e frio, seco e húmido), Anaximenes, para quem a substância fundamental era o ar e Heráclito que centrava no fogo o poder primordial. Pitágoras acreditava na imortalidade e transmigração da alma, mas, por outro lado, lançou as bases da matemática e da geometria, concluindo que «tudo é número» e neste «tudo» englobava o universo, cuja harmonia dependia dos números. Desta teoria, nasceu a ideia dos «dias críticos», muito usada em medicina. Teve vários seguidores, neste painel representados à nossa direita, como Alcmeon de Crotona e Filolau de Tarento. O grande painel seguinte, representa no seu centro, Hipócrates, o homem que liberta a medicina da magia e da religião e corresponde à «Medicina Científica».Corresponde à época em que a medicina caminha para se transformar em ciência, embora ainda muito primitiva, em si. À direita de Hipócrates estão representados nomes grandes da filosofia, da medicina e da botânica, como Empédocles de Agrigento, defensor da teoria dos quatro elementos (ar, água, terra e fogo) Demócrito e a sua teoria atomista, Platão, o filósofo que fundou a Academia, Aristóteles, o introdutor do método experimental e criador do Liceu e Teofrasto de Éfeso, considerado o primeiro grande botânico da Antiguidade. Ao lado esquerdo de Hipócrates são representados médicos importantes das Escolas de Cós, Cnide e Alexandria, como Erasistrato de Cós, considerado o fundador da fisiologia e Herófilo da escola de Alexandria e que estudou a anatomia do cérebro e criou os termos duodeno, próstata, osso hióide, para sempre. Hipócrates viria a aproveitar a teoria dos quatro elementos de Empédocles e a criar a teoria dos quatro humores, defendendo que o homem é constituído por partes líquidas e partes sólidas, sendo as líquidas o sangue, a fleuma, a bílis amarela e a bílis negra, resultando do equilíbrio destes humores o estado de saúde ou crase. São desta época da medicina científica, os periodeutas, médicos que percorriam a Grécia de ponta a ponta, tratando os doentes e ensinando. Periodeuta, em grego, significa «eu percorro». O painel seguinte é dedicado por Veloso Salgado, à «Medicina na Idade Média» e tem como figura central o ilustre médico que foi Galeno.São várias as figuras ilustres aqui representadas, mas chamo a atenção especial para duas delas, que representam Celso e Dioscórides. Celso ainda hoje é recordado pelos seus quatro sinais, do calor, rumor, tumor e dor, quando se trata de infecção. Dioscórides foi médico dos exércitos de Nero, mas foi como botânico e farmacologista que se notabilizou. Galeno foi a primeira figura incontestada daqueles tempos, tendo escrito mais de 500 livros e estabeleceu uma doutrina para a circulação sanguínea que perdurou até Harvey. Destaco também Paulo de Egina e Alexandre de Talles. O facto de a Idade Média ter sido uma época altamente perturbada e cheia de conflitos, levou a uma certa estagnação da medicina e grave teria sido o futuro da medicina, se não tivessem aparecido aqueles que a preservaram e transmitiram aos vindouros. Refiro-me aos árabes, que Veloso Salgado, resolveu pintar em dois painéis, cada um de seu lado da mesa da presidência desta Sala de Actos e que dedicou à «Medicina Árabe». No painel da esquerda estão representados, as figuras mais importantes da chamada Escola de Córdova ou escola do ocidente, que foram Abulcasis, Avenzoar e Maimónides, não estando representado Averróis, discípulo destes últimos, e que foi muito ilustre. No painel da direita está representada a escola do oriente ou Escola do Cairo e Bagdade. Neste painel sobressai a importante figura de Avicena, considerado o expoente máximo da medicina árabe. Juntamente com Avicena, podem ver-se as figuras de Razés e de Mesué e Msué o Novo, ali colocados para marcarem bem a importância da farmácia na medicina árabe. E com a chegada ao século XVI, Veloso Salgado dedica-lhe o painel seguinte, que chama de «Medicina da Renascença».Destaca-se em posição central e avançada, Harvey, que comprova e descreve correctamente pela primeira vez a circulação sanguínea, no seu livro «Exercitatio Anatomica de Motu Cordis et Sanguinis in Animabilus», já no século XVII. Entre os vários e ilustres médicos representados neste painel, destaco as figuras de Vesálio, que com o seu conhecido livro «De Humani Corporis Fabrica», ilustrado por um aluno de Ticiano, revela de uma forma sistematizada e moderna a anatomia do corpo humano, Malpighi, Fabrício d’Aquapendente, Paracelso, nome que adoptou e que gostava de ser assim chamado, por se considerar, e a palavra significar, «acima de Celso» e Ambroise Paré, o pai da cirurgia e de quem várias vezes falei ao longo dos meus programas. Lembro apenas os nomes de Eustáquio e Falópio que deixaram para sempre os seus nomes ligados à anatomia e chamo também a atenção para Leeuwenhoek, que ao usar correntemente o microscópio, contribuiu fortemente para que nos séculos seguintes, a medicina pudesse dar importantes passos em frente. Passos e figuras essas que Veloso Salgado pintou no painel chamado «A Medicina dos séculos XVIII e XIX».É este o painel mais preenchido e que contém mais figuras ilustres, que ajudaram a escrever as páginas notáveis da História da Medicina. Num programa deste tipo, de tempo marcado e curto, torna-se impossível dar o realce merecido a todos eles e muito menos dizer sobre cada um deles, um centésimo do que eles mereciam que fosse dito. Cabe-me o ingrato papel de decidir o que dizer e sobre quem, de modo a que pelo menos consiga transmitir aos telespectadores, um pouco do que foi esta época gloriosa da história da medicina. Começarei por falar-vos em primeiro lugar da figura central do painel que, seguramente, será a figura mais conhecida de todos vós, até porque o seu nome está intimamente ligado a um processo cuja referência é visível no dia a dia das donas de casa, quando compram certos produtos, nomeadamente leite. Refiro-me a Pasteur e aos produtos pasteurizados. Este ilustre homem fundou a bacteriologia, descobriu bactérias e fungos, descobriu as vacinas, entre muitas outras coisas, de que não valerá já a pena falar. Dos outros 18 que aqui estão representados, chamo especial atenção para Koch, o homem que descobriu o bacilo da tuberculose, Charcot, o fundador da neurologia e da neuropsiquiatria, Claude Bernard, o introdutor do método experimental na fisiologia, o cirurgião Dominique Larrey, que já vos referi no programa que fiz sobre as amputações e as próteses, Laenec, o descobridor do estetoscópio e Billroth, cirurgião ilustre e de quem ainda hoje se executam algumas técnicas cirúrgicas por si criadas e descritas. Nomeio ainda Lister que lançou a ideia de antissépsia e Jenner a quem se ficou a dever a vacina contra a varíola. É com este painel que termina a descrição pictórica da História da Medicina ao longo dos tempos, sendo conveniente que não se esqueçam que eu disse, no início do programa, que as pinturas de Veloso Salgado estão datadas de 1906, e não poderiam assim ter figuras do século XX. Há contudo um outro painel e para nós de grande importância e que foi intitulado de «Os Portugueses».Parece ter sido o painel que gerou mais controvérsia, pois havia quem defendesse que todas as pinturas da Sala de Actos deviam representar médicos portugueses, mas Veloso Salgado terá vencido e pintou os portugueses apenas num painel, por cima da porta que dá acesso à Sala de Actos. A figura central é Garcia de Orta, que dá a sua direita a figuras como Manuel Constâncio, assim chamado pela sua constância, a sua persistência em atingir os objectivos que se propunha. Nascido pobre, começou como barbeiro, mas conseguiu estudar e ser sangrador e depois disso cirurgião e passados seis anos era já o regente de Anatomia, acabando por ser cirurgião da família real, tendo aproveitado essa posição para conseguir obter da rainha bolsas para enviar discípulos seus a aprender em Londres e Edimburgo. Foi reconhecido como o restaurador da cirurgia em Portugal. Ribeiro Sanches, que perseguido pela Inquisição saiu de Portugal e correu toda a Europa, tendo sido médico de Catarina II da Rússia e primeiro médico dos Exércitos Imperiais. Escreveu vários livros, de que destaco o importante contributo que deu para a saúde em Portugal, com o seu livro «Método prático para aprender e estudar a Medicina». Manuel Bento de Sousa, foi cirurgião do Hospital de S. José e Lente de Cirurgia e Anatomia, tendo desenvolvido intensa actividade paralela, como escritor, cronista e interventor social e político de nomeada. Câmara Pestana, foi professor de Higiene, Medicina Legal e Anatomia Patológica da Escola de Lisboa, tendo sido o chamado Instituto Bacteriológico de Lisboa criado propositadamente para ele poder trabalhar e dar seguimento aos seus trabalhos. Morreu na cidade do Porto, onde combatia uma epidemia de peste bubónica, infectou-se e disso morreu. Sousa Martins, foi o médico de mais nomeada do seu tempo e dele já falei em programa que lhe foi dedicado. Do lado esquerdo de Garcia de Orta, estão representados Amato Lusitano, de quem já falei conjuntamente com Garcia de Orta, no programa sobre Médicos judeus e a Inquisição e foi o médico português mais destacado do século XVI. Zacuto Lusitano, outro médico perseguido pela Inquisição e que também fugiu de Portugal e é considerado o médico português mais importante e destacado do século XVII. Ambrósio Nunes, foi autor de um «Tratado sobre a Peste», em que responsabilizava como causadores da doença, fenómenos naturais, como o terramoto ou a passagem de um cometa por Lisboa, era apesar disso, professor de medicina na Universidade de Coimbra e depois na de Salamanca, o que mostra bem o grau de atraso que ainda se vivia naqueles tempos. Lourenço da Luz, cirurgião de renome, foi Enfermeiro Mor do Hospital de S. José e foi Presidente da Câmara de Lisboa, deputado, par do Reino e Conselheiro de Estado e espantem-se director do Banco de Portugal. Os tempos eram outros e a vida calma que se vivia permitia estes luxos de dupla actividade. Ser bom cirurgião, ser político e financeiro. Por fim, António Almeida., cirurgião ilustre, considerado o renovador da técnica cirúrgica e que foi um dos beneficiados com as bolsas que Manuel Constâncio tinha conseguido.

