terça-feira, fevereiro 28, 2006
batidas
Dum teto de nuvens
Vais aparecer tu,
Meu Arcanjo de Boa Nova.
Vais descer a não sei quantas
Rotações por minuto,
Milhares ou milhões,
Depois milhares ou centenas,
E já dezenas e depois, nada.
E, depois, Tudo.
Já não em rotações,
Mas, em batidas por minuto.
Agora sessenta,
Já logo oitenta, que ainda te não vejo,
Agora cem, que acabo de te ver,
Agora já nem sei quantas,
Que já te abracei.
Pum pum, pum pum, pum pum....
E não são cem. São já duzentas.
Pois há que contar as tuas,
No abraço que se prolonga.
P r o l o n g a ……….
A pouco e pouco,
O ritmo se retoma.
Nunca igual,
Talvez parecido.
Certo, certo,
Só o acelerar
A cada gesto teu,
A cada ternura minha.
Dum teto de nuvens
Apareceste tu.
Foi o amor que te trouxe.
Não foi o avião.
CVR
segunda-feira, fevereiro 27, 2006
biblioteca
Neste mar habitado de quem procura,
De quem bebe na teta do livro que escolheu
De quem bebe na teta do livro que escolheu
Eu respiro fundo e não me afogo.
Antes me afago, me afaga este ar
Que em volúpia, voluptuosamente cheiro.
Os dorsos que se perfilam
Não são barreiras ou muros de silêncio,
Mas vasos comunicantes,
Que em seu isolamento se dão.
Não me lembro de abelhas,
Nem isto é uma colmeia.
Aqui onde estou, estamos.
E, quem está, está.
Todos ao pé de seu rio,
Ao pé de sua aldeia.
Que barulho é este que se ouve?
A folha do livro a mudar,
A caneta no papel a arranhar
Ou a memória
Aconchegando a ideia?
Antes me afago, me afaga este ar
Que em volúpia, voluptuosamente cheiro.
Os dorsos que se perfilam
Não são barreiras ou muros de silêncio,
Mas vasos comunicantes,
Que em seu isolamento se dão.
Não me lembro de abelhas,
Nem isto é uma colmeia.
Aqui onde estou, estamos.
E, quem está, está.
Todos ao pé de seu rio,
Ao pé de sua aldeia.
Que barulho é este que se ouve?
A folha do livro a mudar,
A caneta no papel a arranhar
Ou a memória
Aconchegando a ideia?
CVR
sábado, fevereiro 25, 2006
nem cá, nem lá
A árvore solitária de Caspar David Friedrich, 1822
Nem cá, nem lá.
Suavemente, desce a pétala,
Sua última viagem,
Contra o vento que a sustém.
Nem cá, nem lá,
Agitadamente, desço eu.
Contra ventos e marés,
Minha última viagem.
Do já ido ao que há-de vir.
E quem assim nos olhar,
À flor ou a mim,
Pensará, por instantes,
Que vamos a cair.
Suavemente, desce a pétala,
Sua última viagem,
Contra o vento que a sustém.
Nem cá, nem lá,
Agitadamente, desço eu.
Contra ventos e marés,
Minha última viagem.
Do já ido ao que há-de vir.
E quem assim nos olhar,
À flor ou a mim,
Pensará, por instantes,
Que vamos a cair.
Alguns dirão,
Que bonito, tão bonito.
Que bonito, tão bonito.
Outros, dirão que nem viram.
E todos seguirão em frente.
De facto, sem ver.
A quem pode interessar,
Uma pétala que cai,
Ou um homem a morrer?
E todos seguirão em frente.
De facto, sem ver.
A quem pode interessar,
Uma pétala que cai,
Ou um homem a morrer?
quinta-feira, fevereiro 23, 2006
Os novos escravos e o meu amigo Agostinho da Silva
Quando a escravatura acabou, todos devem ter pensado que tinha sido de vez. Um fenómeno sócio-político de má memória chegara ao fim e não mais voltaria, terão pensado alguns.
Durante algum tempo assim sucedeu, pelo menos na face visível do fenómeno, já que nas zonas mais escuras, mais escondidas do controlo e da lei, tivesse continuado a haver escravos, não vendidos ou negociados, mas apenas explorados.
