segunda-feira, setembro 24, 2012

domingo, setembro 23, 2012

terça-feira, setembro 18, 2012

baaaaaasta

 
Na página Cartas Abertas da Revista do Expresso de 15 de Setembro de 2012, o Comendador Marques de Correia publicava mais uma das suas viperinas cartas, embrulhada como sempre no melhor humor negro que se pratica em Portugal. Em complemento da inesquecível, desejada e esperada manifestação colectiva deste Portugal abusado e desrespeitado por quem se julga poder, publico esta última carta do Comendador em que ele próprio assume que -

«numa comovedora peça,apoia a política do primeiro-mi­nistro, sem corar nem nada»
 
«A MINHA PRIMEIRA RAZÃO para apoiar o dr. Passos Coelho é que as coisas podiam ser piores. Por exemplo: - Ele podia ser agente da peste bubóni­ca ou doutra praga qualquer; - Ele podia ter decretado a morte de todas as pessoas com 55 anos ou mais; - Ele podia ter decidido que os funcioná­rios públicos tinham de se chamar Ar­mindo ou Epifânia para poderem conti­nuar a receber, pelo menos, um salário por ano; - Ele podia ter obrigado os homens com rendimentos superiores a 1000 euros a casarem com a Dona Teresa Guilherme; - Ele podia ter decretado que as senho­ras solteiras, viúvas ou divorciadas não tinham direito à Segurança Social, a menos que casassem com um homem indicado pelo dr. Relvas, ou por alguém com equivalência a dr. Relvas; - Ele podia ter estatuído que apenas o Real Massamá podia ganhar jogos de futebol e que as telenovelas da SIC e da 1VI acabavam sem se conhecer o final; Enfim, ele podia muita coisa e, compara­do com o que acabo de descrever, a única coisa que fez foi cortar-nos 7% do rendimento. Ora isto, comparado com a peste negra, com o extermínio, com o fim das telenovelas, com a impossibilida­de de Benfica, Porto, Sporting ou mesmo o Braga ganharem o campeonato e outras malvadezas assim, nem parece muito. É, basicamente, por estes motivos que eu digo que podia ser pior e que devemos apoiar o dr. Passos Coelho. Há, ainda, outro motivo para não o contrariar e que todos conhecemos. Tem a ver com o tipo de pessoas que nunca se devem contrariar. porque isso é - digamos - contraprodu­cente. A propósito de contrapro- ducente: apesar de estar convencido de que a medida que o Governo tomou é contraproducente, penso que será ainda mais contraprodu­cente argumentar com o facto de ela ser contraprodu­cente. A gente deve é, pelo contrário, incentivar o dr. Passos Coelho a ir mais longe. Tipo como se fazia dantes em Alcântara: - É só isto? Ganda maricas! Vê lá se consegues cortar, assim tipo 12%? Ou outras coisas, como: - Na Segurança Social, minha ganda menina No lRS é que era de homem e nas grandes fortunas dar-lhe uns 400 por cento de imposto que é para eles terem de pagar se quiserem ser ricos! Ao contrário, os nossos políticos, como lhes falta imaginação vêm todos dizer a mesma coisa: que isto é uma tragédia e que o país assim acaba, como se o país não acabasse de qualquer maneira, sendo apenas uma questão de mais ou menos mil anos, o que não é nada na escala cósmica. Na verdade, ser apaga­do do mapa por Passos Coelho ou por mn meteortto não faz.grande diferen .. ça Talvez com o meteorito doa me- nos, mas tirando isso o resultado é igual. É também com base neste pensamento elevado (até porque é de cima que vêm os meteoritos e os impostos), acho que devíamos incentivar o dr. Passos Coelho a ir mais longe. -A Espanha? - Não, mais longe! -A França? - Ainda mais longe! -À Rússia? - Mais longe, mais longe! -À China? - Não estás a perceber, é mais longe! -A Marte! - Ora aí está! O dr. Passos Coelho devía ir a Marte porque além de poder haver marcianos dispostos a pagar taxas sub­venções e impostos, o que ajuda, as viagens educam a juventude e nós acha­mos que ele merecia ir, digamos, arejar as ideias, para que quando voltasse não levasse o país tão a sério e desistisse, por fim, de salvá-lo. Porque nós, os tugas, não queremos ser salvos! Acreditamos que a intenção do primeiro-ministro seja endireitar o país e pô-lo nos eixos. Apoiamo-lo nisso e desejamos o melhor para ele, queremos que ele vá mais longe e isso tudo. Mas, mal agradecidos, como de costume, preferíamos que o Governo nos deixasse com os 7% no bolso. Pode ser?» 