Estas imagens foram retiradas do trabalho «Viagem pela Medicina com as pinturas de Veloso Salgado», de José Luís Dória.

domingo, agosto 27, 2006

e, se eu vos contasse? – 31º programa – história das amputações e das próteses

As origens da cirurgia perdem-se na obscuridade. Sempre que se fala nisso, vêm à mente as várias descobertas do Mediterrâneo ao Peru, de crânios trepanados, prova segura que nos tempos mais longínquos, já se praticava esse tipo de cirurgia, sobretudo nas fracturas cranianas com afundamento. Já num destes programas fiz referência ao facto de se usar para fazer estas trepanações, pedras polidas e pontiagudas, muito antes de se usarem instrumentos de bronze ou ferro. Mas hoje o que eu vos quero contar é a história das amputações e das próteses e, por ser essa a minha ideia e intenção, teremos que avançar muito no tempo, pois existem poucos registos de elas se fazerem nos tempos mais recuados. As primeiras referências que aparecem relativamente às amputações corresponde ao início do século XIV, na altura em que aparecem pela primeira vez as armas de fogo e a pólvora. Pensa-se que o uso de armas de fogo, em acções militares, ocorreu em 1338 e muito especialmente na batalha de Crécy, em 26 de Agosto de 1346, quando Eduardo III de Inglaterra combateu Filipe VI de França. Contudo a primeira representação gráfica de uma amputação está reproduzida no livro «Fledtbuch der Wundartzney», do cirurgião militar Hans von Gerssdorf, mais conhecido por João Vesgo, por ser estrábico e que foi editado em Estrasburgo em 1517. Embora possa fugir um pouco da história que hoje vos conto, penso ser obrigatório dizer-vos que as feridas causadas por armas de fogo, levantaram inicialmente grandes problemas aos cirurgiões, porque estes entendiam que os projécteis disparados pelas armas de fogo, causavam três efeitos distintos no corpo do ferido e que cada um deles necessitava de tratamento próprio. Diziam eles que o projéctil provocava uma ferida contusa, o efeito da explosão provocava uma queimadura e a pólvora provocava envenenamento. Este tipo de pensamento e convencimento arrastou-se muito tempo até que um cirurgião mais atento e inventivo, resolveu investigar e verificar que nada se passava assim. Refiro-me a Bartolomeo Maggi que resolveu disparar balas de arcabuzes sobre a pólvora, o enxofre, a estopa e os fatos dos soldados e verificou que a bala não fazia arder nenhum destes elementos, o que facilmente provava que as balas não provocavam queimaduras. Verificou também que a ingestão de pólvora ou dos seus componentes não provocava qualquer envenenamento, acabando de vez com a ideia antiga de que a pólvora tinha esse efeito. Bartolomeo Maggi era cirurgião militar e professor da Universidade de Bolonha. Embora em vários escritos hipocráticos se faça referência a amputações devidas a gangrenas por isquémia, a verdade é que só com o aparecimento das armas de fogo é que as amputações se tornaram mais frequentes, especialmente as amputações acima do joelho, até aí inexistentes. Era sobretudo na guerra que as amputações se tornavam necessárias, pelo que se pensa que a guerra, as feridas e a cirurgia estão intimamente ligadas. Um cirurgião muito respeitado do nosso tempo, Bilroth, escreveu num livro seu sobre história da medicina que Hieronymus Brunschwig terá sido o primeiro a realizar uma amputação acima do joelho, em 1497. A partir do momento em que se começaram a fazer amputações correntemente, levantaram-se várias opiniões e várias correntes sobre os procedimentos devidos e correctos, para obter melhores resultados, no que respeitava a evitar dores aos doentes e conseguir uma boa sobrevida, principalmente. A primeira questão que se pôs e se arrastou longo tampo, diria longos séculos, foi a escolha do local para a amputação. Inicialmente, todos faziam as amputações a nível dos tecidos macerados ou necrosados e gangrenados, porque diziam que o doente tinha menos dor se a amputação fosse feita a esse nível e porque estavam convencidos que se evitava dessa maneira a infecção. É evidente que acabou por se entender, como hoje o entendemos, que o local escolhido para a amputação deve permitir fazer a incisão em tecido são e com absoluta garantia de que os bordos da pele estão vivos. Outro dos pontos muito controversos, era o problema da hemorragia dos vasos seccionados. Durante a maior parte do tempo, o processo usado assentava na acção do fogo e do calor, utilizando ferros postos em brasa, os chamados cautérios, para provocarem a hemostase e complementarmente evitarem a infecção e a putrefacção. Existiam cautérios dos mais diversos feitios e tamanhos e aplicações. Havia ainda alguns que usavam facas em brasa para obterem o efeito dos cautérios ao mesmo tempo que cortavam os tecidos. A ideia era engenhosa e ainda hoje se aplica esse princípio através do chamado bisturi eléctrico, que nas últimas décadas sofreu muitas beneficiações e modificações.No século XVI, apareceu esse grande mestre da Cirurgia, para sempre o pai da Cirurgia e sobretudo da Cirurgia Militar, o grande Ambroise Paré, que chamou a atenção para o facto que os cautérios não correspondiam ao efeito pretendido e mostrou que a melhor forma de resolver o problema da hemorragia era laqueando os vasos um a um, assim conseguindo um efeito total e de acordo com o pretendido. Paré não conseguiu generalizar este seu avançado e lógico método, porque a sua aplicação implicava o uso de mais ajudantes e de mais tempo de operação, já que segundo Paré havia necessidade de fazer 53 laqueações e nunca menos de 25, se dispensássemos os vasos de menor calibre, na amputação pelo terço inferior da coxa.Havia cirurgiões que para usarem este método diziam que precisavam de 6 ajudantes, sendo três para segurarem o doente... Foi igualmente Ambroise Paré quem modificou o método tradicional de resolver o problema da infecção e realizar, sem ter essa ideia cientificamente pensada, aquilo que hoje chamamos o desbridamento das feridas, isto é a eliminação de todos os tecidos necrosados. Usava-se habitualmente o azeite a ferver, que de certo modo funcionava também como os cautérios, mas chegando a pontos onde este não conseguia chegar, porque o azeite era líquido. Ora uma noite, na frente de combate, ainda Ambroise Paré era cirurgião do marechal Montjean, a meio do tratamento dos feridos, acabou-se o azeite. Então Paré resolveu aplicar outro líquido, uma mistura de gema de ovo, mel rosado e terebentina e, no dia seguinte, pode verificar que aqueles que tinha tratado com esta nova mistura, tinham menos dores do que os tratados ainda com o azeite e os tecidos e as feridas tinham melhor aspecto. Isto representou um grande avanço no tratamento dos feridos. É obrigatório que vos diga que durante a Guerra Civil americana, em 1864, se voltou a usar a terebentina na frente de combate e em 1966, quer dizer, há escassos 34 anos, Waid Rogers, escreveu um artigo em que dizia que a terebentina numa concentração de 0,002 cc por litro, tinha efeito bacteriostático sobre o estafilococus aureus e sobre a escherichia coli. Kock, recomendava que os cirurgiões e ajudantes usassem a terebentina na desinfecção das mãos. Outro ponto controverso era o encerramento ou não da ferida operatória. Feita a amputação deviam os dois retalhos ser ou não encerrados, suturados? Havia, como nos outros pontos, duas correntes principais. A daqueles que defendiam o encerramento imediato da ferida operatória e a daqueles que, pelo contrário, pensavam que era melhor deixar cicatrizar por segunda intenção, para evitar a infecção e garantir a sobrevida. É evidente que neste caso ambas as correntes podiam ter razão, se isso implicasse um conhecimento profundo daquilo que preconizavam, o que, de modo nenhum, era o caso. Hoje, é procedimento corrente não encerrar em todos os casos infectados ou muito contaminados e encerrar imediatamente em cirurgia limpa e asséptica. Mas as controvérsias não ficavam por estes casos que apontei. Diferiam uns dos outros quanto ao tamanho dos retalhos, quanto a meterem o coto numa bexiga de porco ou não, quanto a usarem apenas um garrote, ou dois ou três. Em seccionar ou não entre os dois garrotes mais inferiores, em amputar imediatamente após terem sido feridos ou aparecido a gangrena ou esperar para ver, como Hipócrates, e diferir a operação para muito mais tarde, dias ou meses. Também se discutia se as facas de amputação deviam ser curvas ou rectas, compridas ou curtas. Sobre nada havia ideias claras. E… não havia anestesia. A única era a esponja soporífera e com Ambroise Paré, a anestesia local obtida pela compressão dos nervos acima do local de corte ou com Larrey o uso do frio. Por isso, as amputações representavam autênticas competições olímpicas de rapidez cirúrgica. Tinha-se como correcto que uma amputação deveria demorar entre 7 segundos e três minutos. Ouviram bem. Sete segundos... O muito conhecido cirurgião Dominique Larrey, que trabalhou em várias frentes de combate acompanhando os exércitos napoleónicos, desde a Rússia a Portugal, e considerado o maior especialista da época em amputações, diz nas suas memórias que durante a campanha da Rússia, na batalha de Borodino, tinha feito nas primeiras 24 horas, duzentas amputações, o que equivale a uma amputação por cada sete minutos, com uma taxa de sucesso de 75%.Larrey era um grande defensor da amputação imediata, o que levou a que muitos o considerassem demasiado intervencionista, um maníaco das operações! Larrey defendia que sempre que a extremidade do membro se encontrava muito danificada, a amputação imediata podia salvar a vida do doente, enquanto a cirurgia diferida se mostrava perigosa e punha a vida do doente em perigo. A falta de anestesia tornava a rapidez com que a amputação se fazia, numa meta a atingir por qualquer cirurgião, pelo que, naturalmente, se pensava que grande cirurgião era o que conseguia amputar em menos tempo. O grande cirurgião Jacques Lisfranc que dissecou mil cadáveres no Hospital de la Pitié, de Paris, durante um ano, para dar as suas aulas aos alunos de medicina, chegou a fazer uma amputação da coxa em 6 segundos...Benjamin Bell, de Edimburgo, conseguia fazer a amputação, até ao osso, também em seis segundos. O tempo médio de Larrey era de três minutos e nas desarticulações do ombro, em que ele era considerado verdadeiro mestre, diz ter feito uma em 17 segundos. Fergusson, dizia que um cirurgião competente deveria estar habilitado a fazer uma amputação entre 30 segundos e 3 minutos. James Wood, de Nova Iorque, amputava pela coxa em 9 segundos. O professor de fisiologia Frederick Scott, contava, como sendo verídico, que tinha assistido, enquanto ainda estudante, a uma amputação pelo 1/3 superior da coxa, em que o cirurgião com a rapidez, tinha cortado dois dedos a um ajudante e os dois testículos do doente... Não se sabe se esta história é verdadeira, mas sabe-se que foi certo que o cirurgião Valentine Mott, em 1860, ao fazer uma amputação num cadáver perante os alunos, cortou um dos seus dedos, que terá metido na boca, sugado e depois o terá envolvido num lenço e continuou a amputação como se nada se tivesse passado.Conta-se que um dos alunos terá metido o dedo cortado do Dr. Mott dentro de um frasco com alcoól, para o conservar como prova desta história. È difícil termos uma ideia da mortalidade operatória, sobretudo até à quarta década do século XIX, uma vez que antes disso, são raros os escritos médicos que lhe fazem referência explícita. A partir daquela data começam a aparecer as taxas de mortalidade que variam entre 8 e 48%. Paré referia algumas vezes a mortalidade, mas nunca o fez considerando a totalidade dos casos. É evidente que a taxa tinha forçosamente de variar consoante os casos que levavam à amputação e consoante os locais onde ela se fazia, especialmente no campo de batalha ou no hospital. Ambroise Paré, pai da cirurgia militar, escreveu vários livros em que trata pormenorizadamente destes factos. Por outro lado, era um homem com grande sentido estético e com grande habilidade para o desenho, o que levou a aplicar esta sua habilidade nata na sua paixão e profissão, a cirurgia. Por essa razão, o material cirúrgico de que Paré se servia era, para além de eficaz sob o ponto se vista cirúrgico, verdadeiro objecto de arte e de grande beleza. Os punhos das suas facas de amputação, por exemplo, são uma boa materialização daquilo que acabei de dizer. Talvez esta habilidade, mas fundamentalmente a sua inata qualidade de investigador e a sua desmesurada entrega aos doentes e à cirurgia, o tenha levado a inventar uma quantidade grande de próteses metálicas para substituírem os membros amputados.A esta distância não se consegue imaginar como seria possível aos doentes carregar próteses tão pesadas como aquelas parecem ser. Hoje, que em cada instante se luta por conseguir próteses mais leves e mais funcionais, à custa da descoberta de novos materiais, que ofereçam resistência e leveza ao mesmo tempo, custa admitir que tivesse havido alguém capaz de carregar tal peso permanentemente.E para além do peso, coloca-se a pergunta de como reagiria o coto ao contacto com aquelas superfícies metálicas, mesmo que possivelmente revestidas interiormente a couro. Hoje, que os cirurgiões têm o especial cuidado de conseguir cotos bem almofadados e em que a cicatriz operatória não se encontra na zona de contacto ou de pressão, não se imagina quão grande seria o sofrimento daqueles doentes amputados com problemas permanentes a nível do coto. Não há informação sobre estes problemas o que só prova que isso era matéria secundária. Naquele tempo o importante deveria resumir-se ao possível – amputar rápido, conseguir que o doente não morresse e depois arranjar-lhe uma prótese, fosse ela como fosse.