De 1415 a 1878, a escravatura teve existência legal. Desde a participação activa dos chefes africanos na captura e venda aos negreiros, da Igreja (especialmente dominicanos e jesuítas (estes possuindo mesmo navios destinados ao comércio dos escravos), até ao próprio Infante que, em 1443, chamou a si o monopólio da sua exploração, foram imensas as ramificações e tornou-se evidente uma organização perfeita, que se estendia das redes de captura, aos locais próprios de embarque e aos navios adaptados para este fim, não sendo descurados aspectos menores como a devida avaliação dos escravos, a sua marcação a ferro e, por fim, o leilão.
Supõe-se que durante esse tempo terão sido traficados 30 milhões de africanos.
Depois disso, aconteceu a Revolução Francesa com a sua divisa Egalité, Liberté et Fraternité. Seguiu-se a Revolução industrial e o desenvolvimento do mundo capitalista. A História dirá que nessa altura todos os homens eram livres. Palavras bonitas! Mas as mulheres não tinham direito a voto, raras frequentavam as universidades ou integravam o mundo laboral em posições de chefia.
É verdade que já não se compravam trabalhadores, mas a maioria não tinha emprego fixo e dependia totalmente do poder discricionário dos capatazes ou encarregados que, diariamente, seleccionavam uns quantos para o trabalho de cada dia.
Em 1913, a Revolução Russa apareceu como o verdadeiro fim dos «senhores» e o nascimento do poder do povo.
Depois desse marco histórico, as duas guerras mundiais não deixaram de passar por fases de dominação e exploração humana inqualificáveis, muito para além da que tinha acontecido na escravatura.
Entrou-se depois numa fase de alguma estabilidade, com uma melhoria significativa e real das relações sociais.
Por esse tempo já Agostinho da Silva, o «profeta do terceiro milénio», como lembrou Fernando Dacosta em artigo recente, reclamava o fim do trabalho e da exploração, a libertação do homem, o fim da escravidão do trabalho («o homem não nasceu para trabalhar»), o direito a comida gratuita para todos e o direito ao sonho e à liberdade.
Tive a sorte e o imenso prazer de conhecer pessoalmente Agostinho da Silva e receber dele com frequência, mas sem regularidade, os seus pensamentos-textos em A4, dactilografados uns (em máquina de escrever a necessitar de ser abatida à carga), manuscritos outros. Tive ainda a subida honra de ser por ele desafiado a fazermos um trabalho comum que, infelizmente, não se concretizou, por entretanto, se ter dado o desaparecimento físico do filósofo, do anarquista ou simplesmente do «paradoxo», como ele dizia de si.
Agostinho da Silva, ainda pode assistir a algumas conquistas do pós 25 de Abril que acabaram com uma nova escravatura dos trabalhadores rurais e de outras classes trabalhadoras, para quem o direito ao trabalho era adquirido diariamente ou semanalmente na chamada «praça», que outra coisa não era que uma espécie de leilão ou mercado de trabalhadores.
Agostinho da Silva apontava como certas, «a globalização neofascizante, o ressurgimento da escravatura e do feudalismo, a guerra civil entre os instalados no sistema e os excedentarizados dele (através de gigantescas rebeliões sociais), a perda de direitos seculares, as implosões da URSS e (proximamente) dos Estados Unidos, a hegemonia do imperialismo asiático-chinês, a republicanização da Ibéria (futura península de nações independentes), a emergência do nosso país ao lado de Angola, Moçambique e Brasil (depois de periferizado na CEE), a ligação dos blocos de línguas portuguesa e espanhola e depois à passagem da era do trabalho para a do lazer, da sociedade do lucro para a da partilha».
Ele sabia, na verdade, que a globalização vinha aí, trazendo com ela ainda novas formas de exploração, de escravidão e dramáticas desigualdades entre os povos.
Neste momento, dois terços da humanidade vivem em condições inclasssificáveis. Milhões de seres humanos morrem à fome, enquanto no terço restante morrem de comida a mais.
Deu-se assim uma reviravolta no modelo de escravatura. Enquanto antigamente os escravos eram perseguidos, capturados e vendidos, contra suas vontades, agora a grande maioria deles oferece-se e aceita trabalhar e viver em condições desiguais e subhumanas.
Dizem as estatísticas que o lucro anual do tráfico de seres humanos anda à volta dos 12.000 milhões de euros, correspondendo a 30.000 euros o ganho médio por neo-escravo.
Os novos escravos oferecem-se mas, depois são enganados e explorados até ao inimaginável. As máfias controlam tudo. Retiram-lhes a identidade, estabelecem-lhes as obrigações laborais, cobram-lhes as despesas tidas com eles de forma deturpada, transformando-os em eternos devedores, cada dia mais dependentes do explorador.
