Antes que alguém se escandalize com o título desta pequena crónica, aviso que, tal como em muitas outras coisas, o que parece não é.
Aliás, é disso que vos vou falar. Do que parece e não é. Refiro-me a este nosso País – Portugal.
Mesmo historicamente fomos sempre um arremedo de país, um parece mas não é. Mesmo na época áurea dos Descobrimentos, mesmo com Tordesilhas, parecíamos mas não éramos; parecia que dominávamos o mundo, mas, em boa verdade, só lá ficavam os padrões, os representantes reais e alguns senhores de escravos.
Tivemos recursos ilimitados à nossa disposição, materialmente de nossa posse, mas tal como agora, só alguns se aproveitavam, só alguns deles se apropriaram. O poder, esse, esbanjava.
Portugal foi ao mesmo tempo, berço de grandes homens, bem formados, sérios, íntegros, inteligentes, corajosos, patriotas, pouco parecidos com os demais. De alguns desses homens encarregou-se a Inquisição, seus laicos sucedâneos e os senhores de terras e de títulos.
Somos um país que parece uma coisa e é outra. Quem analisa apenas a nossa História
(e convém não esquecer que ela foi escrita por nós) ficará com a ideia que somos um país grandioso, com séculos de história, o mais velho país europeu com as mesmas fronteiras, que descobriu novos mundos em todos os continentes, metidos em cascas de noz, barricas de biscoitos e peixe seco.
Mas se formos nós a analisar-nos, com justeza, sem preconceitos ou clubismos, o que vemos? Como sai o nosso retrato?
Vemos um País com uma massa humana formidável, que quando se faz ao longe e ao fora, se mostra trabalhadora, inovadora, lutadora, esforçada, mas que quando regressa ou fica envolvida pelas nossas fronteiras, quando fica no redil, se transforma no seu contrário, no avesso daquilo que mostra e se faz rebanho.
De sérios passamos a trapaceiros, de rigorosos a facilitas, de trabalhadores a sornas, de íntegros a golpistas, de corajosos a cobardes e invejosos.
Comecei a escrever estas palavras, lembrando-me apenas da situação que estamos vivendo, desde que a crise mundial ou global se instalou.
Todos, penso que todos, saberão que a Crise é global, mas se nos ouvirmos, a crise é da responsabilidade do actual governo. Deste governo, ou simplificando, do Sócrates ou do Socras como muitos dizem.
Quer dizer que para nós, o responsável da Crise, é exactamente aquele que antes dela existir estava apostado em melhorar a situação de Portugal, reformando ou tentando reformar aquilo que precisava e continua precisando de reforma, recuperando e contendo o deficit e a inflação e o desemprego que governos anteriores não souberam combater, apesar de quase serem afogados pelo mar imenso dos euros de Bruxelas.
Não estou a defender este governo, nem a atacar os anteriores. Estou apenas a chamar os bois pelos seus nomes e a tentar analisar com clareza a situação actual.
À vossa possível pergunta – o Governo tem governado bem? – eu terei que responder – numas coisas sim, noutras não. Criticarei o pouco empenhamento em levar as reformas mais longe, em combater o fosso entre os escandalosamente ricos, a classe média e os pobres. Qual classe média? Ainda existe?
O governo tem feito muitas asneiras, tem sobretudo feito menos do que devia e se adivinhava que podia e queria.
E é aqui que está a diferença - pelo menos quiseram fazer, começaram a fazer, a enfrentar os poderosos, o corporativismo.
Começaram. É preciso que continuem e vão em frente.
Veio a crise, a tal que é global e os portugueses dizem que é culpa do governo.
Parem um pouco e pensem. Quantos de vós têm feito alguma coisa pelo País? Quantos de vós querem e exigem que seja o País a fazer tudo por vós?
Quantos de vós respeitam totalmente as vossas obrigações fiscais? Só não foge quem não pode. Quantos de vós não aplaudem a fraude, a cunha, a cópia fraudulenta, o excesso de velocidade, o desrespeito por leis, os subsídios da CEE desviados para outros fins? Quantos Audis em vez de tractores? Quantas piscinas em vez de bebedouros?
Por isso eu chamei a esta crónica “abençoada crise”. Porque sei que ela pode ser abençoada, se todos nós, face a ela, encararmos a nossa realidade, o nosso comportamento e passarmos a respeitar-nos uns aos outros, a ter consideração pelos melhores em vez de inveja, unirmos as mãos e os esforços para juntos levantarmos Portugal. Se todos entendermos de uma vez por todas que a arte do desenrascanço português é o nosso maior mal. Temos todos que passar a fazer o nosso melhor, pensando no bem de todos e não só no nosso.
Aproveitemos todos as lições da crise para aprender a sermos gente digna, merecedora de um País melhor.
Que nenhum de nós se queira rever nas figuras da crise, nos Maddoff’s e Costas vários e se sirva deles como exemplos do que não se deve ser, em vez de lá no fundo de cada um pensarmos que não nos importávamos de ter feito o mesmo, escapar a uma justiça que não funciona e vivermos o resto dos nossos dias à conta do que fraudulentamente adquirimos.
Que um dia possamos dizer – abençoada crise.
CVR