e, se eu vos contasse? – 33º programa – história de um médico e do seu culto

Hoje vou fazer um pequeno desvio de direcção na linha de conduta destes programas que tenho vindo a contar-vos ao longo destes já longos meses. Se até aqui só vos contei histórias ligadas a hospitais, escolas, doenças ou políticas, hoje vou contar-vos a história de uma vida, mais o que ficou para além dela.
Dirão que já vos falei de alguns médicos e não será esta a primeira vez que o vou fazer. Falei, sim, mas de outra maneira. Se, por exemplo, vos falei de Amatus Lusitanus e de Garcia de Orta, foi porque o programa tratava da história de médicos judeus e da Inquisição e não deles em especial. Hoje o que vos vou contar é apenas a história de um médico e só dele. Vou falar-vos de Sousa Martins, mais exactamente de José Tomás de Sousa Martins, nascido em Alhandra, a 7 de Março de 1843 e que viria a morrer 54 anos depois, a 18 de Agosto de 1897, data em que foi sepultado no cemitério da sua terra natal. E se disto vos falo logo de início, é porque me parece importante que fiquem desde já assentes alguns factos, os quais são, não ter nascido em cidade onde pudesse estudar, ter nascido em família humilde, filho de um carpinteiro, ter tido uma vida muito curta, apanhado que foi por contágio de doentes tuberculosos que tratava e ter na sua morte regressado às suas origens, mesmo depois de ter atingido a maior notoriedade.Sousa Martins fez apenas a instrução primária na sua terra natal, pois partiu logo de seguida para Lisboa, para casa de um tio, de seu nome Lázaro Pereira e boticário de profissão e lucro já que era dono da Farmácia Ultramarina. Como disse o nosso ilustre colega e historiador Augusto da Silva Carvalho, este Lázaro Pereira foi mais boticário do que tio para a criança que era Sousa Martins, quando este se albergou em sua casa e teve que pagar com o seu trabalho quase escravo, a cama e a comida que o tio lhe dava. Apesar do pouco tempo que lhe restava do seu ofício de marçano e de criado da botica, Sousa Martins conseguiu ir estudando com regularidade e aplicação e sobretudo com a facilidade e o gosto que o acompanharam toda a vida. Em 1860, já fazia o seu primeiro exame na Escola Politécnica, onde tirou Física, Química, Zoologia, Química Orgânica e Análise Química. Cumulativamente frequenta o curso de Medicina a partir de 1861 e termina o curso de farmácia em 1864 e o de medicina em 1866, tendo obtido prémios em todas as cadeiras. Logo após o curso e sem ter ainda clínica, começou a dar aulas de Física, Química e História Natural no Colégio da Conceição, no Convento das Bernardas e onde continuou a exercer clínica, tempos depois. Mas logo em 1868, apenas dois anos depois da sua licenciatura, concorre ao lugar de demonstrador da Escola Médica, opondo-se a Silva Amado e vencendo-o, tornando-se num caso único na história daquela Escola Médica, onde até aí não houvera ninguém tão novo, com apenas 25 anos de idade, a aceder ao magistério de uma escola superior. Entretanto, fora criada a cadeira de Patologia Geral, até ai associada à Patologia Interna.Sousa Martins irá ser o seu proprietário daí para a frente, depois do seu titular inicial, o cirurgião Joaquim Teotónio da Silva, alterando o programa que este estabelecera e juntando-lhe Semiologia e História da Medicina. Como professor da Escola Médica sempre foi considerado demasiado teórico, crítica que também lhe era feita, enquanto clínico. Mas, todos os que se lhe referem, enaltecem a grande capacidade para interessar os alunos nas matérias a dar, pela sua eloquência e pela amabilidade, afecto e delicadeza com que tratava os alunos, qualidades que também lhe são reconhecidas em relação aos seus pares. Sousa Martins era sociável, mas ao mesmo tempo avesso a festas e à vida social vazia e enfatuada. Quando Sousa Martins inicia a sua vida clínica, talvez não soubesse como ela lhe iria absorver todo o tempo e iria ter características de tão grande intensidade. A sua clientela era especialmente do bairro da Bica, mas passado algum tempo cobria toda Lisboa, rica e pobre. Aliás uma das características de Sousa Martins era dar muitas consultas gratuitas e não digo todas, porque não se perceberia como, não recebendo honorários de ninguém, tinha dinheiro para distribuir por uns e outros. Sousa Martins estava sempre pronto a ajudar o próximo, era um perfeito filantropo e todos sabiam que em estado de aflição podiam bater-lhe à porta que ele os ajudaria. Seria essa característica que, conjuntamente com a sua eficácia clínica, levaria a que se começasse a tecer a teia da sua fama, apesar de muitos acharem que ele era ríspido, seco e duro nas relações com os doentes, contrariamente à sua postura em relação aos alunos, colegas e familiares. Sousa Martins vivia modestamente juntamente com sua mãe e irmãs. Houve quem se apresentasse como seu filho, mas essa questão nunca foi esclarecida e Sousa Martins sempre negou que tivesse um filho. Sousa Martins foi um percursor em várias e importantes coisas. Foi ele que, conjuntamente com alguns colegas, fundou a Casa de Saúde Lisbonense, situada em Campo de Ourique e que durou 21 anos, dando lugar a uma outra, a Policlínica de Lisboa, instalada no Palácio dos Condes de Redondo, a Santa Marta, que se destinava a dar consultas gratuitas e que durou apenas três anos e sempre sem grande afluência, o que é inexplicável, dada a fama de Sousa Martins e o facto de ser gratuita. Foi fundador da Sociedade de Geografia, da Sociedade Portuguesa da Cruz Vermelha e do Jardim Zoológico e foi Presidente da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, académico da Academia Real das Ciências, como teria sido presidente da Associação dos Médicos Portugueses, a Ordem dos Médicos de então, se não tivesse morrido um ano antes da sua criação. Foi sócio efectivo da Sociedade Farmacêutica Lusitana, logo após a sua formatura em farmácia e no pouco tempo em que aí desenvolveu actividades, fez muitas e variadas coisas, destacando-se de todos os confrades. Entre essas coisas, conseguiu vencer as dificuldades que havia com os chamados medicamentos de segredo, tendo conseguido que eles não fossem desalfandegados e participou activamente na redacção da Farmacopeia Portuguesa. Teria sido ele o primeiro a usar bata branca no seu serviço do hospital, a que alguns chamavam guarda pó… Ajudou a recuperar o prestígio perdido da Sociedade das Ciências Médicas, embora não tenha sido ele o único responsável dessa recuperação. A sua influência junto do Governo e do Rei, levou a que a Sociedade de Ciências Médicas começasse a ser consultada regularmente sempre que havia problemas graves de saúde pública. Representou o nosso país em vários congressos internacionais e conseguiu impôr-se como homem de ciência, impressionando lá fora como impressionava aqui com os seus manifestos dotes de orador, que muitos gostariam de ter visto aplicados à política, o que sempre recusou. Escrevia quase tão bem como falava, mas a sua obra não foi tão importante como foi a sua acção. Quando morreu, o celebrado Manuel Bento de Sousa, à frente de uma comissão para esse fim constituída, puseram em marcha a construção de uma estátua que perpetuasse o nome e a obra de Sousa Martins. O rei associou-se e deu importante verba e em 1900 foi inaugurada uma estátua da autoria de Queiroz Veloso, prestigiado artista dessa época e que esculpiu Sousa Martins sentado na sua cátedra, um pouco inclinado para a frente, de braço esticado, como se estivesse dando uma aula. As pessoas não gostaram e a troça instalou-se, o que levou a que essa estátua desaparecesse e fosse substituída pela que agora continua a perpetuar a sua vida em frente à Escola Médica do Campo de Santana. Foi inaugurada em 1904 e da autoria de um artista menos conhecido, Costa Mota.Contra esta ninguém protestou. Foi então que nasceu este culto que ainda hoje se mantém, e cada vez mais intenso, que de uma forma incompreensível transformou um homem de ciência num milagreiro, tal a crendice das pessoas que lhe pedem milagres como se fosse santo e lhe têm devoção profunda.Esta devoção deverá ser alimentada por aqueles que sempre vivem à custa de outros, sem esforço e sem mérito. Todos aqueles que viram neste culto a Sousa Martins o negócio chorudo da fabricação de estampas, de bustos, de ex-votos e na venda de flores, um magnífico negócio e não um objecto de beleza.Sousa Martins não deve ser visto desta maneira. Deve ser recordado como foi e como actuou e como continua nas páginas da história da medicina portuguesa. O Hospital de São José conserva várias peças que pertenceram a Sousa Martins e que criam sempre interesse público sempre que são mostradas nalguns eventos médicos. Tivesse sido mais um teórico do que um prático, mais mal encarado e rude do que cortês, como alguns dizem, psicopata ou degenerado superior como alguns inimigos ou invejosos lhe chegaram a chamar, o certo é que Sousa Martins foi um médico ilustre, um percursor, um orador, um perito, um professor, um académico, um congressista, um filantropo e sobretudo um romântico. Como disse Augusto Silva Carvalho, é nesse ser romântico que se concentram todas as facetas de Sousa Martins. Ali coabitam a eloquência, fantasia, amor da família, dos humildes, crianças, árvores, flores, animais, música e belas letras, caridade, desinteresse, sensualidade e ciúme, elogios e hipérboles, arrogância e teimosia, brio e zelo, sacrifício e dignidade. Dele, disse Manuel Bento de Sousa – homem ilustre, porque ajuntou em si as duas bases de todo o enobrecimento – foi brilhante e útil.

