quarta-feira, novembro 28, 2012

o menino que gaspar não conhece


 
No passado dia 21 de Novembro, Nicolau Santos publicou no Expresso um curto artigo que intitulou «O menino que Gaspar não conhece», que não posso deixar de aqui postar, dada a triste realidade que que descreve e a triste e desumana insensibilidade de que o governo dá provas irrefutáveis em cada um dos nossos tristes dias. Leiam. É bem escrito, como sempre, claro, real e demolidor.


«Supermercado do centro comercial das Amoreiras, fim da tarde de terça-feira. Uma jovem mãe, acompa-nhada do filho com seis anos, está a pagar algumas compras que fez: leite, manteiga, fiambre, detergentes e mais alguns produtos.

Quando chega ao fim, a empregada da caixa revela: são 84 euros. A mãe tem um sobressalto, olha para o dinheiro que traz na mão e diz: vou ter de deixar algumas coisas. Só tenho 70 euros.

Começa a pôr de lado vários produtos e vai perguntando à empregada da caixa se já chega. Não, ainda não. Ainda falta. Mais uma coisa. Outra. Ainda é preciso mais? É. Então este pacote de bolachas também fica.

Aí o menino agarra na manga do casaco da mãe e fala: Mamã, as bolachas não, as bolachas não. São as que eu levo para a escola. A mãe, meio envergonhada até porque a fila por trás dela começava a engrossar, responde: tem de ser, meu filho. E o menino de

lágrima no canto do olho a insistir: mamã, as bolachas não. As bolachas não.

O momento embaraçoso é quebrado pela senhora atrás da jovem mãe. Quanto são as bolachas, pergunta à empregada da caixa. Ponha na minha conta. O menino sorriu. Mas foi um sorriso muito envergonhado. A mãe agradeceu ainda mais envergonhada. A pobreza de quem nunca pensou que um dia ia ser pobre enche de vergonha e pudor os que a sofrem.

Tenho a certeza que o ministro Vítor Gaspar não conhece este menino, o que seria obviamente muito improvável. Mas desconfio que o ministro Vítor Gaspar não conhece nenhuns meninos que estejam a passar pela mesma situação. Ou se conhece considera que esse é o preço a pagar pela famoso ajustamento. É isso que é muito preocupante».


sobre números e pessoas


 
 
Chegou-me recentemente às mãos um artigo que o psiquiatra Pedro Afonso publicou  no Público, que merece maior difusão que pode ser feita nos imensos blogs que se publicam. Entendo que o tema merece reflexão profunda de todos nós e à qual os dirigentes (governantes?) não podem nem devem esquivar-se. Aqui o deixo à vossa consideração.
 
 
 
«Alguns dedicam-se obsessivamente aos números e às estatísticas esquecendo que a sociedade é feita de pessoas.

Recentemente, ficámos a saber, através do primeiro estudo epidemiológico nacional de Saúde Mental, que Portugal é o país da Europa com a maior prevalência de doenças mentais na população. No último ano, um em cada cinco portugueses sofreu de uma doença
psiquiátrica (23%) e quase metade (43%) já teve uma destas perturbações durante a vida.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque assisto com impotência a uma sociedade perturbada e doente em que violência,urdida nos jogos e na televisão, faz parte da ração diária das crianças e adolescentes. Neste redil de insanidade, vejo jovens infantilizados incapazes de construírem um projecto de vida, escravos
dos seus insaciáveis desejos e adulados por pais que satisfazem todos os seus caprichos, expiando uma culpa muitas vezes imaginária. Na escola, estes jovens adquiriram um estatuto de semideus, pois todos terão de fazer um esforço sobrenatural para lhes imprimirem a vontade
de adquirir conhecimentos, ainda que estes não o desejem. É natural que assim seja, dado que a actual sociedade os inebria de direitos, criando-lhes a ilusão absurda de que podem ser mestres de si próprios.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque, nos últimos quinze anos, o divórcio quintuplicou, alcançando 60 divórcios por cada 100 casamentos (dados de 2008). As crises conjugais são também um reflexo das crises sociais. Se não houver vínculos estáveis entre seres humanos não existe uma sociedade forte, capaz de criar empresas
sólidas e fomentar a prosperidade. Enquanto o legislador se entretém maquinalmente a produzir leis que entronizam o divórcio sem culpa, deparo-me com mulheres compungidas, reféns do estado de alma dos ex-cônjuges para lhes garantirem o pagamento da miserável pensão de alimentos.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque se torna cada vez mais difícil, para quem tem filhos, conciliar o trabalho e a família.
Nas empresas, os directores insanos consideram que a presença prolongada no trabalho é sinónimo de maior compromisso e
produtividade. Portanto é fácil perceber que, para quem perde cerca de três horas nas deslocações diárias entre o trabalho, a escola e a casa, seja difícil ter tempo para os filhos. Recordo o rosto de uma mãe marejado de lágrimas e com o coração dilacerado por andar tão cansada que quase se tornou impossível brincar com o seu filho de três anos.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque a taxa de desemprego em Portugal afecta mais de meio milhão de cidadãos. Tenho presenciado muitos casos de homens e mulheres que, humilhados pela falta de trabalho, se sentem rendidos e impotentes perante a maldição da pobreza. Observo as suas mãos, calejadas pelo trabalho manual,
tornadas inúteis, segurando um papel encardido da Segurança Social.