As crianças, então, representam o que de pior há na nova escravatura. Calcula-se em 246 milhões o número de crianças exploradas no mundo, através das mais diversas formas e infames condições – prostituição infantil, trabalho escravo em fábricas para multinacionais, colheita de órgãos, práticas sexuais, algumas tendo a morte por fim, combatentes em conflitos armados ou como rebenta minas, um sem fim de maneiras qual delas a mais hedionda.
E, Agostinho da Silva dizia que – «Restaurar a criança em nós, e em nós a coroarmos Imperador, eis aí o primeiro passo para a formação do Império». «Um império sem clássicos imperadores, que leve aos povos do mundo uma filosofia capaz de abranger a liberdade por que se bate a América, a segurança económica conseguida pela União Soviética, e a renúncia aos bens que, depois de ter estado na filosofia de Lao-tsé, diz estar também na de Mao-tsé; mas uma filosofia que as três possam corrigir, purgando a primeira de imperialismos, a segunda da burocracia, e a terceira de catecismos».
Assim, seria possível valorizar aquilo que a seu ver nos distinguiria como povo e como cultura: um povo e uma cultura capazes de albergar em si «tranquilamente, variadas contradições impenetráveis, até hoje, ao racionalizar de qualquer pensamento filosófico». E «construir o seu domínio com uma base espiritual e sem base em terra, porque a propriedade escraviza e só não ter nos torna livres».
Estamos longe deste ideal de Agostinho da Silva. Se pensarmos que o desemprego cresce assustadoramente por todo lado, se pensarmos que em países tidos como ricos e poderosos como a Alemanha se está praticando, inclusive na Baviera, o chamado «One euro job», temos que concluir que está estabelecido um novo mercado de escravos. Basta imaginarmos a palavra do explorador – «Quem está interessado em ir mudar uns caixotes, em duas horas de trabalho? Quem quer ir lavar dois carros em hora e meia? Preciso de alguém para ir buscar uns pacotes de compras ao hipermercado em meia hora» e por aí fora o trabalho mais precário a um euro a hora. Não é imaginação. É realidade.
Penso que teremos de pensar muito bem nestes dois pensamentos de Agostinho da Silva que aqui vos deixo:
“Do que você precisa, acima de tudo, é de se não lembrar do que eu lhe disse; nunca pense por mim, pense sempre por você; fique certo de que mais valem todos os erros se forem cometidos segundo o que pensou e decidiu do que todos os acertos, se eles foram meus, não são seus. Os meus conselhos devem servir para que você se lhes oponha. É possível que depois da oposição, venha a pensar o mesmo que eu; mas, nessa altura. já o pensamento lhe pertence. São meus discípulos, se alguns tenho, os que estão contra mim; porque esses guardaram no fundo da alma a força que verdadeiramente me anima e que mais desejaria transmitir-lhes: a de se não conformarem».
«Estamos numa fase de pré-anarquia que vai levar-nos a uma nova Idade, mais humanista, mais espiritualizada … A sociedade civil alargar-se-á, o poder será descentralizado, o lazer libertará as populações, a palavra voltará a ter mais importância do que a imagem, as pessoas do que as coisas. O século XXI será religioso, fraterno. É precisamente nos períodos de anarquia que se refaz a história, se criam ideias, se lançam ideologias.»
Seria bom que assim fosse. Não esperemos que aconteça. Façamos que aconteça.
Durante algum tempo assim sucedeu, pelo menos na face visível do fenómeno, já que nas zonas mais escuras, mais escondidas do controlo e da lei, tivesse continuado a haver escravos, não vendidos ou negociados, mas apenas explorados.
De 1415 a 1878, a escravatura teve existência legal. Desde a participação activa dos chefes africanos na captura e venda aos negreiros, da Igreja (especialmente dominicanos e jesuítas (estes possuindo mesmo navios destinados ao comércio dos escravos), até ao próprio Infante que, em 1443, chamou a si o monopólio da sua exploração, foram imensas as ramificações e tornou-se evidente uma organização perfeita, que se estendia das redes de captura, aos locais próprios de embarque e aos navios adaptados para este fim, não sendo descurados aspectos menores como a devida avaliação dos escravos, a sua marcação a ferro e, por fim, o leilão.
Supõe-se que durante esse tempo terão sido traficados 30 milhões de africanos.
