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Vivo sempre no presente. O futuro, não o conheço. O passado, já o não tenho. Pesa-me um como a possibilidade de tudo, o outro como a realidade de nada. Não tenho esperanças nem saudades. Conhecendo o que tem sido a minha vida até hoje - tantas vezes e em tanto o contrário do que eu a desejara -, que posso presumir da minha vida de amanhã senão que será o que não presumo, o que não quero, o que me acontece de fora, até através da minha vontade? Nem tenho nada no meu passado que relembre com o desejo inútil de o repetir. Nunca fui senão um vestígio e um simulacro de mim. O meu passado é tudo quanto não consegui ser. Nem as sensações de momentos idos me são saudosas: o que se sente exige o momento; passado este, há um virar de página e a história continua, mas não o texto.
(...)
Bernardo Soares, Livro do DesassossegoNão sei se é comum este olhar sobre o passado, o presente e o futuro das nossas vidas. Acredito que ele seja estranho e mesmo considerado anormal pela maioria das pessoas, generalizando eu esta ideia a partir da amostra dos meus amigos mais próximos.
Sei, no entanto, que ele é em tudo coincidente com o que eu penso, melhor direi com o que eu sinto, melhor ainda com o que eu sinto quando tento fazer um «rewind» da minha vida.
Escrevi algures e não sei quando, mas sei que há muito tempo, que olho para mim como um estranho a tudo e a todos e, no entanto, por dentro de tudo continuando sempre fora, personagem de muitas vivências, as mais variadas, testemunha de muitos acontecimentos, de todos os géneros, e contudo e apesar disso, incapaz de uma memória fiel e palpável, apesar de inteiramente vivida.
Se eu quiser descrever o meu passado, posso conseguir alinhavar umas linhas que mais não serão que uma modesta fita do tempo, uma infografia banal e superficial que nunca corresponderá ao grosso do meu passado, da minha vida, e que nunca será melhor do que dele fariam amigos próximos ou parentes afastados.
E isto atormenta-me, embora esta realidade amnésica não seja muito visível aos outros e pouco presente em mim, enquanto tormento. Não só esqueço o passado, como o tormento do seu esquecimento. O passado nunca me aparece por si, para me atormentar, mas apenas quando eu o torno presente, pensando e reflectindo sobre ele.
Posso escrever hoje, como já antes escrevi, que não conheço ninguém além de mim que tão forte e involuntariamente deite fora o seu passado e assim desencorporando-me, me transforme «num vestígio e um simulacro de mim».
CVR