Interessa-me a saúde mental dos portugueses porque é difícil aceitar
que alguém sobreviva dignamente com pouco mais de 600 euros por mês, enquanto outros, sem mérito e trabalho, se dedicam impunemente à actividade da pilhagem do erário público.
Fito com assombro e complacência os olhos de revolta daqueles que estão cansados de escutar repetidamente que é necessário fazer mais sacrifícios quando  já há muito foram dizimados pela praga da miséria.

Finalmente, interessa-me a saúde mental de alguns portugueses com responsabilidades governativas porque se dedicam obsessivamente aos números e às estatísticas esquecendo que a sociedade é feita de pessoas. Entretanto, com a sua displicência e inépcia, construíram um mecanismo oleado que vai inexoravelmente triturando as mentes sãs de um povo, criando condições sociais que favorecem uma decadência neuronal colectiva, multiplicando, deste modo, as doenças mentais.

E hesito em prescrever antidepressivos e ansiolíticos a quem tem o estômago vazio e a cabeça cheia de promessas de uma justiça que se há-de concretizar; e luto contra o demónio do desespero, mas sinto uma inquietação culposa diante destes rostos que me visitam diariamente».

Pedro Afonso
Médico psiquiatra
 
 
 
 
 
 

sábado, novembro 24, 2012

quando nós falávamos alto

Há já longo tempo que não temos possibilidade de escrever sobre coisas positivas e boas, merecedoras de admiração e respeito. Não porque seja isso que nos apetece, mas simplesmente porque 'vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar', como bem escreveu Sophia.
Mas hoje quero deixar aqui um vídeo que nos traz um bafo de alma e nos dá alguma força para continuarmos. Só nos faz bem e nos ajuda a relembrar o nosso grandioso passado. Pena que quem nos julga hoje pequenos não se lembre do tamanho da alma portuguesa.


sobre finanças (e chimpanzés)

 
 
Na Visão de 22 de Novembro de 2012, Ricardo Araújo Pereira publicou na sua coluna Boca do Inferno, esta magnífica crónica que, como todas, merece divulgação.
Será que esta gente que nos desgoverna não para um segundo para pensar?
 
 
Notas sobre finanças (e chimpanzés)
 
Após alguma reflexão sobre o assunto, ocor­reu-me que talvez fosse importante que alguém apresentasse Vítor Gas­par a um ser humano. Podia ser um encontro discreto, a dois, só com um terceiro elemento que come­çasse por fazer as honras: «Vítor, é o ser humano. Ser humano, é o Vítor.» E depois ficavam a sós, a conviver um bocadinho.
Perspicaz como é, o ministro haveria de reparar que, entre o ser humano e um algarismo, há duas ou três diferenças. O ser humano comparece com pouca frequên­cia nas folhas de excel, ao contrário do algarismo. E o algarismo não passa fome nem morre, ao contrário do ser humano. É raro encontrarmos uma lápide, no cemitério, com a inscrição: «Aqui jaz o algarismo 7. Faleceu na sequência de um engano numa multiplicação. Paz à sua alma.» Mal o ministro tivesse percebido bem a diferença entre o ser humano e os números, poderia voltar às suas folhas de cálculo. Admito que se trata de uma experiência inédita, mas gostaria muito de a ver posta em prática.
Houve um tempo em que quem não soubesse de economia estava excluído da discussão política. Felizmente, esse tempo acabou. Os que percebem de eco­nomia são os primeiros a errar todos os cálculos, falhar todas as previsões, agravar os problemas que pretendiam resolver. As propostas de um leigo talvez sejam absurdas, irrealistas e inexequíveis. Não faz mal: as do ministro também são. Estamos todos em pé de igualdade.
A realidade não aprecia economistas. Se um chimpanzé fosse ministro das Finan­ças, talvez a dívida aumentasse, o desem­prego subisse e a recessão se agravasse. Ou seja, ninguém notava.
Como toda a gente, também tenho uma sugestão para reduzir a despesa. Propo­nho que Portugal venda uma auto-estrada para o Porto. Temos três, e não precisamos de todas. Há-de haver um país que esteja interessado numa auto-estrada para o Porto. Não há nenhuma auto-estrada para o Porto no Canadá, por exemplo. Nem na Noruega. (Eu confirmei estes dados.) São países ricos, aos quais uma auto-estrada para o Porto pode dar jeito. Fica a proposta. Não é a mais absurda que já vi. (...)
Ricardo Araújo Pereira escreve de acordo com a antiga ortografia