Depois disso, aconteceu a Revolução Francesa com a sua divisa Egalité, Liberté et Fraternité. Seguiu-se a Revolução industrial e o desenvolvimento do mundo capitalista. A História dirá que nessa altura todos os homens eram livres. Palavras bonitas! Mas as mulheres não tinham direito a voto, raras frequentavam as universidades ou integravam o mundo laboral em posições de chefia.
É verdade que já não se compravam trabalhadores, mas a maioria não tinha emprego fixo e dependia totalmente do poder discricionário dos capatazes ou encarregados que, diariamente, seleccionavam uns quantos para o trabalho de cada dia.
Em 1913, a Revolução Russa apareceu como o verdadeiro fim dos «senhores» e o nascimento do poder do povo.
Depois desse marco histórico, as duas guerras mundiais não deixaram de passar por fases de dominação e exploração humana inqualificáveis, muito para além da que tinha acontecido na escravatura.
Entrou-se depois numa fase de alguma estabilidade, com uma melhoria significativa e real das relações sociais.
Por esse tempo já Agostinho da Silva, o «profeta do terceiro milénio», como lembrou Fernando Dacosta em artigo recente, reclamava o fim do trabalho e da exploração, a libertação do homem, o fim da escravidão do trabalho («o homem não nasceu para trabalhar»), o direito a comida gratuita para todos e o direito ao sonho e à liberdade.
Tive a sorte e o imenso prazer de conhecer pessoalmente Agostinho da Silva e receber dele com frequência, mas sem regularidade, os seus pensamentos-textos em A4, dactilografados uns (em máquina de escrever a necessitar de ser abatida à carga), manuscritos outros. Tive ainda a subida honra de ser por ele desafiado a fazermos um trabalho comum que, infelizmente, não se concretizou, por entretanto, se ter dado o desaparecimento físico do filósofo, do anarquista ou simplesmente do «paradoxo», como ele dizia de si.
Agostinho da Silva, ainda pode assistir a algumas conquistas do pós 25 de Abril que acabaram com uma nova escravatura dos trabalhadores rurais e de outras classes trabalhadoras, para quem o direito ao trabalho era adquirido diariamente ou semanalmente na chamada «praça», que outra coisa não era que uma espécie de leilão ou mercado de trabalhadores.
Agostinho da Silva apontava como certas, «a globalização neofascizante, o ressurgimento da escravatura e do feudalismo, a guerra civil entre os instalados no sistema e os excedentarizados dele (através de gigantescas rebeliões sociais), a perda de direitos seculares, as implosões da URSS e (proximamente) dos Estados Unidos, a hegemonia do imperialismo asiático-chinês, a republicanização da Ibéria (futura península de nações independentes), a emergência do nosso país ao lado de Angola, Moçambique e Brasil (depois de periferizado na CEE), a ligação dos blocos de línguas portuguesa e espanhola e depois à passagem da era do trabalho para a do lazer, da sociedade do lucro para a da partilha».
Ele sabia, na verdade, que a globalização vinha aí, trazendo com ela ainda novas formas de exploração, de escravidão e dramáticas desigualdades entre os povos.
Neste momento, dois terços da humanidade vivem em condições inclasssificáveis. Milhões de seres humanos morrem à fome, enquanto no terço restante morrem de comida a mais.
Deu-se assim uma reviravolta no modelo de escravatura. Enquanto antigamente os escravos eram perseguidos, capturados e vendidos, contra suas vontades, agora a grande maioria deles oferece-se e aceita trabalhar e viver em condições desiguais e subhumanas.
Dizem as estatísticas que o lucro anual do tráfico de seres humanos anda à volta dos 12.000 milhões de euros, correspondendo a 30.000 euros o ganho médio por neo-escravo.
Os novos escravos oferecem-se mas, depois são enganados e explorados até ao inimaginável. As máfias controlam tudo. Retiram-lhes a identidade, estabelecem-lhes as obrigações laborais, cobram-lhes as despesas tidas com eles de forma deturpada, transformando-os em eternos devedores, cada dia mais dependentes do explorador.
As crianças, então, representam o que de pior há na nova escravatura. Calcula-se em 246 milhões o número de crianças exploradas no mundo, através das mais diversas formas e infames condições – prostituição infantil, trabalho escravo em fábricas para multinacionais, colheita de órgãos, práticas sexuais, algumas tendo a morte por fim, combatentes em conflitos armados ou como rebenta minas, um sem fim de maneiras qual delas a mais hedionda.