sexta-feira, agosto 25, 2006

e, se eu vos contasse? – 32º programa – história do hospital real da luz

A História tem coisas difíceis de explicar. Não me refiro a tudo aquilo que não se consegue explicar por haver montes de dúvidas sobre os factos em estudo, mas sim sobre acontecimentos históricos completamente esquecidos, de que ninguém fala, que a maior parte dos eruditos parece desconhecer ou procede como se assim fosse, e todo este esquecimento sem que se vislumbre, adivinhe ou intua a razão ou razões que levam a isso. Todo este intróito, para tentar dizer-vos, logo de entrada, que a história que hoje decidi contar-vos, vai tratar de um desses acontecimentos históricos de que, não se sabe por que razão, ninguém ou quase ninguém fala, ninguém ou quase ninguém conhece. Vou falar-vos de uma forma muito aligeirada e resumida, exactamente porque são muito poucas as fontes que sobre isso se podem consultar, sobre o chamado Hospital Real da Luz ou Hospital Real dos Prazeres, como também foi conhecido. Neste momento, já a grande maioria dos telespectadores se terá perguntado que raio de hospital foi esse de que nunca ouviram falar. Mas mais espantados ficarão quando eu lhes disser que se trata de um hospital construído de raiz, com essa única finalidade e que o edifício que o albergou ainda hoje existe e em magnífico estado de conservação. Não tenho dúvidas que o espanto será quase geral. Para que isto não pareça um romance policial, e quem me dera saber escrevê-los, vou entrar rapidamente no assunto da minha história de hoje e começar assim a esclarecer o mistério. O Hospital de Nossa Senhora da Luz ou de Nossa Senhora dos Prazeres, padroeira do Hospital da Luz, foi mandado construir pela Infanta D. Maria, filha do rei D. Manuel e de sua segunda mulher, D. Leonor, no lugar da Luz, em terreno próximo do já existente convento e igreja da Luz, dos frades da Ordem de Cristo. O local teria sido escolhido pela grande afluência de romeiros e enfermos devotos daquela santa e por se tratar de uma região muito próxima da capital e considerada com bons ares e salubre. Entre os seus professores, distinguiram-se a sua aia Luísa Sigeia, doutíssima senhora, natural de Toledo, que lhe ensinou letras humanas e a língua latina; sua irmã Ângela Sigeia com quem aprendeu a tocar alguns instrumentos, com especialidade os mais usados no culto divino como a harpa e o órgão, e Frei João Soares de Urró, da ordem dos eremitas de Santo Agostinho, depois bispo de Coimbra, que a iniciou nas divinas letras. No seu paço particular criou a infanta D. Maria uma verdadeira universidade de senhoras ilustres em todo o género de ciências e artes, de que foi especial protectora, pois não só se encontrava quem se desse à lição dos livros, e tocasse destramente diferentes instrumentos, mas quem com o pincel e com a agulha procurasse nos primores da pintura e lavor virtuosa emulação, e seguisse todos os outros louváveis exercícios, aos quais juntava com tal reverência e edificação a prática dos actos de piedade em todo o género de virtudes, pela direcção de Frei Francisco Foreiro, seu confessor, da ordem de S. Domingos, que parecia mais um mosteiro de religiosas reformado, do que paço real. No seu testamento de 1577, a Infanta D. Maria diz que «o hospital se edifique com hos rendimentos de dous contos de juro, de que ho doto». Mais dizia que deveria ser feito um estatuto ou regimento, semelhante ao que sua tia D. Leonor tinha feito para o Hospital Termal de Nossa Senhora do Pópulo, nas Caldas da Rainha e que esse estatuto ou regimento seria firmado por sua mão e no seu impedimento pelo seu confessor, o Padre Francisco Foreiro. A Infanta faleceu antes de o poder assinar e este acabou por ser assinado pelo Padre Francisco Foreiro em 3 de Abril de 1618 tendo o hospital sido inaugurado a 23 de Abril de 1618. Também neste testamento a Infanta dizia que queria que as obras começassem rapidamente e que, se a renda não chegasse, logo se aumentaria. E, desta forma nasceu um hospital lindíssimo destinado apenas a 63 camas, destinadas apenas a doentes que não tivessem doenças incuráveis ou contagiosas, com um quadro de pessoal correspondente à sua dimensão e que contava com um médico, um cirurgião sangrador, enfermeiros, outro pessoal hospitalar e para o tratamento da alma, um capelão. O edifício foi construído com grandeza, com planta em cruz latina, com rés do chão e andar nobre, com um claustro na parte central e no centro uma grande cisterna, com capacidade superior a 500 metros cúbicos. No pavimento térreo ficavam a cozinha, a botica e outras dependências. As enfermarias situavam-se no andar superior, assim como um quarto separado, destinado a fidalgos pobres ou pessoas de qualidade que ali se fossem tratar e que, desse modo, ficavam separadas do resto dos doentes. Curiosamente, encontrei uma referência a que um dos tais fidalgos ou pessoas de qualidade que nesse quarto teriam estado internados, tinha sido o Dr. André de Morais Sarmento, Juiz dos Pleitos da Coroa e da Fazenda Real, transmontano como eu e natural de uma vila próxima da cidade em que nasci e com muitos descendentes, meus amigos, que por ali e outras partes continuam a levantar bem alto o nome de honrada família. O Dr. Morais Sarmento terá feito o seu testamento em 14 de Novembro de 1690, neste Hospital, como consta nas Memórias Arqueológicas e Históricas do Distrito de Bragança. O edifício do hospital era imponente e digno, mas sóbrio e existem dúvidas sobre quem teria sido o arquitecto. Uns apontam o nome de Jerónimo de Ruão, que parece ter estado ligado apenas à fase inicial da obra, tendo sido responsável posteriormente, Baltazar Álvares, arquitecto de Sua Majestade e dos Mestrados das Ordens Militares, Cavaleiro do Hábito de Cristo e que pelo Livro de Contas e despesas do século XVII, se sabe ter sido em 1610, Mestre das Obras do Hospital Real da Luz. E também o tipo de arquitectura aponta para que tenha sido Baltazar Álvares o arquitecto do Hospital. A capela de nave única, muito do seu gosto, é mais um facto que aponta nesse sentido. De cada lado do altar desta capela, abrem-se duas largas portas que comunicavam com as enfermarias, permitindo desse modo que os doentes assistissem e participassem no culto. Independentemente da vontade do arquitecto, a Infanta D. Maria tinha mandado escrever no seu testamento esta condição da comunicabilidade das enfermarias e da capela, à semelhança do que também se passava no Hospital Real de Todos os Santos. No altar mor do Mosteiro há várias figuras simbólicas pouco usuais e deslocadas em relação ao tradicional nos altares mores. Nele se podem ver representações da Astronomia e da Medicina Também no Mosteiro dos Jerónimos aparecem algumas destas imagens, o que provavelmente se ficou a dever a Jerónimo de Ruão que trabalhou nos dois Mosteiros. No livro 2726 da Biblioteca do Exército existe o testamento da Infanta D Maria e, junto, o Regimento deste Hospital Real Militar da Luz ou dos Prazeres como também era conhecido. Gustavo Matos Sequeira no seu livro «O Carmo e a Trindade», diz que os Padres da Ordem de Cristo destelharam o Hospital da Luz «a título de ficar mais leve em atenção a outro terramoto» para venderem as telhas a preços exagerados, pela falta que delas havia e porque a procura era grande. Também no Arquivo Histórico Militar existem os 4º, 5º, e 8º Livros de Despesas deste Hospital, dos anos de Julho de 1796 a Fevereiro de 1797, de Março de 1797 a Novembro de 1798 e de Fevereiro de 1801 a Fevereiro de 1802. Existe o 1º Livro de Receitas, que as refere de 1 de Julho de 1792 a 10 de Setembro de 1802. De 26 de Abril de 1790 a 18 de Novembro de 1791, foram tratados pelo Médico da Enfermaria Militar estabelecida no Hospital de Nossa Senhora dos