sexta-feira, janeiro 30, 2009

o vinho e o mosto - um exercício de intertextualidade 18


Meditei hoje, num intervalo de sentir, na forma de prosa que uso. Em verdade, como escrevo? Tive, como muitos têm tido, a vontade pervertida de querer ter um sistema e uma norma. É certo que escrevi antes da norma e do sistema; nisso, porém, não sou diferente dos outros.
Analisando-me à tarde, descubro que o meu sistema de estilo assenta em dois princípios, e imediatamente, à boa maneira dos bons clássicos, erijo esses dois princípios em fundamentos gerais de todo estilo: dizer o que se sente exactamente como se sente - claramente, se é claro; obscuramente, se é obscuro; confusamente, se é confuso -; compreender que a gramática é um instrumento, e não uma lei.
Fernando Pessoa


Será que só medito no intervalo do sentir ou também enquanto sinto? Mas não sinto eu tão intensamente que não resta espaço para meditar? Se medito não posso sentir tão intensamente como gosto de sentir, mas se não medito reduzo-me a simples terminais sensoriais. Terei conseguido explicar este raciocínio claramente? Seguramente que não, já que para poder escrever claro, teria que o pensar claro.
Gosto mais de sentir ou meditar? Será que o posso responder claramente? Sinto-me como um ser sensorial e sensível, que gosta de meditar, mas que o faz não com as regras do pensamento, mas com as regras com que escrevo – confusamente.
Certo é que quer sinta quer medite, o faço com as minhas regras, com a intensidade com que sei, com o abandono com que recebo e sinto – seja a sensação, seja o que medito.
CVR

quinta-feira, janeiro 29, 2009

o vinho e o mosto - um exercício de intertextualidade 17


Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não lhe posso tocar.
Fernando Pessoa


Entre mim e a vida não há um vidro, mas um estado de alma, um escudo defensivo, quase sempre, ofensivo muitas vezes, que, embora me permita vê-la com nitidez e na sua quase totalidade, me impede compreendê-la a maioria das vezes e por mais que me esforce.
Há sempre um pequeno degrau a subir ou a descer, entre a vida real e o real que ela me transmite ou me permite prever.
É qualquer coisa de indefinível, qualquer coisa de faz de conta, que baralha a realidade, as realidades da realidade. Comigo, o que se passa é que nunca posso afirmar, ter a certeza de que a vida é isto ou aquilo, qualquer coisa definível, mas antes qualquer coisa de incerto, que me parece ser assim como a penso, mas se vem a verificar ser o seu contrário.
A vida é difícil de viver. Imagine-se como será por quem a vê assim ou por quem dela apenas esta visão lhe é consentida.
As voltas que eu lhe daria se pudesse deitar-lhe a mão!
CVR

quarta-feira, janeiro 28, 2009

o vinho e o mosto - um exercício de intertextualidade 16


É humano querer o que nos é preciso, e é humano desejar o que não nos é preciso, mas é para nós desejável. O que é doença é desejar com igual intensidade o que é preciso e o que é desejável, e sofrer por não ser perfeito como se se sofresse por não ter pão. O mal romântico é este: é querer a lua como se houvesse maneira de a obter.

Fernando Pessoa


Com facilidade se confunde o que é necessário e o que é desejável. Tudo depende da força do desejo. Pode desejar-se tão intensamente, de uma forma tão constante e aparentemente real, que a dado momento não é desejo que se sente, mas a fome intensa e necessária, daquilo que o não é, nem nunca será. Tudo formas de sentir e intensidade de sentimentos. É precisar duma inutilidade, como de pão para a boca. É acreditar que se vai ter a lua, mesmo sabendo que aqueles que já a pisaram, só amostras trouxeram dela. E mesmo que essa realidade esteja presente, há alguma coisa melhor do que acreditar, não o fazendo, naquilo que sabemos inacessível, mas tão profundamente desejamos?
Toda a vida quis a lua e sempre me contentei em olhar para ela, esperar os seus ciclos, passear na lua cheia, sorrir para ela, confessar-lhe coisas secretas e acreditar que ela me ouve, me entende e vela por mim?
Há o necessário e há o desejável. Qual deles o mais necessário?

CVR

sexta-feira, janeiro 23, 2009

ensino ou comunicação?