E, Agostinho da Silva dizia que – «Restaurar a criança em nós, e em nós a coroarmos Imperador, eis aí o primeiro passo para a formação do Império». «Um império sem clássicos imperadores, que leve aos povos do mundo uma filosofia capaz de abranger a liberdade por que se bate a América, a segurança económica conseguida pela União Soviética, e a renúncia aos bens que, depois de ter estado na filosofia de Lao-tsé, diz estar também na de Mao-tsé; mas uma filosofia que as três possam corrigir, purgando a primeira de imperialismos, a segunda da burocracia, e a terceira de catecismos».
Assim, seria possível valorizar aquilo que a seu ver nos distinguiria como povo e como cultura: um povo e uma cultura capazes de albergar em si «tranquilamente, variadas contradições impenetráveis, até hoje, ao racionalizar de qualquer pensamento filosófico». E «construir o seu domínio com uma base espiritual e sem base em terra, porque a propriedade escraviza e só não ter nos torna livres».
Estamos longe deste ideal de Agostinho da Silva. Se pensarmos que o desemprego cresce assustadoramente por todo lado, se pensarmos que em países tidos como ricos e poderosos como a Alemanha se está praticando, inclusive na Baviera, o chamado «One euro job», temos que concluir que está estabelecido um novo mercado de escravos. Basta imaginarmos a palavra do explorador – «Quem está interessado em ir mudar uns caixotes, em duas horas de trabalho? Quem quer ir lavar dois carros em hora e meia? Preciso de alguém para ir buscar uns pacotes de compras ao hipermercado em meia hora» e por aí fora o trabalho mais precário a um euro a hora. Não é imaginação. É realidade.
Penso que teremos de pensar muito bem nestes dois pensamentos de Agostinho da Silva que aqui vos deixo:
“Do que você precisa, acima de tudo, é de se não lembrar do que eu lhe disse; nunca pense por mim, pense sempre por você; fique certo de que mais valem todos os erros se forem cometidos segundo o que pensou e decidiu do que todos os acertos, se eles foram meus, não são seus. Os meus conselhos devem servir para que você se lhes oponha. É possível que depois da oposição, venha a pensar o mesmo que eu; mas, nessa altura. já o pensamento lhe pertence. São meus discípulos, se alguns tenho, os que estão contra mim; porque esses guardaram no fundo da alma a força que verdadeiramente me anima e que mais desejaria transmitir-lhes: a de se não conformarem».
«Estamos numa fase de pré-anarquia que vai levar-nos a uma nova Idade, mais humanista, mais espiritualizada … A sociedade civil alargar-se-á, o poder será descentralizado, o lazer libertará as populações, a palavra voltará a ter mais importância do que a imagem, as pessoas do que as coisas. O século XXI será religioso, fraterno. É precisamente nos períodos de anarquia que se refaz a história, se criam ideias, se lançam ideologias.»
Seria bom que assim fosse. Não esperemos que aconteça. Façamos que aconteça.
domingo, fevereiro 12, 2006
carta a mário gonçalves, para o livro de homenagem
Mário, meu amigo
Soube hoje, por carta, que tinhas cessado as tuas funções no Centro Hospitalar das Caldas da Rainha. A carta que tal notícia me trouxe, solicitava-me, caso eu aceitasse tal incumbência, um depoimento sobre aspectos que eu entendesse relevantes na tua personalidade e acção. Que aceitei a incumbência é um facto confirmado. Que saiba e consiga fazer um depoimento isento sobre o meu amigo e colega de lides cirúrgicas, é coisa que só se verá no fim. Personalidade, acção, foram os limites que me colocaram. Pode limitar-se a isto a opinião que temos de um amigo? Poderei eu aceitar limites, rebelde que sempre fui a aceitá-los? E, pior do que isto, um outro limite me impuseram, o de não ultrapassar uma página A4. Como é que eu vou conseguir meter-te numa simples página, logo a ti que davas para personagem principal de um romance de caval(h)eiros, para tema de um ensaio sobre a rectidão, a lhaneza, a amizade, a verticalidade, a honra e o dever?
De duas, uma. Ou não utilizo sequer a página que me autorizam e me limito a dizer que tu és um exemplo a seguir, mesmo pelos da nossa geração, quando ainda havia valores e palavra, ou faço um esforço, por certo inglório, de tentar dizer mais alguma coisa para além desta síntese. Tenho que optar por esta segunda hipótese, porque sempre me incomodou o branco das páginas e o vazio que representam.