domingo, setembro 16, 2012

o funeral de portugal

Sem palavras. Em Guimarães, Capital da Cultura e Berço de Portugal. Representação ou realidade? A realidade é que ontem o povo voltou finalmente à rua, para dizer BASTA.
 
 

terça-feira, setembro 11, 2012

em nome da equidade


Acabou de me chegar às mãos esta magnífica Carta Aberta ao Primeiro Ministro, escrita e endereçada ontem por uma figura notável da cultura portuguesa. Deixo uma pequena nota biográfica para aqueles menos ligados à cultura. Mas o que interessa, realmente, é a leitura da carta, especialmente pelo leitor a quem vai dirigida. Espero que saiba ler.
 

Eugénio Lisboa
O autor foi presidente da Comissão Nacional da UNESCO / conselheiro Cultural da Embaixada de Portugal em Londres entre 1978-1995 / professor catedrático especial de Estudos Portugueses na Universidade de Nottingham / professor catedrático visitante da Universidade de Aveiro / e coordenador do ensino da língua portuguesa na Suécia. É Doutor Honoris Causa pelas universidades de Nottingham e Aveiro. A Câmara de Cascais outorgou-lhe a medalha de Mérito Cultural.

Em Moçambique foi sucessivamente administrador e director das petrolíferas SONAPMOC, SONAREP e TOTAL.


CARTA AO PRIMEIRO-MINISTRO DE PORTUGAL

Exmo. Senhor Primeiro Ministro

Hesitei muito em dirigir-lhe estas palavras, que mais não dão do que uma pálida ideia da onda de indignação que varre o país, de norte a sul, e de leste a oeste. Além do mais, não é meu costume nem vocação escrever coisas de cariz político, mais me inclinando para o pelouro cultural. Mas há momentos em que, mesmo que não vamos nós ao encontro da política, vem ela, irresistivelmente, ao nosso encontro. E, então, não há que fugir-lhe.

Para ser inteiramente franco, escrevo-lhe, não tanto por acreditar que vá ter em V. Exa. qualquer efeito  —  todo o vosso comportamento, neste primeiro ano de governo, traindo, inescrupulosamente, todas as promessas feitas em campanha eleitoral, não convida à esperança numa reviravolta! — mas, antes, para ficar de bem com a minha consciência. Tenho 82 anos e pouco me restará de vida, o que significa que, a mim, já pouco mal poderá infligir V. Exa. e o algum que me inflija será sempre de curta duração. É aquilo a que costumo chamar“as vantagens do túmulo” ou, se preferir, a coragem que dá a proximidade do túmulo. Tanto o que me dê como o que me tire será sempre de curta duração. Não será, pois, de mim que falo, mesmo quando use, na frase, o “odioso eu”, a que aludia Pascal.

Mas tenho, como disse, 82 anos e, portanto, uma alongada e bem vivida experiência da velhice — a minha e da dos meus amigos e familiares. A velhice é um pouco — ou é muito – a experiência de uma contínua e ininterrupta perda de poderes. “Desistir é a derradeira tragédia”, disse um escritor pouco conhecido. Desistir é aquilo que vão fazendo, sem cessar, os que envelhecem. Desistir, palavra horrível. Estamos no verão, no momento em que escrevo isto, e acorrem-me as palavras tremendas de um grande poeta inglês do século XX (Eliot):“Um velho, num mês de secura”... A velhice, encarquilhando-se, no meio da desolação e da secura. É para isto que servem os poetas: para encontrarem, em poucas palavras, a medalha eficaz e definitiva para uma situação, uma visão, uma emoção ou uma ideia.