segunda-feira, novembro 19, 2012

uma verdadeira praga bíblica

 
Sem comentários
 
Os fantasmas
Esta coisa de escrever crónicas “é um jogo permanente entre o estilo e a substância”. Uma luta entre “o deboche estilístico” do gozo da escrita e “a frieza analítica” do pensamento do cronista. Por isso, enquanto cidadão, só posso ver este governo como uma verdadeira praga bíblica que caiu sobre um povo que o não merecia. Mas, enquanto cronista, encaro-o como uma dádiva dos céus, um maná dos deuses, “um harém de metáforas”, uma verdadeira girândola de piruetas estilísticas. Tomemos como exemplo o ministro Gaspar. Licenciado e doutorado em Economia, fez parte da carreira em Bruxelas onde foi director do Departamento de Estudos do BCE. Por cá, passou pelo Banco de Portugal, foi chefe de gabinete de Miguel Beleza e colaborador de Braga de Macedo. É o actual ministro das Finanças. Pois bem. O cronista olha para este “talento” e que vê nele? Um retardado mental? Uma rábula com olheiras? Um pantomineiro idiota? Não me compete, enquanto cidadão, dar a resposta. Mas não posso deixar de referir a reacção ministerial à manifestação de 15 de Setembro que, repito, adjectivava os governantes onde se inclui o soporífero Gaspar, como “gatunos, mafiosos, carteiristas, chulos, chupistas, vigaristas, filhos da puta”. Pois bem. Gaspar afirmou na Assembleia da República que o povo português, este mesmo povo português que assim se referia ao seu governo, “revelou-se o melhor povo do mundo e o melhor activo de Portugal”! Assumpção autocrítica de alguém que também é capaz de, lucidamente, se entender, por exemplo, como um “chulo” do país? Incapacidade congénita de interpretar o designativo metafórico de “filhos da puta”? Não me parece. Parece-me sim um exercício de cinismo, sarcástico e obsceno, de quem se está simplesmente “a cagar” para o povo que protesta. A ser assim, julgo como perfeitamente adequado repetir aqui uma passagem de um texto em forma de requerimento “poético” de 1934. Assim: “A Nação confiou-lhe os seus destinos?... / Então, comprima, aperte os intestinos. / Se lhe escapar um traque, não se importe… / Quem sabe se o cheirá-lo nos dá sorte? / Quantos porão as suas esperanças / Num traque do ministro das Finanças?... / E quem viver aflito, sem recursos / Já não distingue os traques dos discursos.” Provavelmente o sr. ministro desconhecerá a história daquele gajo que era tão feio, tão feio, que os gases andavam sempre num vaivém constante para cima e para baixo, sem saber se sair pela boca se pelo ânus, dado que os dois orifícios esteticamente se confundiam. Pois bem. O sr. ministro é o primeiro, honra lhe seja concedida, que já confunde os traques com os discursos. Os seus. Desta vez, o traque saiu-­‐lhe pelo local de onde deveria ter saído o discurso! Ou seja e desculpar-me-ão a grosseria linguística, em vez de falar, “cagou-se”. Para o povo português. Lamentavelmente.
Outro exemplar destes políticos que fazem as delícias de um cronista é Cavaco Silva. Cavaco está politicamente senil. Soletra umas solenidades de circunstância, meia-dúzia de banalidades e, limitado intelectualmente como é, permanece “amarrado à âncora da sua ignorância”. Só neste contexto se compreende o espanto expresso publicamente com “o sorriso das vacas”, as lamúrias por uma reforma insuficiente de 10 mil euros mensais, a constante repetição do “estou muito preocupado” e outros lugares-­comuns que fazem deste parolo de Boliqueime uma fotocópia histórica de Américo Tomás, o almirante de Salazar. Já o escrevi aqui várias vezes. Na cabeça de Cavaco reina um vácuo absoluto. Pelo que, quando fala, balbucia algumas baboseiras lapalicianas reveladoras de quem não pode falar do mundo complexo em que vivemos com a inteligência de um homem de Estado. Simplesmente porque não a tem. Cavaco é uma irrelevância de quem nada há a esperar, a não ser afirmações como a recentemente proferida aquando das comemorações do 5 de Outubro de que “o futuro são os jovens deste país”! Pudera! Cavaco não surpreenderia ninguém se subscrevesse por exemplo a afirmação do Tomás ao referir-se à promulgação de um qualquer despacho número cem dizendo que lhe fora dado esse número “não por acaso mas porque ele vem na sequência de outros noventa e nove anteriores…” Tal e qual. Termino esta crónica socorrendo-me da adaptação feliz de um aforismo do comendador Marques de Correia e que diz assim: “Faz de Gaspar um novo Salazar, faz de Cavaco um novo Tomás e canta ó tempo volta para trás”. É que só falta mesmo isso. Que o tempo volte para trás. Porque Salazar e Tomás já os temos por cá. P.S.: Permitam-me a assumpção da mea culpa. Critiquei aqui violentamente José Sócrates. Mantenho o que disse. Mas hoje, comparando-o com esse garotelho sem qualquer arcaboiço para governar chamado Passos Coelho, reconheço que é como comparar merda com pudim. Para Sócrates, obviamente, a metáfora do pudim. Sinceramente, nunca pensei ter de escrever isto.
 
Luís Manuel Cunha, Professor, In “Jornal de Barcelos” de 10.10.2012

se a evolução for esta