Mário, meu amigo. Não é para ti que escrevo, mas para quem me leia, se alguém me ler. E desses, sobretudo para os jovens, para aqueles que nasceram em tempo de mudança, em que se confundiram os valores e em que se elegeu o deus cifrão como meta a atingir e se esqueceu facilmente a regra do nosso tempo em que atingir os fins era muito importante, mas, com a natural condição de ter sempre em conta os meios de lá chegar. Agora, na maioria dos casos, nesta selva concorrencial em que andamos inseridos, tudo faz crer que ninguém olha aos meios, mas apenas aos fins. A todos esses que assim procedem, aconselho-lhes vivamente que olhem para ti e para a tua vida profissional e cívica e que depois de o fazerem reparem no engano em que vivem. E aos que isso não sentirem e continuarem a pensar que estão certos, não percamos mais tempo com eles porque são irrecuperáveis.
Digo-te uma coisa, Mário. Tenho muitas saudades daqueles anos magníficos em que trabalhávamos nos Hospitais Civis de Lisboa, daquele banco semanal de 24 horas, sem horas extraordinárias, em que os nossos quartos eram mais vestiário do que local de encosto, da mesa grande da sala de jantar, com o chefe de equipa sentado à cabeceira e a malta sentada por uma ordem natural e nunca imposta, em que cada um sabia bem qual era o seu lugar. Em que trabalhávamos com prazer e com entrega, os doentes eram pessoas e não só doenças e a camaradagem que nos ligava a todos era real e evidente. E nada disto impedia que nos digladiássemos com todas as nossas capacidades naqueles magníficos concursos de progressão na carreira, sem atropelos, nem sacanices, mas apenas com a maior ou menor capacidade de cada um e também com o grau de sorte que nos calhasse naqueles dias. Nem todos entravam para as vagas, mas isso não nos separava porque todos tínhamos a noção do nosso valor individual e relativo. Em vez de inveja, sentíamos respeito pelos melhores. Tenho saudades, como tu deves ter, daquela sensação única da conquista do nosso lugar, em provas públicas e várias, com julgamentos honestos e isentos, arredados de cunhas e influências. Era bom saber que ocupávamos o nosso lugar por direito e não porque o sistema nele nos colocava, sem esforço e sem mérito. É evidente que nem todos éramos santos ou heróis e alguns havia que procuravam caminhos mais macios. Mas todos sabiam quem eles eram e recebiam o tratamento merecido. E havia ainda outros, como tu, Mário, que respiravam coerência, honestidade, lealdade, competência. Já nesse tempo eras figura de romance e assim continuaste toda a vida, tanto quanto me é dado saber. Toda a tua vida foste um bom exemplo de que os homens se distinguem pelo seu carácter, pela sua postura e pela sua conduta. Não será a reforma que te irá mudar, tenho a certeza. Um abraço para ti, Mário.
Carlos Vieira Reis
Chefe de Serviço de Cirurgia
Presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores e Artistas Médicos
Soube hoje, por carta, que tinhas cessado as tuas funções no Centro Hospitalar das Caldas da Rainha. A carta que tal notícia me trouxe, solicitava-me, caso eu aceitasse tal incumbência, um depoimento sobre aspectos que eu entendesse relevantes na tua personalidade e acção. Que aceitei a incumbência é um facto confirmado. Que saiba e consiga fazer um depoimento isento sobre o meu amigo e colega de lides cirúrgicas, é coisa que só se verá no fim. Personalidade, acção, foram os limites que me colocaram. Pode limitar-se a isto a opinião que temos de um amigo? Poderei eu aceitar limites, rebelde que sempre fui a aceitá-los? E, pior do que isto, um outro limite me impuseram, o de não ultrapassar uma página A4. Como é que eu vou conseguir meter-te numa simples página, logo a ti que davas para personagem principal de um romance de caval(h)eiros, para tema de um ensaio sobre a rectidão, a lhaneza, a amizade, a verticalidade, a honra e o dever?
De duas, uma. Ou não utilizo sequer a página que me autorizam e me limito a dizer que tu és um exemplo a seguir, mesmo pelos da nossa geração, quando ainda havia valores e palavra, ou faço um esforço, por certo inglório, de tentar dizer mais alguma coisa para além desta síntese. Tenho que optar por esta segunda hipótese, porque sempre me incomodou o branco das páginas e o vazio que representam.