A velhice, Senhor Primeiro Ministro, é, com as dores que arrasta — as físicas, as emotivas e as morais — um período bem difícil de atravessar. Já alguém a definiu como o departamento dos doentes externos do Purgatório. E uma grande contista da Nova Zelândia, que dava pelo nome de Katherine Mansfield, com a afinada sensibilidade e sabedoria da vida, de que V. Exa. e o seu governo parecem ter défice, observou, num dos contos singulares do seu belíssimo livro intituladoThe Garden Party: “O velho Sr. Neave achava-se demasiado velho para a primavera.” Ser velho é também isto: acharmos que a primavera já não é para nós, que não temos direito a ela, que estamos a mais, dentro dela... Já foi nossa, já, de certo modo, nos definiu. Hoje, não. Hoje, sentimos que já não interessamos, que, até, incomodamos.Todo o discurso político de V. Exas., os do governo, todas as vossas decisões apontam na mesma direcção: mandar-nos para o cimo da montanha, embrulhados em metade de uma velha manta, à espera de que o urso lendário (ou o frio) venha tomar conta de nós. Cortam-nos tudo, o conforto, o direito de nos sentirmos, não digo amados (seria muito), mas, de algum modo, utilizáveis: sempre temos umas pitadas de sabedoria caseira a propiciar aos mais estouvados e impulsivos da nova casta que nos assola. Mas não. Pessoas, como eu, estiveram, até depois dos 65 anos, sem gastar um tostão ao Estado, com a sua saúde ou com a falta dela. Sempre, no entanto, descontando uma fatia pesada do seu salário, para uma ADSE, que talvez nos fosse útil, num período de necessidade, que se foi desejando longínquo. Chegado, já sobre o tarde, o momento de alguma necessidade, tudo nos é retirado, sem uma atenção, pequena que fosse, ao contrato anteriormente firmado. É quando mais necessitamos, para lutar contra a doença, contra a dor e contra o isolamento gradativamente crescente, que nos constituímos em alvo favorito do tiroteio fiscal: subsídios (que não passavam de uma forma de disfarçar a incompetência salarial), comparticipações nos custos da saúde, actualizações salariais — tudo pela borda fora. Incluindo, também, esse papel embaraçoso que é a Constituição, particularmente odiada por estes novos fundibulários. O que é preciso é salvar os ricos, os bancos, que andaram a brincar à Dona Branca com o nosso dinheiro e as empresas de tubarões, que enriquecem sem arriscar um cabelo, em simbiose sinistra com um Estado que dá o que não é dele e paga o que diz não ter, para que eles enriqueçam mais, passando a fruir o que também não é deles, porque até é nosso.

Já alguém, aludindo à mesma falta de sensibilidade de que V. Exa. dá provas, em relação à velhice e aos seus poderes decrescentes e mal apoiados, sugeriu, com humor ferino, que se atirassem os velhos e os reformados para asilos desguarnecidos, situados, de preferência, em andares altos de prédios muito altos: de um 14º andar, explicava, a desolação que se comtempla até passa por paisagem. V. Exa. e os do seu governo exibem uma sensibilidade muito, mas mesmo muito, neste gosto. V. Exas. transformam a velhice num crime punível pela medida grande. As políticas radicais de V. Exa, e do seu robôtico Ministro das Finanças — sim, porque a Troika informou que as políticas são vossas e não deles... — têm levado a isto: a uma total anestesia das antenas sociais ou simplesmente humanas, que caracterizam aqueles grandes políticos e estadistas que a História não confina a míseras notas de pé de página.

Falei da velhice porque é o pelouro que, de momento, tenho mais à mão. Mas o sofrimento devastador, que o fundamentalismo ideológico de V. Exa. está desencadear pelo país fora, afecta muito mais do que a fatia dos velhos e reformados. Jovens sem emprego e sem futuro à vista, homens e mulheres de todas as idades e de todos os caminhos da vida — tudo é queimado no altar ideológico onde arde a chama de um dogma cego à fria realidade dos factos e dos resultados.Dizia Joan Ruddock não acreditar que radicalismo e bom senso fossem incompatíveis. V. Exa. e o seu governo provam que o são: não há forma de conviverem pacificamente. Nisto, estou muito de acordo com a sensatez do antigo ministro conservador inglês, Francis Pym, que teve a ousadia de avisar a Primeira Ministra Margaret Thatcher (uma expoente do extremismo neoliberal), nestes  termos: “Extremismo e conservantismo são termos contraditórios”. Pym pagou, é claro, a factura: se a memória me não engana, foi o primeiro membro do primeiro governo de Thatcher a ser despedido, sem apelo nem agravo. A “conservadora” Margaret Thatcher — como o “conservador” Passos Coelho — quis misturar água com azeite, isto é, conservantismo e extremismo. Claro que não dá.