Prazeres, no sítio da Luz, António da Costa Pinheiro, 147 enfermos e mais 12 do Campo da Porcalhota. Tiveram alta 111, morreram 22 e ficaram 26. Por isso, pretende ordenado competente à natureza do seu exercício. Como se vê pela pretensão deste Médico, também era conhecida por Enfermaria Militar, embora documentos oficiais lhe chamem Hospital Real Militar da Luz. Este médico não só conseguiu o pagamento dos serviços, como passou a habitar numas «casas» daquele Hospital, por causa das quais fez mais dois requerimentos solicitando obras e reparações. Mas o Procurador Fiscal entendeu que não tinha direito às obras e até recebia um soldo avultado em relação ao que fazia, embora estivesse encarregado das «visitas da manhã e da tarde». Como Cirurgião, ali trabalhava, em 1791, Manoel da Silva Paulino de Figueiredo, por 120 réis a visita, o que perfazia 87$000 por ano, sem obrigação de sangrar e deitar bixas, o que se pagava à parte, e que por Alvará de 20 de Março de 1792 passou a receber 100$000 por ano, mas com a obrigação das visitas da manhã e de tarde e tudo o que fôsse preciso aos doentes de Cirurgia, sangrar, tirar dentes, deitar bixas e vesicatórios, sempre que lhe fosse determinado. Na Resolução Régia de 6 de Julho de 1792, «a respeito de ser indispensável haver no Hospital Real Militar da Luz, um Capelão que tenha a seu cargo toda a assistência espiritual dos enfermos que ali vão convalescer», Sua Majestade resolveu «em consulta da Junta dos Três Estados, participada em Aviso de 23 de Fevereiro de 1790, que os Militares enfermos de queixas do Peito, que se achassem no Hospital Real Militar de S. João de Deus desta cidade, fossem transferidos para o sítio da Luz». Em 6 de Novembro de 1793, tem-se notícia de um conflito estabelecido entre um médico do Hospital e o Deputado para os Hospitais, D. José de Noronha, que tendo proibido o médico de receber honorários pelos atestados que passava e sendo desobedecido, levou o Deputado a representar à Junta dos Três Estados. O médico argumentava que estava dentro do Direito Divino e Humano e «assim todos procediam e o salário que tinha era para tratar os doentes, os atestados tiravam-lhe tempo para a clínica exterior, justo era que lhos pagassem». A Junta entendeu que tendo o médico Alvará Régio devia este caso ser representado a El-Rei e entretanto continuar a receber os atestados, que, aliás, era o mesmo que o Escrivão fazia para os óbitos. Em 26 de Dezembro de 1809, o Cirurgião-Mór participa a D. Miguel Pereira Forjaz que o Hospital Real Militar da Luz não merece esse nome, pois «não serve actualmente para doentes mas para acomodação de tropas». Na relação das pessoas empregadas no Hospital Real de Nossa Senhora dos Prazeres do sítio da Luz, de 1813, constam um médico, um cirurgião sangrador, um boticário, um infermeiro (sic), uma cozinheira, um mozo (sic) de porta e uma lavadeira. O que é curioso nesta relação é verificar que quer o médico, quer o cirurgião, recebiam menos que o enfermeiro, a cozinheira e o mozo da porta e apenas mais do que a lavadeira. Provavelmente porque tinham um horário de part time. O boticário não recebia qualquer vencimento, mas apenas os lucros da venda dos produtos da sua botica. Mais curiosas ainda são as anotações ou comentários feitos pelo Provedor Domingos Monteiro de Albuquerque Amaral e Francisco Furtado de Mendonça, sobre os préstimos e merecimentos de cada um destes empregados. Do médico dizia que apesar de não ser de primeira qualidade, também não era dos piores, de bons costumes, mas pouco tratável. Do cirurgião, dizia que era «mao omem», dado ao vinho e mao cirurgião. O boticário era um bom boticário e bom omem. Todos eles habitavam em dependências cedidas pelo hospital, mas simples quartos, nenhum deles tinha casa. E deve ter sido esta a última relação dos empregados do Hospital Real de Nossa Senhora dos Prazeres, no sítio da Luz, pois em 1814, no ano seguinte, portanto, já se publicava a planta topográfica do chamado Colégio Militar que, entretanto, ocupara as instalações do antigo hospital que se manteve em funcionamento de 1618 a 1814.

quarta-feira, agosto 23, 2006

e, se eu vos contasse? – 30º programa – história dos médicos judeus e a inquisição

Falar de médicos judeus e da Inquisição daria para vários programas destes que tenho vindo a contar-vos todas as semanas. Mas entendo que o ponto principal desses programas assentaria sempre na perseguição de que foram vítimas e na forma como uns e outros foram atingidos ou apanhados por aquele poderoso polvo. Por isso e porque haveria muito de comum entre uns e outros, optei por vos falar de dois nomes verdadeiramente notáveis, cujas vidas foram consciente ou inconscientemente ditadas pela fuga à Inquisição e que conseguiram nunca ser por ela apanhados. Foram fugitivos e pela fuga se libertaram, embora um deles tivesse sido apanhado pela Inquisição já depois de morto.

Já num programa anterior me referi a Garcia de Orta e dele disse o que agora vos quero repetir. Nasceu em Castelo de Vide, no ano de 1500, licenciou-se em Medicina em Espanha, onde frequentou as Universidades de Salamanca e Alcalá de Henares, exerceu algum tempo na sua terra natal e depois em Lisboa, onde foi professor da Universidade e depois, muito novo, em 1534, embarcou na nau de Martim Afonso de Sousa a caminho da Índia, onde conheceria Camões e onde escreveria a sua obra ímpar «Colóquios dos simples e das cousas medicinais da Índia....», com a permissão expressa e licença censória dada pelo muito reverendo Senhor, o licenciado Alexos Diaz Falcão, desembargador da Casa da Suplicação, Inquiridor nestas partes... Os colóquios foram escritos de uma forma exactamente coloquial, em que Garcia de Orta conversa com um personagem inventado, o Dr. Ruano e com o médico Dimas Bosque, licenciado por Valência. Esta obra teria sido condenada ao esquecimento, por ter sido escrita em língua portuguesa, não tivesse sido o interesse e o cuidado do botânico belga Charles de l’Écluse em a difundir em toda a Europa, através de uma tradução que cuidadosamente fez, tendo desse modo, tornado os Colóquios no famoso livro em que se tornou, com mais de cinquenta edições nas mais variadas línguas. Disse-vos também nessa altura, mas não será de mais repeti-lo, que o primeiro poema impresso de Camões foi aquele que escreveu ao Conde de Redondo, Vice-Rei da Índia, intercedendo pelo apoio oficial para aquela magnífica obra

"Favorecei a antigua Sciencia / que já Achiles estimou; / Olhai que vos obrigua, / Verdes que em vosso tempo se mostrou / O fruto daquella Orta onde florecem Prantas novas, / que os doutos não conhecem. / Olhai que em vossos annos / Produze huma Orta insigne varias ervas / Nos campos lusitanos, / As quaes, aquellas doutas protervas / Medea e Circe nunca conheceram, / Posto que as leis da Magica excederam"

Só quero voltar a dizer-vos porque isso se prende com o tema de hoje, que depois de Garcia de Orta ter morrido em 1568, no dia 4 de Dezembro de 1580, doze anos depois da sua morte, foram os seus ossos mandados desenterrar na cidade de Goa, pela chamada Santa Inquisição e queimados em praça pública, juntamente com todos os exemplares encontrados dos Colóquios. Chamava-se «Santa» Inquisição a entidade mandadora de tal crime.
Encontro-me em Castelo Branco, ao lado desta estátua que perpetua a memória deste filho ilustre da cidade onde nasceu em 1511, com o nome de João Rodrigues. Passados alguns anos passaria a João Rodrigues de Castelo Branco, associando para sempre o nome de sua terra, ao seu. João Rodrigues de Castelo Branco viria a ser o médico português mais ilustre e famoso do século XVI, celebrado em todo o mundo com o nome de Amatus Lusitanus, mais uma vez integrando no seu nome a sua origem, agora a sua pátria.