Mário, meu amigo. Não é para ti que escrevo, mas para quem me leia, se alguém me ler. E desses, sobretudo para os jovens, para aqueles que nasceram em tempo de mudança, em que se confundiram os valores e em que se elegeu o deus cifrão como meta a atingir e se esqueceu facilmente a regra do nosso tempo em que atingir os fins era muito importante, mas, com a natural condição de ter sempre em conta os meios de lá chegar. Agora, na maioria dos casos, nesta selva concorrencial em que andamos inseridos, tudo faz crer que ninguém olha aos meios, mas apenas aos fins. A todos esses que assim procedem, aconselho-lhes vivamente que olhem para ti e para a tua vida profissional e cívica e que depois de o fazerem reparem no engano em que vivem. E aos que isso não sentirem e continuarem a pensar que estão certos, não percamos mais tempo com eles porque são irrecuperáveis.
Digo-te uma coisa, Mário. Tenho muitas saudades daqueles anos magníficos em que trabalhávamos nos Hospitais Civis de Lisboa, daquele banco semanal de 24 horas, sem horas extraordinárias, em que os nossos quartos eram mais vestiário do que local de encosto, da mesa grande da sala de jantar, com o chefe de equipa sentado à cabeceira e a malta sentada por uma ordem natural e nunca imposta, em que cada um sabia bem qual era o seu lugar. Em que trabalhávamos com prazer e com entrega, os doentes eram pessoas e não só doenças e a camaradagem que nos ligava a todos era real e evidente. E nada disto impedia que nos digladiássemos com todas as nossas capacidades naqueles magníficos concursos de progressão na carreira, sem atropelos, nem sacanices, mas apenas com a maior ou menor capacidade de cada um e também com o grau de sorte que nos calhasse naqueles dias. Nem todos entravam para as vagas, mas isso não nos separava porque todos tínhamos a noção do nosso valor individual e relativo. Em vez de inveja, sentíamos respeito pelos melhores. Tenho saudades, como tu deves ter, daquela sensação única da conquista do nosso lugar, em provas públicas e várias, com julgamentos honestos e isentos, arredados de cunhas e influências. Era bom saber que ocupávamos o nosso lugar por direito e não porque o sistema nele nos colocava, sem esforço e sem mérito. É evidente que nem todos éramos santos ou heróis e alguns havia que procuravam caminhos mais macios. Mas todos sabiam quem eles eram e recebiam o tratamento merecido. E havia ainda outros, como tu, Mário, que respiravam coerência, honestidade, lealdade, competência. Já nesse tempo eras figura de romance e assim continuaste toda a vida, tanto quanto me é dado saber. Toda a tua vida foste um bom exemplo de que os homens se distinguem pelo seu carácter, pela sua postura e pela sua conduta. Não será a reforma que te irá mudar, tenho a certeza. Um abraço para ti, Mário.
Carlos Vieira Reis
Chefe de Serviço de Cirurgia
Presidente da Sociedade Portuguesa de Escritores e Artistas Médicos
quarta-feira, fevereiro 08, 2006
despertar
Num grasnar de gaivotas,
Me fui levantando.
O mar todo, dentro.
Circulando.
Mastro apontado ao céu.
E, tua mão de vento,
Afagando, afagando.
Me fui levantando.
O mar todo, dentro.
Circulando.
Mastro apontado ao céu.
E, tua mão de vento,
Afagando, afagando.
sábado, fevereiro 04, 2006
encontro
Pousar meu olhar em ti.
Suavemente, muito suavemente.
E sentir o olhar,
E todo eu,
Correr como água limpa,
Límpida e pura,
Todos os poros do corpo teu,
E sentir essa água-olhar,
Essa água-eu,
Penetrarem suavemente
Toda a textura tua.
E já serem corrente
Nos rios que te correm.
E não haver margens
Que me contenham.
E circular-te de alto a baixo,
Ser azul, verde, cinza,
Ao passar no teu olhar claro.
E ser castanho-dourado,
Quando te navego os cabelos,
Os pêlos, os acidentes.
E sentir-te inundada e bem,
Envolvida e feliz,
Penetrada e tu.
E continuar a navegar-te.
E sentir-te transbordar,
Por onde se pode fazê-lo.
Pôr-te a mão e dizer – o rio.
Tocar-te e dizer – o mar.
Permanecer e dizer – o veludo.
Estar e dizer – a minha casa.
Sentir-te e dizer – a minha mulher.
Olhar-te e ver teu rosto mudado,
De outra idade, sem idade,
Só a do desejo, do amor.
Ver tua boca entreabrir-se,
Sugar, lamber e penetrar,
E dizer – vem amor, aqui me tens
Para ti, só para ti,
Que conheces meus caminhos
E meus rios,
Meus vales e acidentes,
Meus segredos e verdades,
Meus cofres e tesouros,
Minhas sensações contidas
Que rebentas como vulcões.