Alguém observava que os americanos ficavam muito admirados quando se sabiam odiados. É possível que, no governo e no partido a que V. Exa. preside, a maior parte dos seus constituintes não se aperceba bem (ou, apercebendo-se, não compreenda), de que lavra, no país, um grande incêndio de ressentimento e ódio.Darei a V. Exa. — e com isto termino — uma pista para um bom entendimento do que se está a passar. Atribuíram-se ao Papa Gregório VII estas palavras: “Eu amei a justiça e odiei a iniquidade: por isso, morro no exílio.” Uma grande parte da população portuguesa, hoje, sente-se exilada no seu próprio país, pelo delito de pedir mais justiça e mais equidade. Tanto uma como outra se fazem, cada dia, mais invisíveis. Há nisto, é claro, um perigo.


De V. Exa., atentamente,

Eugénio Lisboa
Etiquetas: Austeridade, Carta-aberta ao PM

terça-feira, setembro 04, 2012

um grito que se quer ecooooo...

Cada vez o mundo está pior, desgraçadamente virado do avesso. São muitos - os seus habitantes, os seus políticos - que sabem ou parecem saber qual o caminho para sairmos deste buraco distorcido em que vivemos as nossas vidas. No entanto, são poucos os gritos que se ouvem e apelam ao bom senso e à luta certa, no local certo, contra o verdadeiro inimigo e não contra o seu virtual espantalho. Este pequeno discurso proferido na conferência Rio mais 20 pelo Presidente do Uruguai é de uma enorme sensatez e seriedade. Merece ser escutado. É um grito bom, salvador.

 

sábado, setembro 01, 2012

um tiro global


Publicado recentemente no prestigiado diário espanhol El Pais, este texto intitulado «Um canhão pelo cu», da autoria de Juan José Millas, tem-se tornado adoptado por inteiro por todos aqueles que percebendo o que aqui se escreve não eram capazes de o verbalizar ou escrever. Merece a vossa leitura e meditação.
Um canhão pelo cú

Se percebemos bem - e não é fácil, porque somos um bocado tontos -, a economia financeira é a economia real do senhor feudal sobre o servo, do amo sobre o escravo, da metrópole sobre a colónia, do capitalista manchesteriano sobre o trabalhador explorado. A economia financeira é o inimigo da classe da economia real, com a qual brinca como um porco ocidental com corpo de criança num bordel asiático.

Esse porco filho da puta pode, por exemplo, fazer com que a tua produção de trigo se valorize ou desvalorize dois anos antes de sequer ser semeada. Na verdade, pode comprar-te, sem que tu saibas da operação, uma colheita inexistente e vendê-la a um terceiro, que a venderá a um quarto e este a um quinto, e pode conseguir, de acordo com os seus interesses, que durante esse processo delirante o preço desse trigo quimérico dispare ou se afunde sem que tu ganhes mais caso suba, apesar de te deixar na merda se descer.

Se o preço baixar demasiado, talvez não te compense semear, mas ficarás endividado sem ter o que comer ou beber para o resto da tua vida e podes até ser preso ou condenado à forca por isso, dependendo da região geográfica em que estejas - e não há nenhuma segura. É disso que trata a economia financeira.

Para exemplificar, estamos a falar da colheita de um indivíduo, mas o que o porco filho da puta compra geralmente é um país inteiro e ao preço da chuva, um país com todos os cidadãos dentro, digamos que com gente real que se levanta realmente às seis da manhã e se deita à meia-noite. Um país que, da perspetiva do terrorista financeiro, não é mais do que um jogo de tabuleiro no qual um conjunto de bonecos Playmobil andam de um lado para o outro como se movem os peões no Jogo da Glória.