Pensa-se que o nome Amatus resultou de uma derivação latina da palavra hebraica Habib, nome de sua família e que significava querido, dilecto. Nascido numa família de posses pode estudar e licenciar-se em medicina na Universidade de Salamanca. Depois de ter terminado o curso, João Rodrigues de Castelo Branco nunca mais parou. Regressou a Portugal no fim do curso, mas por pouco tempo, cedo se apercebendo que tinha que abandonar o país, antes que a Inquisição tomasse conta dele e o enviasse para uma qualquer fogueira de um qualquer auto de fé. Com a idade de 23 anos, em 1534 portanto, já vivia em Antuérpia, onde rapidamente conseguiu notoriedade e publicou 2 anos depois o seu primeiro livro o «Index Dioscoridis», que ainda não foi assinado com o nome de Amatus Lusitanus. Em 1541 e a convite do Duque d’Este desloca-se para a cidade italiana de Ferrara, para reger uma cadeira na Faculdade de Medicina da Universidade de Ferrara, ou Studium Generali, como ainda eram chamados nessa altura e uma das mais prestigiadas universidades italianas. Aí conheceu e desenvolveu trabalhos e uma sólida amizade com o médico João Baptista Canano, seu assistente e que viria ser um prestigiado e respeitado anatomista. Contudo, mais uma vez sentiu o calor das fogueiras da Inquisição e seis anos depois de chegar a Ferrara, parte para Ancona, em 1547. Durante o período de permanência em Ancona deu-se a entronização de Paulo IV, como Papa e rapidamente se assiste à sua transformação no Papa da Contra Reforma, que, naturalmente, arrastou consigo um aumento da perseguição aos judeus. Amatus Lusitanus sentiu-se inseguro e oito anos depois de ter chegado, muda-se outra vez, com o novo destino de Pesaro. Mostrou ter sido uma escolha mal feita, não tendo ficado a salvo das perseguições, o que o leva passado um ano a mudar-se para Ragusa, hoje Dubrovnik. Esta mudança não foi ainda a última, e uma vez mais teve que se mudar, em 1559, dessa vez para Salónica, sob o domínio do Sultão da Turquia, sendo a cidade onde Amatus Lusitanus viria a morrer. Todas estas mudanças se deveram ao esticar imparável da teia da Inquisição, do estender dos seus poderosos tentáculos, a que ninguém escapava, desde que acusado, bem ou mal, com verdade ou vingança e inveja. Amatus durante todos estes anos foi acumulando um capital de prestígio e notoriedade médica, verdadeiramente invejável. Foi médico do Papa Paulo III, de inúmeros nobres e casa senhoriais de Veneza e Florença, de grande poderio económico e político, mas que nem por isso, o conseguiam proteger ou livrar das teias da Inquisição. A última escolha foi a acertada, pois em Salónica nunca a Inquisição o viria buscar. Infelizmente, só pode viver em paz durante mais nove anos, pois em 1568, com a idade de 57 anos, morre em Salónica vítima da epidemia de peste, enquanto contra ela combatia. Como médico, podemos dizer que morreu em combate. Para além do prestígio que lhe vinha, e o acompanhava para todo o lado, de ser um magnífico médico e também cirurgião, caso raro e de salientar, já que o habitual era os médicos se recusarem a praticar actos cirúrgicos, outra coisa fez que ele fosse notado e conhecido de todos. Refiro-me à publicação da sua mais importante obra «As sete centúrias», que começou a escrever em 1546, em Ferrara e terminou em Salónica, em 1561.

Paralelamente com as Centúrias, Amatus Lusitanus foi publicando outras obras de que se destaca «Comentários a Dioscórides», editados em 1553, em Veneza. Mas, sem qualquer sombra de dúvida, temos que considerar as Centúrias a sua grande obra. Porque se chamavam Centúrias? Porque cada uma delas, descrevia 100 casos clínicos reais, da sua própria clínica. Cada caso recebia um número de ordem e constava da descrição do caso, seguida de comentários a esse caso, justificando a forma como actuou e comparando a sua actuação com a forma como outros actuaram em casos semelhantes e mostrando a razão porque discorda deles. Amatus Lusitanus, em cada caso das Centúrias, serve-se das suas próprias experiências clínicas, mas não esquece a literatura médica existente, mostrando claramente a sua formação universitária. Escreveu as suas obras em latim, o que facilitou extraordinariamente o seu conhecimento e difusão. Os seus biógrafos apontam para 59 edições da sua obra, mas acreditam que terão sido mais. Como disse, Amatus invadia frequentemente o domínio da cirurgia, para emitir opiniões, para inventar técnicas, para realizar operações e para investigar. As suas opiniões sobre os melhores locais para realizar as sangrias, a descrição pela primeira vez das válvulas das veias ázigos ou a sua prótese para a abóbada palatina, ficaram célebres e foram cenário de várias discussões e disputas, nem sempre limpas de invejas e mal dizer e de que já vos falarei. É dele a primeira descrição da encefalite letárgica e também da púrpura. No que respeita a operações cirúrgicas, sabemos que Amatus Lusitanus realizou inúmeras trepanações craneanas, toracotomias, herniorrafias, curas cirúrgicas do hidrocelo, etc... Para se avaliar do prestígio de Amatus bastará dizer-vos que, por exemplo, em relação ao melhor local para executar a sangria no caso daquilo que chamavam a pleurite, os seus opositores foram os respeitados Vesálio, Falópio e Eustáquio, qualquer deles com o seu nome ligado para todo o sempre à medicina. Consideravam Amatus um dos seus pares e por isso discutiam com ele. Neste caso concreto, Amatus defendia que se devia sempre sangrar do lado da pleurite, enquanto Vesálio defendia que a sangria devia ser sempre do lado direito. A prótese da abóbada palatina foi durante muito tempo atribuída a Ambroise Paré, personalidade ímpar da história da medicina e de quem já vos falei mais do que uma vez, sendo para sempre o pai da cirurgia. Pois bem, hoje sabe-se que foi Amatus o inventor desta prótese e que Paré apenas a terá usado nos seus doentes. Historiadores respeitados como Leibowitz, Samoggia e Paiva Boléo, provam nos seus estudos e trabalhos publicados que a paternidade deste invento é de Amatus. Mas, o caso que mais celeuma deu e que chegou a ter contornos pouco limpos, quase mafiosos, foi o da descoberta das válvulas da veia ázigos. A situação chegou a tal ponto que se podia resumir de uma forma bem ilustrativa, dizendo que aqueles que não acreditavam na existência das válvulas, acusavam Amatus de se referir a elas e defender a sua existência. Por outro lado, aqueles que acreditavam, acusavam Amatus de plágio e diziam que o inventor tinha sido João Baptista Canano, de quem já vos falei, assistente e amigo de Amatus. Ora, isto era um ataque ignóbil a Amatus. Se pensarmos que Canano queimou toda a sua obra e portanto nunca referiu tais válvulas e se pensarmos que Amatus se refere ao seu assistente Canano, como colaborador na descoberta das válvulas, temos de concluir que se hoje falamos de Canano é apenas porque Amatus o refere nas suas obras. O mais terrível adversário de Amatus nesta triste história foi Pietro Andrea Mattioli, que se sujou para sempre no jogo feio e sujo em que se lançou, chegando ao ponto de denunciar Amatus Lusitanus como «marrano», expondo-o assim ao ódio da Inquisição e chegando ao ponto de acrescentar um H ao nome Amathus, para fazer um trocadilho com a palavra latina que significava «ignorante» e «sem ciência». Esta controvérsia foi de tal modo conhecida, que Johann Bauhin, quando publicou a sua obra «História Plantarum Universalis», colocou no frontispício do livro, Amatus e Mattioli, como referência a tão grave discussão.