Vem, amor, dizes tu.
Vem, amor e dizes fica,
Vem, amor e deixa-me ficar.
E eu vou e fico e deixo-te ficar.
E o rio cresce e inunda-nos.
E já não há nem tu nem eu.
Apenas uma união de corpos,
De acidentes complementares,
Onde tudo encaixa,
Porque tem que encaixar.
Porque Deus assim o quis,
Ao criar homem e mulher,
Mas uma só mulher
E apenas um só homem,
Com os mesmos acidentes,
Um mesmo puzzle para acertar.
Depois Deus criou o amor,
Uma estranha força que atrai,
Que ilude, engana, baralha.
Que parece dizer, encontraste.
Homens, mulheres,
Navegam na dúvida,
Navegam na esperança,
Na ilusão de que sim.
E logo duvidam,
Logo se interrogam,
Se o amor é isto,
Não devia ser.
Muitos morrem,
Todos, quase todos,
Sem o encontro, sem o sinal.
Sem o amor, afinal.
Mas se o sinal chega,
E chega por vezes,
Então, há apenas que agarrar,
Pegar bem o amor
E lutar, lutar até bem o agarrar.
Há que gritar, meu amor, meu amor.
Há que olhar bem fundo seu olhar,
E deixar o rio nascer, correr, crescer,
E, finalmente apaziguados,
Dizer suavemente – meu amor, meu amor.
E ser feliz.
E não há idade nem contratempo,
Desânimo ou malentendido,
Que corte a corrente de nossos rios.
Suavemente, muito suavemente.
E sentir o olhar,
E todo eu,
Correr como água limpa,
Límpida e pura,
Todos os poros do corpo teu,
E sentir essa água-olhar,
Essa água-eu,
Penetrarem suavemente
Toda a textura tua.
E já serem corrente
Nos rios que te correm.
E não haver margens
Que me contenham.
E circular-te de alto a baixo,
Ser azul, verde, cinza,
Ao passar no teu olhar claro.
E ser castanho-dourado,
Quando te navego os cabelos,
Os pêlos, os acidentes.
E sentir-te inundada e bem,
Envolvida e feliz,
Penetrada e tu.
E continuar a navegar-te.
E sentir-te transbordar,
Por onde se pode fazê-lo.
Pôr-te a mão e dizer – o rio.
Tocar-te e dizer – o mar.
Permanecer e dizer – o veludo.
Estar e dizer – a minha casa.
Sentir-te e dizer – a minha mulher.
Olhar-te e ver teu rosto mudado,
De outra idade, sem idade,
Só a do desejo, do amor.
Ver tua boca entreabrir-se,
Sugar, lamber e penetrar,
E dizer – vem amor, aqui me tens
Para ti, só para ti,
Que conheces meus caminhos
E meus rios,
Meus vales e acidentes,
Meus segredos e verdades,
Meus cofres e tesouros,
Minhas sensações contidas
Que rebentas como vulcões.
Vem, amor, dizes tu.
Vem, amor e dizes fica,
Vem, amor e deixa-me ficar.
E eu vou e fico e deixo-te ficar.
E o rio cresce e inunda-nos.
E já não há nem tu nem eu.
Apenas uma união de corpos,
De acidentes complementares,
Onde tudo encaixa,
Porque tem que encaixar.
Porque Deus assim o quis,
Ao criar homem e mulher,
Mas uma só mulher
E apenas um só homem,
Com os mesmos acidentes,
Um mesmo puzzle para acertar.
Depois Deus criou o amor,
Uma estranha força que atrai,
Que ilude, engana, baralha.
Que parece dizer, encontraste.
Homens, mulheres,
Navegam na dúvida,
Navegam na esperança,
Na ilusão de que sim.
E logo duvidam,
Logo se interrogam,
Se o amor é isto,
Não devia ser.
Muitos morrem,
Todos, quase todos,
Sem o encontro, sem o sinal.
Sem o amor, afinal.
Mas se o sinal chega,
E chega por vezes,
Então, há apenas que agarrar,
Pegar bem o amor
E lutar, lutar até bem o agarrar.
Há que gritar, meu amor, meu amor.
Há que olhar bem fundo seu olhar,
E deixar o rio nascer, correr, crescer,
E, finalmente apaziguados,
Dizer suavemente – meu amor, meu amor.
E ser feliz.
E não há idade nem contratempo,
Desânimo ou malentendido,
Que corte a corrente de nossos rios.
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