Penso que qualquer pessoa se emociona com a beleza do espectáculo que aqui vos deixo. Mete impressão ver até que ponto se pode levar a comunicação entre treinador e treinados. Até que ponto pode ir a liderança. Os cavalos fazem o que o treinador lhes manda ou comungam com ele do prazer do espectáculo? Tudo se passa na região da Camarga e apenas sei que o equitador se chama Lorenzo. Vejam e revejam as vezes que vos apetecer.

quinta-feira, janeiro 22, 2009

o vinho e o mosto - um exercício de intertextualidade 15


De repente, como se um destino médico me houvesse operado de uma cegueira antiga com grandes resultados súbitos, ergo a cabeça, da minha vida anónima, para o conhecimento claro de como existo. E vejo que tudo quanto tenho feito, tudo quanto tenho pensado, tudo quanto tenho sido, é uma espécie de engano e de loucura. Maravilho-me do que consegui não ver. Estranho quanto fui e que vejo que afinal não sou.
Olho, como numa extensão ao sol que rompe nuvens, a minha vida passada; e noto, com um pasmo metafísico, como todos os meus gestos mais certos, as minhas ideias mais claras, e os meus propósitos mais lógicos, não foram, afinal, mais que bebedeira nata, loucura natural, grande desconhecimento. Nem sequer representei. Representaram-me. Fui, não o actor, mas os gestos dele.
Fernando Pessoa


De que me serve esta súbita cura da cegueira que foi minha vida? Acaso consigo fazer rewind e logo on, para uma nova vida emendada? Claro que não. E o que emendaria eu, se não sei sequer o que me levou a vivê-la assim e não da maneira que a minha actual não-cegueira aprovaria? Aprovaria, mesmo? É possível emendar-se uma vida quando se é geneticamente assim e não assado? Não me pergunto mais porque sinto eu este vazio que me desconforta e parece não ser meu, não ser em mim. Este não posso mais ignorá-lo, iludi-lo, fazer os gestos do actor que representa através de mim, usando meus gestos, usando-me, como todos fazem. E fazem-no de forma tão perfeita que quase me convenço que sou eu quem os está a usar. Puro engano. Vida de enganos. Poderia ser outra? Teria estado alguma vez nas minhas mão, a possibilidade de fazer da minha vida aquilo que sempre sonhei que ela fosse?
CVR

quarta-feira, janeiro 21, 2009

o vinho e o mosto - um exercício de intertextualidade 14


E, assim sou, fútil e sensível, capaz de impulsos violentos e absorventes, maus e bons, nobres e vis, mas nunca de um sentimento que subsista, nunca de uma emoção que continue, e entre para a substância da alma. Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa; uma impaciência da alma consigo mesma, como uma criança inoportuna; um desassossego sempre nascente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende. ….
Fernando Pessoa



Assim sou, realmente. Tudo me interessa e nada me prende. É tal a atenção, o estar disposto para o sonho e a novidade, que tudo atravessa meu pensamento, em movimento, sem um cristalizar de alma ou de emoção. De emoções, não, que essas são reais e traduzem-se em sentimentos rápidos e fugazes. Tenho a lágrima fácil, de tão rara ser. Quem me dera ser outro …
CVR

segunda-feira, janeiro 19, 2009

o vinho e o mosto - um exercício de intertextualidade 13


...Pertenço porém àquela espécie de homens
que estão sempre na margem daquilo a que
pertencem, nem vêem só a multidão de que
são, senão também os grandes espaços que há
ao lado.

Fernando Pessoa


Estou sempre por dentro de tudo e espantem-se senhores,
Por fora de tudo me encontro sempre.
Ninguém, como eu, assim o consegue.
Participante, por dentro e no dentro, de tanto facto, tanta ideia,
Que consiga estar tão historicamente fora, de tudo e de todos.
Incapacidade de líder, ou deste só a ideia e o arrancar da acção?
Aos outros, louros e proveitos e proventos.
Para mim, quanto muito a culpa, se a houver.
E o consolo de ver os grandes espaços ao lado
E, se possível, ver um pouco para além deles.

CVR

domingo, janeiro 18, 2009

o vinho e o mosto - um exercício de intertextualidade 12


Tantas caras curiosas! Todas as caras são curiosas
E nada traz tanta religiosidade como olhar muito para gente.

Fernando Pessoa


Só as caras do povo me impressionam.
Só nelas rugas e marcas são marcas e rugas. E a dor é dor.
Cara do povo, cara de gente.
Gosto de caras, a preto e branco. Preto no branco.

CVR

sábado, janeiro 17, 2009

o vinho e o mosto - um exercício de intertextualidade 11



Todo o meu sangue raiva por asas!
Fernando Pessoa



Raiva de não ter raiva as vezes sem conta
em que é preciso ter raiva para ter asas.

CVR

sexta-feira, janeiro 16, 2009

mercado de escravos

http://www.dailymotion.com/video/x6y6ck_the-job_shortfilms

The job
Enviado por trescourt

É terrível este vídeo. Antecipação ou realidade?
Custa a acreditar que há menos de 40 anos ainda se fazia esta contratação de mão de obra diária, para estivadores, trabalhadores rurais e outras profissões menos diferenciadas e, por isso, mais exploradas.
Será que vai chegar mesmo o dia em que esta escravatura volta, mesmo para os mais diferenciados?
Não dá para sorrir, só dá para pensar.

o vinho e o mosto - um exercício de intertextualidade 10


Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantos mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Fernando Pessoa


Onde se chega sem sofrimento, sem dor?
O céu estará no fim duma prova de fogo de privações e dores?
Sim ou não, outros o saberão.
Mas, sempre há que passar além da dor
e todos temos nossos Bojadores a passar.
Para que seja nosso, nosso mar.
Aquele que queremos navegar, agora, hoje, depois.
Aquele em que queremos navegar hoje e sempre.
As lágrimas são o tempero das emoções.
Seu vinagre, seu sal. Por isso, meus olhos ardem...