A verdade é que, hoje em dia, o respeito que os historiadores têm pela figura ímpar de Amatus Lusitanus, é inquestionável. Num livro recente editado pelo Instituto di Storia della Medicina dell’Universitá di Roma, Mirko Malavoti, escreve que as «Centúrias» são «una della maggiori testimonanze dello stato della Medicina nei cinquecento», o que não pode deixar de agradar a qualquer português que isto leia. Mas, Amatus Lusitanus, levou mais longe o seu perfil de vida e deixou-nos ainda um importante legado. Na sua Centúria VII, apresenta o seu «Juramento», que nos traz à memória o célebre Juramento de Hipócrates que ainda hoje todos seguimos e juramos. É sabido que Amatus Lusitanus tratou um Papa, cardeais, nobres, generais, mas também tratou soldados, mercadores, marinheiros, prostitutas...Por isso, pode escrever no seu Testamento que «Sempre tratei os meus doentes com igual cuidado, quer fossem pobres ou nascidos em nobreza, sem procurar saber se eram hebreus, cristãos ou sequazes da lei Maometana; Sempre fui parcimonioso nos honorários e muitas vezes sem qualquer paga, tendo sempre mais em vista que os doentes recobrem a saúde do que tornar-me rico pelos seus dinheiros; Como autor de escritos médicos e ao publicar os meus livros quis só promover que a fé intacta das coisas chegasse ao conhecimento dos vindouros, sem outra ambição que não fosse contribuir de qualquer modo para a saúde da humanidade, sem nada fingir, acrescentar ou alterar em minha honra». Grandes palavras para todos meditarem. A começar pelos juízes da Santa Inquisição...

e, se eu vos contasse? – 29º programa – história da anestesia

Se eu perguntar ao comum dos mortais, ou até a alguns médicos, tendo o cuidado de excluir os anestesistas, está bom de ver, se a anestesia é uma aquisição recente dentro da História da Medicina, penso ser garantido, com algumas excepções, as tais que confirmam a regra, que a anestesia é uma aquisição médica recente. E aqui, como em todas as coisas, nem sempre as palavras traduzem a verdade inteira, mas apenas uma parte dela. É um facto que a anestesia, tal como hoje a entendemos e praticamos, é uma aquisição recente, não sendo exagero dizer-se recentíssima, pois só há escassos 50 e poucos anos, se formaram, entre nós, os primeiros anestesistas e ao serem os pioneiros que foram, nem sonhavam, por um instante que fosse, o que as décadas seguintes lhes iam reservar de surpresas continuadas e de espantosos avanços técnicos. Em 1950, apenas cerca de vinte médicos se dedicavam à anestesia, em exclusividade, e a especialidade de anestesia ou anestesiologia, como agora se diz, só foi reconhecida pela Ordem dos Médicos em 1951. E a Sociedade Portuguesa de Anestesia só foi criada em 1955. Por isso, se nos ficássemos por aqui, diríamos todos que a anestesia é uma recentíssima especialidade médica. Mas não sendo por aqui que eu quero ficar, pois hoje propus-me contar-vos a história da anestesia, tenho que vos deixar de queixo caído quando vos disser que esta especialidade que acabamos de considerar recentíssima, é, ao contrário do que pensávamos, a mais antiga especialidade de que há memória... Não se assustem, porque eu descodifico já o que disse. Era apenas uma graça, talvez de mau gosto, mas que não resisti a fazer. Lembrei-me que no Velho Testamento, no Génesis, II, 21, se pode ler que «Mandou, pois, o Senhor Deus um profundo sono a Adão; e, enquanto ele estava dormindo, tirou uma das suas costelas e pôs carne no lugar dela. E, da costela, que tinha tirado de Adão, formou o Senhor Deus uma mulher...». O que foi isto senão uma ribectomia, sob anestesia?. Deus mandou um profundo sono a Adão. O que sucede quando somos anestesiados? Diz nalgum outro lado que Adão teve dor? Desculpem a graça, mas pareceu-me que era uma boa forma de entrarmos na verdadeira história da anestesia. Não farei referência, propositadamente, ao uso muito antigo de poções soporíferas, à base de raiz de mandrágora e de vinho e muitos outros produtos, porque desse uso nada veio beneficiar o que é a anestesia hoje. Pensei ser melhor contar-vos apenas a história de todas as descobertas ou factos que de uma forma directa ou indirecta, levaram à anestesia actual. O primeiro desses factos e referências que existem, situa-se em 1275, e na nossa vizinha Espanha, quando Raymondo Zulhine, descreve o éter, o «sweet vitriol», mas ainda não fala nas suas propriedades anestésicas., o que vai demorar quase trezentos anos a suceder, pela mão e boca de Paracelsus, que em 1540, descobre os efeitos soporíferos do éter e descreve o seu uso nas doenças dolorosas. Passados 24 anos, é a vez de esse nome ímpar da História da Medicina, pai incontestado da Cirurgia e que dava pelo nome de Ambroise Paré, que passou de barbeiro a sangrador, depois a cirurgião e acabou cirurgião de três reis, ter descrito a utilização pela primeira vez da anestesia local, obtida pela compressão de nervos e vasos sanguíneos, método que em 1600, foi usado em Itália por Valverdi. Espanta contudo que os continuadores de Paré não adoptassem tal método o que leva a supor que, embora Paré fosse homem de uma só palavra e de grande verticalidade, ele tivesse exagerado um pouco os bons resultados obtidos por aquele método. Apenas para ficarem com uma ideia da integridade de Ambroise Paré, não resisto a contar-vos uma história muito conhecida, passada entre ele e o rei Carlos IX, de França. Este rei quando nomeou Paré seu cirurgião chefe, lembrou-lhe a acrescida responsabilidade que tinha de o tratar especialmente bem. Paré ouviu e respondeu ao rei que isso não poderia fazer, pela simples razão de tratar todos os seus doentes como se fossem reis... Só dois séculos depois e em dois países diferentes é descoberto o oxigénio e o seu interesse médico e um ano depois, um dos descobridores do oxigénio, o inglês Joseph Priestley, descobre o protóxido de azoto, sem tirar grandes conclusões sobre o seu interesse muito longe de sonhar que quer um quer outro viriam a mostrar-se fundamentais no desenvolvimento da anestesia. Quem vem a verificar o papel analgésico do protóxido de azoto foi Sir Humphrey Davy, 26 anos depois da sua descoberta, após ter feito experiências em si próprio e em vários voluntários, concluindo que aquele gás lhe parecia abrir o caminho ao domínio da dor e à possibilidade de a cirurgia se desenvolver. Dizia que quando o inalava sentia ao mesmo tempo a força de Hércules, a energia de Alexandre, o Grande e as visões de Joana d’Arc, antes de adormecer. Contudo, tiveram que passar mais anos até que isso se verificasse pela primeira vez, exactamente em 1798. Na Prússia, em 1806, Friedrich Lesturner, consegue extrair morfina, do ópio. Em 1807, o cirurgião militar Larrey, que viveu alguns anos em Portugal durante as invasões francesas, verificou que os soldados não tinham dor ou a tinham em muito menor grau, quando as amputações eram feitas com temperaturas abaixo de zero. Há quem diga que esta constatação de Larrey, já tinha sido verificada dois séculos antes por um italiano, mas não há garantia de que assim tivesse sido. Em 1824, Hichman, diz ter realizado operações cirúrgicas sem dor, usando o CO2, o anidrido carbónico. Sabe-se que Larrey, resolveu usar o CO2 numa intervenção cirúrgica ao rei Carlos X, mas não teria obtido sucesso. A preocupação dos cientistas dessa época, como das que se lhe seguiram, centraram-se muito na investigação dos fenómenos da dor. Só isso explicará a coincidência de o oxigénio ter sido descoberto por dois cientistas diferentes, em diferentes países, mas ao mesmo tempo, ou o facto de em 1831, em três países diferentes, tenha sido descoberto o clorofórmio e as suas marcadas propriedades anestésicas. É a primeira vez que aparece como descobridor um cientista americano. Por essa altura, um inglês consegue com sucesso, fazer uma anestesia por hipnose. Quase 600 anos depois do espanhol Raymondo Zulhine, ter descoberto o éter, aparece um americano a usá-lo para anestesiar uma doente a quem o dentista ia tirar um dente. A extracção foi um sucesso, mas um prestigiado psiquiatra resolve dizer que a doente era uma histérica, desacreditando assim o uso do éter, embora nesse mesmo ano tivesse sido usado outra vez nos EUA, para extrair um pequeno tumor do pescoço. Num fim de tarde do dia 10 de Dezembro de 1844, numa pequena cidade do estado de Connecticut, Hartford, no Union Hall da cidade, realizou-se um grande espectáculo para observação dos efeitos obtidos pela inalação do gás protóxido de azoto, gás hilariante ou gás do riso. E no cartaz que promovia esta grande demonstração dizia-se que a organização dispunha de 40 galões de gás para ser usado por todos os que o quisessem fazer e quisessem com o seu auxílio, rir, cantar, falar ou lutar, de acordo com o carácter de cada um. Avisava-se no cartaz que os participantes «manteriam sempre um estado de consciência bastante para dizerem que não queriam inalar mais e que, por outro lado, estariam protegidas de actos menos dignos de terceiros, por oito homens fortes que ocuparão os lugares da frente, apenas para vos proteger». E anunciava ainda que o Professor Colton aproveitava esta demonstração como uma experiência científica, pelo que se cobrava uma entrada de 25 cêntimos.... Já anteriormente, pelas mãos de Humphry Davy, tinham sido feitos cartazes semelhantes, mas para plateias mais limitadas, como o que se mostra. Nesse mesmo ano de 1844, é usado pela primeira vez o protóxido de azoto, também para a extracção de um dente, pelo dentista Horace Wells e com o protóxido administrado pelo Dr. Colton. Desta vez o doente é um homem, não fosse aparecer outro psiquiatra a invocar a histeria. A extracção foi um êxito. O que levou o mesmo médico a voltar a usar o protóxido de azoto no mesmo doente, para a extracção de outro dente, mas dessa vez não correu tão bem e ainda por cima com a assistência de um afamado médico, de apelido Warren, que não evitou chamar charlatão ao médico, porque o dente se tinha partido. A ofensa foi tão violentamente sentida, que o Dr. Colton, acusado de charlatão, não aguentou a tensão psicológica e, chegado a sua casa, suicidou-se. Foi a primeira vítima da anestesia! Em 1846, Morton resolve usar novamente o éter para a extracção de um pequeno tumor do pescoço e curiosamente com o mesmo Dr. Warren na assistência, que, desta vez, não fez qualquer acusação. Há uma história ligada a esta, que permite alguma especulação. Sucedeu que não havendo naquele momento nenhum doente disponível para ser operado e não tendo aparecido qualquer voluntário, foi determinada e escolhida a vítima, cuja escolha caiu no motorista do hospital, que, por azar, tinha um tumor como o que era pretendido. Não diz a história se o motorista era negro, mas é de presumir que sim. E é neste mesmo ano de 1846, que aparece a palavra anestesia, introduzida por Oliver Holmes. Dissemos que o clorofórmio foi descoberto por três cientistas ao mesmo tempo, pois voltaram a ser dois cientistas quem simultaneamente defendem as propriedades anestésica do clorofórmio. O ano de 1847 é um ano referência para os anestesistas, sobretudo para os ingleses, pois que foi nesse ano que John Snow, se regista e é aceite como especialista em anestesia. Desconhecem-se as técnicas que usava, mas sem querer fazer humor forçado, não evito pensar que deveria usar a técnica do frio, não se chamasse ele snow... Nesse mesmo ano, 1847, Sir James Simpson usou o clorofórmio em operações de grande cirurgia e em partos. Também John Snow usou o clorofórmio em dois partos da rainha Vitória, uma técnica que viria a designar-se de técnica «à la reine». Uma das crianças era menina e esteve para se chamar Anestesia, como muitas inglesas se chamavam na altura, em homenagem ao parto indolor das mães. No entanto, a proposta foi derrotada na Corte Britânica e a princesa acabou por receber o nome de Beatrice. Também neste ano de 1847, aparece o primeiro português ligado à história da anestesia. Trata-se de Francisco Luiz Gomes, que nessa ano defendeu tese de doutoramento, em Montpellier, subordinada ao tema «Anestesia geral pelo éter». E em 1848, no ano seguinte portanto, aparecem as primeiras referências a anestesias feitas no Hospital Militar da Estrela, usando o clorofórmio. Em 1871, aparece o primeiro aparelho de interesse em auxílio da anestesia. Refiro-me ao «Iron Cilinder». Em 1875, Claude Bernard, usou pela primeira vez a morfina, setenta anos depois da sua descoberta, como pré medicação, conceito este também novo. Em 1885, realizam-se nos EUA, a primeira anestesia subaracnoideia, conhecida como raquianestesia e já com sucesso. Passados 10 anos são inventados na Alemanha, os tubos endotraqueais, o que entusiasma os cirurgiões a usarem raquianestesias, cuja técnica foi aperfeiçoada, sobretudo pelo francês Tuffier. Já no século XX, foi usada pela primeira vez a cocaína, por via epidural e caudal. Começa a ser usada a procaína, para anestesia intravenosa regional e em 1911 aparece o primeiro aparelho de Heidbrinck que é muito aperfeiçoado em 1924 e se mantém muitos anos em uso, usando o nome do seu inventor. Em 1920, Magill, desenvolve a chamada anestesia endotraqueal e inventa a ainda hoje usada pinça de Magill. Apareceu o tubo de Guedell para fixação da língua e a máscara de Ombrédanne. Nos EUA, descobre-se a vantagem de usar a soda para a absorção do CO2 , no mesmo ano em que é inventado um novo aparelho de anestesia designado por modelo Seattle. Em 1927, na Alemanha usa-se o barbitúrico, Pernoctan.. Sword, nos EUA, passa usar, desde 1928, filtros e anestesia em circuito fechado. O ciclopropano foi usado pela primeira vez em 1930, e em 1934 usou-se pela primeira vez, o pentotal. Aparece o vaporizador de Goldman. O ano de 1935 foi um ano glorioso para a anestesia. Foi introduzida a intubação traqueal, com pressão positiva directa e o uso dos curarizantes. E foi o ano em que Inglaterra reconhece finalmente esta especialidade médica, embora John Snow tivesse feito a sua inscrição em 1847. É possível ver-se que o desenvolvimento da anestesia foi feito à custa de várias descobertas, que mesmo que inicialmente ignoradas e pouco respeitadas, vieram posteriormente a mostrar-se interessantes. Mas, o grande progresso, deu-se com o aparecimento dos aparelhos, com a intubação endotraqueal, com o uso controlado das drogas, com a anestesia feita ciência médica exigente. Hoje, podemos dizer que depois desta longa e atribulada história, a anestesia é uma especialidade exigente e segura.