A primeira operação do terrorista financeiro sobre a sua vítima é a do terrorista convencional: o tiro na nuca. Ou seja, retira-lhe todo o caráter de pessoa, coisifica-a. Uma vez convertida em coisa, pouco importa se tem filhos ou pais, se acordou com febre, se está a divorciar-se ou se não dormiu porque está a preparar-se para uma competição. Nada disso conta para a economia financeira ou para o terrorista económico que acaba de pôr o dedo sobre o mapa, sobre um país - este, por acaso -, e diz "compro" ou "vendo" com a impunidade com que se joga Monopólio e se compra ou vende propriedades imobiliárias a fingir.

Quando o terrorista financeiro compra ou vende, converte em irreal o trabalho genuíno dos milhares ou milhões de pessoas que antes de irem trabalhar deixaram na creche pública - onde estas ainda existem - os filhos, também eles produto de consumo desse exército de cabrões protegidos pelos governos de meio mundo mas sobreprotegidos, desde logo, por essa coisa a que chamamos Europa ou União Europeia ou, mais simplesmente, Alemanha, para cujos cofres estão a ser desviados neste preciso momento, enquanto lê estas linhas, milhares de milhões de euros que estavam nos nossos cofres.
E não são desviados num movimento racional, justo ou legítimo, são-no num movimento especulativo promovido por Merkel com a cumplicidade de todos os governos da chamada zona euro.

Tu e eu, com a nossa febre, os nossos filhos sem creche ou sem trabalho, o nosso pai doente e sem ajudas, com os nossos sofrimentos morais ou as nossas alegrias sentimentais, tu e eu já fomos coisificados por Draghi, por Lagarde, por Merkel, já não temos as qualidades humanas que nos tornam dignos da empatia dos nossos semelhantes. Somos simples mercadoria que pode ser expulsa do lar de idosos, do hospital, da escola pública, tornámo-nos algo desprezível, como esse pobre tipo a quem o terrorista, por antonomásia, está prestes a dar um tiro na nuca em nome de Deus ou da pátria.

A ti e a mim, estão a pôr nos carris do comboio uma bomba diária chamada prémio de risco, por exemplo, ou juros a sete anos, em nome da economia financeira. Avançamos com ruturas diárias, massacres diários, e há autores materiais desses atentados e responsáveis intelectuais dessas ações terroristas que passam impunes entre outras razões porque os terroristas vão a eleições e até ganham, e porque há atrás deles importantes grupos mediáticos que legitimam os movimentos especulativos de que somos vítimas.

A economia financeira, se começamos a perceber, significa que quem te comprou aquela colheita inexistente era um cabrão com os documentos certos. Terias tu liberdade para não vender? De forma alguma. Tê-la-ia comprado ao teu vizinho ou ao vizinho deste. A atividade principal da economia financeira consiste em alterar o preço das coisas, crime proibido quando acontece em pequena escala, mas encorajado pelas autoridades quando os valores são tamanhos que transbordam dos gráficos.

Aqui se modifica o preço das nossas vidas todos os dias sem que ninguém resolva o problema, ou mais, enviando as autoridades para cima de quem tenta fazê-lo. E, por Deus, as autoridades empenham-se a fundo para proteger esse filho da puta que te vendeu, recorrendo a um esquema legalmente permitido, um produto financeiro, ou seja, um objeto irreal no qual tu investiste, na melhor das hipóteses, toda a poupança real da tua vida. Vendeu fumaça, o grande porco, apoiado pelas leis do Estado que são as leis da economia financeira, já que estão ao seu serviço.

Na economia real, para que uma alface nasça, há que semeá-la e cuidar dela e dar-lhe o tempo necessário para se desenvolver. Depois, há que a colher, claro, e embalar e distribuir e faturar a 30, 60 ou 90 dias. Uma quantidade imensa de tempo e de energia para obter uns cêntimos que terás de dividir com o Estado, através dos impostos, para pagar os serviços comuns que agora nos são retirados porque a economia financeira tropeçou e há que tirá-la do buraco. A economia financeira não se contenta com a mais-valia do capitalismo clássico, precisa também do nosso sangue e está nele, por isso brinca com a nossa saúde pública e com a nossa educação e com a nossa justiça da mesma forma que um terrorista doentio, passo a redundância, brinca enfiando o cano da sua pistola no rabo do sequestrado.

Há já quatro anos que nos metem esse cano pelo rabo. E com a cumplicidade dos nossos.

Juan José Millas