CVR

quinta-feira, janeiro 15, 2009

o vinho e o mosto - um exercício de intertextualidade 9

Quem sabe se eu estarei morto depois de amanhã?
Se eu estiver morto depois de amanhã, a trovoada de depois de amanhã
Será outra trovoada do que seria se eu não tivesse morrido.
Bem sei que a trovoada não cai na minha vista,
Mas se eu não estiver no mundo,
O mundo será diferente --
Haverá eu a menos --
E a trovoada cairá num mundo diferente e não será a mesma trovoada.

Fernando Pessoa


Quem sabe se nem ao fim destas linhas chegarei?
Insegurança do destino que me amachuca, me domina.
Porque não temos validade, como as coisas?
Como máquinas, temos peças e sistemas.
Somos pessoas, não coisas, eu sei.
Onde está a garantia de nossas peças e sistemas?
Porquê Deus, ao escrever Made in Hell, se esquece do principal?
Quem baliza nosso mal estar, nossa angústia?
Continuariam a marcar amargamente nossas vidas
se tivéssemos prazo de validade?
E se tivéssemos controle de qualidade?
Quantos de nós não viveriam?
Quantos seriam lançados em vidas de saldos?
Teria eu chegado ao fim destas linhas?

CVR

quarta-feira, janeiro 14, 2009

o vinho e o mosto - um exercício de intertextualidade 8


Bem sei: a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol, aos outros, que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoa, chuvas, escuros -- isso tenho eu em mim.

Fernando Pessoa


Névoas, chuvas, escuros, isso tudo tenho em mim.
E sol e trovoadas e aguaceiros e humidade agressiva
e chuva miudinha, de modorra, cansativa e chateante .
Um catavento e um arco-iris, tormentas e primaveras
tudo isso eu tenho em mim. E, o tempo? Que tem comigo?
Que transforma meu olhar em sol, minha boca em nascente,
minha palavra em leite?
Eu, ou tu -- outros?
E, quem faz de meus olhos víboras, de minha boca máscara,
de minhas palavras espadas --gumes?
Eu, ou tu -- outros?
Até a penumbra é linda, elegante, suportável.
Mas nada como a claridade que de nós se desprende,
quando se desprende...

CVR

segunda-feira, janeiro 12, 2009

o vinho e o mosto - um exercício de intertextualidade 7


Li hoje quase duas páginas
Do livro dum poeta místico,
E ri como quem tem chorado muito.

Fernando Pessoa


Rio muitas vezes até às lágrimas.
O que nada tem a ver com rir como quem chora
Ou com o rir para não chorar.
Tudo coisas diferentes ou formas diferentes da mesma coisa.
Do que eu gostava mesmo era de rir por rir
Rir em estado puro, não contaminado.
Nem pelas adjacências de outros sentimentos.
Riso claro, espontâneo, verdadeiro, cristalino.
Quebrável...

CVR

domingo, janeiro 11, 2009

o vinho e o mosto - um exercício de intertextualidade 6

O diário de Amiel doeu-me sempre por minha causa.
Quando cheguei àquele ponto em que ele diz
que sobre ele desceu o fruto do espírito como
sendo a ''consciência da consciência '' (...) senti
uma referência directa à minha alma
.
Fernando Pessoa



Tenho muitas vezes consciência da minha consciência.

É o subconsciente quem mo diz.

Que inconsciente que isto parece.

Subconsciente. Matriz de tudo.

Código do ser e do estar na vida.

O que está lá, está lá. Acredite-se ou não em Freud.

Por mim tanto me faz, que Freud tenha ou não razão.

Agrada-me isso sim é saber, é sentir que

Tenho consciência mesmo quando sou inconsciente.

CVR

sábado, janeiro 10, 2009

o vinho e o mosto - um exercício de intertextualidade 5


Entre o luar e a folhagem,
Entre o sossego e o arvoredo,
Entre o ser noite e haver aragem
Passa um segredo.

Fernando Pessoa


Um segredo passa onde quisermos que passe

Onde fizermos que ele exista, se revele.

Não aos que o não vêem, mas a nós que para ele temos olhos.

Os atentos à vida e ao seu respirar

em cada canto encontram segredos.

O melhor que a inteligência tem, se os sentidos acompanham,

é a capacidade de inventar maravilhas, de desdobrar o real.

De se maravilhar com o comum e com o inhabitual.

O melhor da inteligência é ser o contrário da estupidez.

CVR