sábado, agosto 19, 2006

um certo amargo de boca

Mais uma vez, tempo de férias. Silly season, como é de bom tom dizer-se. Sorte a do tom, de quem ainda se pode dizer se é bom ou mau.
Dá já para perceber que a minha fase lunar está em quarto minguante acelerado. De facto, o mundo aparece-me como aquela bola achatada, que por força da rotina de girar, se entretém a baralhar tudo que nele se contém.
Talvez por isso, seja qual for o lado para que me volte, só vejo o que não quero ver, o que pensava não ter que ver; só ouço o que não quero ouvir e pensava nunca vir a ouvir; e o mundo aparece-me de pernas para o ar, em que tudo é e não é, ao mesmo tempo. Um mundo em que cada vez é mais difícil saber quando as coisas, os valores, os princípios, as palavras, ainda são o que eram ou quando já deixaram de o ser.
Reparem. Como explicar um mundo em que o tio big brother Sam, anuncia as guerras como se fossem espectáculos de circo? Quase todos os dias, destes últimos meses, os desgastados, rotineiros e vazios noticiários dos media, se referem à próxima guerra lá para o lado do oriente. A próxima. Ainda sem data. Única razão porque ainda se não deu a invasão de todos os outdoors de todos países, por vistosos cartazes, graficamente perfeitos e chamativos, que nos anunciarão que no próximo dia tal, pelas tantas horas, se efectuará «uma guerra uma», contra o país Y, sendo objecto e objectivo dessa guerra a destruição do perigoso facínora S. Neles se lerá que a guerra desenvolver-se-á em vários ataques e que o facínora será lidado por alguns milhares de categorizados atacantes, que actuarão por ar, mar e terra. E, em letras garrafais, o cartaz dirá ainda que a guerra será de surpresa. O anúncio do dia e da hora, tem apenas por finalidade avisar o facínora que deverá estar devidamente sentado no seu gabinete de trabalho, onde será procurado pelos atacantes ou atingido pelo míssil. A surpresa, será apenas para iludir o facínora, que pensando que a hora não é para respeitar, se deslocará por toda a casa e poderá assim ser apanhado de calças na mão.
Isto é o que se passa lá fora. Nós, portugueses, que estamos fora de tudo ou à sua margem, apenas nos espantamos quando vemos que todos mandam e decidem por nós. Mas vejamos o que se passa no rectângulo mais a oeste de tudo.
Também aqui se anunciam várias coisas. Por exemplo, que há Universidades, e cada vez mais, como há, e cada vez mais, licenciaturas, e que estas terão que desaparecer por não haver alunos e porque não se vê grande necessidade de ter licenciados a servir bicas. E, se houver falta, que venham os espanhóis, nuestros hermanos. Quanto ao ensino primário (de primeiro) e não digo básico, porque não gosto, também se anuncia que vão ser encerradas várias escolas. Talvez venham a ser, como sucedeu a algumas estações dos caminhos de ferro, transformadas em belíssimos bares, discotecas ou salas de fumo. Anuncia-se também que há disciplinas nucleares, que a acreditar no nome, constituem o núcleo do saber que vai ser construído à sua volta. Em linguagem de pato bravo lobbista, assim uma espécie de caboucos ou fundações. E depois, informam-nos os responsáveis deste silly país, que qualquer fundação serve, mesmo que seja abaixo do limite da resistência, mesmo que seja negativa ou quase zero. Silly, silly country.
E, nos mais importantes rectângulos deste rectângulo, todos bem relvados e bem iluminados para os festejos nocturnos, onde correm, quando correm, 22 homens atrás de uma bola e da barriga ou da mãe do árbitro, como poderemos entender, desde que não se esteja a fazer figura de parvo, que alguns deles sejam pagos com ordenados vinte vezes superiores ao do Presidente Mor do rectângulo, que, da tribuna de honra, algumas vezes os aplaude? Como entender que os «donos» desses homens, gestores dessas grandes empresas, que criaram essa máxima de que o que é bom para eles é bom para o país (estavam enganados se pensavam que tinha sido a General Motors), se dispensem de pagar os impostos devidos e o façam entregando uns maços de papéis sem valor? Silly, silly country.
O que se deve pensar ao sabermos que existe um novo sistema remuneratório para os médicos em serviço na urgência, que consta do pagamento de incentivos consoante o número de altas que derem aos doentes? Poder-se-á dizer que dar alta pressupõe tratar primeiro, e também verificar que não há doença, como pode suceder na Urgência. E, dito assim, pode parecer correcto. Mas, o incentivo diz apenas que será pago a quem der mais altas e consoante o número que for atingido. Dar alta, é assinar a papeleta. É colocar o doente dali para fora. Get out. Tu sais e eu recebo. Eles não estão lá para trabalhar e não são pagos para isso? Ah, isso era se fosse no estrangeiro? O. K., já percebi.
E que país é este, em que num programa em prime time, duma estação televisiva de grande audiência, um dos artistas mais considerados do rectângulo, o berdadeiro presidente da Juuuunta, convidou para o seu programa um outro artista, de várias artes, parece, apenas para ir ali declarar que sim, que era verdade que dormia com a mulher de fulano e que até passou a simpatizar com ele quando o conheceu, coitado, que até era muito simpático e que não, isso não, não era verdade que os filhos assistissem...
E que dizer de ... e de .... e de .... e de .... . Ide. Ide em paz.
Que país, que gente, que férias, que silly mundo.
Que crónica, meu Deus!


Publicado no n.º 160 da Revista do Auto Clube Médico Português Julho/Setembro de 2002 e publicado neste blog em Novembro de 2005, sem imagens