quinta-feira, março 30, 2006

e, se eu vos contasse? – 11.º programa – a criação das régias escolas de cirurgia




Desde que se pratica a arte de curar, que em termos gerais se diz medicina, que existe uma clara disparidade entre o exercício da medicina e o exercício da cirurgia. Porquê, perguntarão os senhores telespectadores. Por uma razão ou um punhado delas fáceis de explicar. Durante séculos os conhecimentos médicos eram extremamente rudimentares e eram passados de boca a boca, portanto duma forma não muito diferente do que se passava com os actos cirúrgicos que também eram passados dessa forma. Com o aparecimento das universidades, teoricamente o ensino da medicina passou a ter alguma qualidade, embora não fosse muita. Só que nas universidades apenas se ensinava matéria médica e o ensino da cirurgia era inexistente e continuava a ser feito por pessoas incultas, que nem sabiam ler nem escrever, mas tinham habilidade para usar o bisturi em alguns actos cirúrgicos. Os médicos consideravam indigno o exercício da cirurgia. E séculos e séculos se passaram sem que esta situação fosse alterada. Em Portugal a primeira tentativa que se fez, não para equiparar médicos e cirurgiões, mas para dar a estes mais formação, foi com a criação em Lisboa do Hospital de Todos os Santos, que resultou da junção num só, construído de raiz, dos mais de cinquenta hospitais, ou assim chamados, que ao tempo existiam em Lisboa. Este hospital foi construído de 1492 a 1501, no local do Rossio, onde hoje é a Praça da Figueira, junto ao Convento de São Domingos. Tinha uma frontaria lindíssima de que sobressaía a sua igreja e escadaria. Tinha uma forma de cruz, em que a igreja era um dos braços e os outros três eram as enfermarias; a chamada de São Vicente para os febricitantes, que é como quem diz para todos aqueles que tinham febre, fosse qual fosse a sua causa, a de São Cosme para os feridos e a de Santa Clara para as mulheres.
Cada uma destas enfermarias tinha anexo um claustro com uma fonte no seu centro. Havia ainda uma outra divisão que era a casa dos enjeitados.
O hospital tinha inicialmente a capacidade de 103 camas, que logo vieram a mostrar-se insuficientes; por isso começaram a deitar dois doentes em cada cama, com os transtornos que isso representava. Por volta de 1551, acrescentaram mais duas enfermarias para sifilíticos e uma outra, na cerca, que servia apenas para internar os frades de São Francisco. Apesar disso o hospital continuava a ter uma capacidade insuficiente e sabe-se que por volta de 1601 tinha 324 doentes internados e em 1620 tinha 600, tendo chegado mesmo a ter 700 doentes, exactamente no dia em que foi destruído pelo terramoto de 1755.
Quando começou a funcionar dispunha de dois cirurgiões e de um médico, mas em 1564 já tinha 3 cirurgiões e dois médicos. Por alvará de 20 de Novembro de 1556 foi criada uma aula de cirurgia e anatomia, iniciando-se assim uma verdadeira escola de cirurgia que funcionou até ao século XIX. Para o funcionamento desta aula recorreu-se a estrangeiros, tal como se tinha feito em relação aos médicos de que destaco Dias de Ysla. E na cirurgia destacaram-se Afonso Rodrigues de Guevara e António de Monravá y Roca, este já no século XVIII e que deve ter sido o primeiro a criar uma universidade privada em Portugal, já naquele tempo e não nas últimas duas décadas como se podia pensar. A Academia das Quatro Ciências – Medicina, anatomia, cirurgia e física. Entre os portugueses e ao longo dos tempos destacaram-se António da Cruz e o seu livro Recopilação, e Manuel Constâncio, este já discípulo de Dufau, que se seguiu a Santucci.
O primeiro problema com este hospital viria a ter lugar em 1750, por causa de um grande incêndio que o destruiu quase por completo, estando internados 740 doentes e 5 anos depois foi totalmente destruído pelo terramoto de 1755.
Os doentes foram instalados em cabanas armadas no Rossio e nas cocheiras do Conde de Castelo Melhor e depois no palácio de Antão de Almada.
Só 4 anos depois, expulsos os jesuítas em 1759, foi o seu convento destinado a hospital a que deram o nome de São José em homenagem ao rei. Os doentes só foram transferidos em Abril de 1760. Iniciava-se então uma nova fase na vida hospitalar de Lisboa e na formação dos cirurgiões portugueses.
Pode dizer-se que a escola de cirurgia do hospital de S. José representou a grande escola formadora de cirurgiões até ao primeiro quartel do século XIX e mesmo até meados do século XX, se tivermos em conta que a Régia Escola de Cirurgia que viria a ser criada em 1825 ficou aqui instalada. Não está em causa dizer-se que aquilo que se ensinava neste hospital de S. José era bom ou mau, moderno ou antiquado. A única coisa que importa dizer é que este hospital representava o único local do país onde verdadeiramente se ensinava a cirurgia, mesmo tendo em conta que cirurgiões se iam formando em todo o país desde que o Cirurgião Mor ou o Físico Mor os aprovassem em exame. Sabe-se que estes exames eram na maioria dos casos autênticas burlas, havendo aprovações em troco de dinheiro dado ao examinador ou a outros cirurgiões que se apresentavam a exame na vez dos candidatos. A corrupção era um facto. Contudo, no princípio do século XIX houve outras aulas de anatomia e cirurgia a funcionar e com qualidade, mas eram aulas que formavam os cirurgiões militares. Foram particularmente importantes a de Chaves e a de Elvas. Houve cirurgiões preparados em Chaves que depois trabalharam e ensinaram neste hospital de S. José, outros que foram aqui professores, como houve cirurgiões deste hospital que foram ser professores em Chaves, nomeadamente o seu primeiro professor, de seu nome Manuel José Leitão. Também no Brasil se fundaram aulas de anatomia e cirurgia, nomeadamente no Hospital da Misericórdia e no Hospital Militar, ambos no Rio de Janeiro e outra no Hospital da Bahia. Para frequentar estas aulas de anatomia e cirurgia referidas já era necessário que os alunos soubessem ler, escrever e contar e que soubessem latim e francês, o que representava um claro e gigantesco progresso na dignificação desta profissão.
O Marquês de Pombal tentou honrar e dignificar a cirurgia e decretou que dessa data em diante as universidades ensinassem igualmente cirurgia e que os licenciados o fossem em medicina e cirurgia. Pouco foi conseguido com esse decreto. Para que verdadeiramente se iniciasse a caminhada para a equiparação da medicina e da cirurgia, foi necessário esperar por 1825 e pela criação das Régias Escolas de Cirurgia de Lisboa e do Porto, que por sua vez viriam a dar lugar anos mais tarde às Escolas Médico-Cirúrgicas (1836) e já no século XX às actuais Faculdades de Medicina.
Como se formaram estas Régias Escolas?. De uma forma extremamente curiosa e por razões marginais ao poder político. Sucedeu que o Intendente Geral da Polícia mandara prender o mais importante contratador de tabaco. Essa prisão despertou um movimento no sentido da sua libertação, mas todas as tentativas, mesmo que encabeçadas por gente de condição não obtiveram qualquer efeito. Alguém se lembrou então de interceder junto do rei e logo foi resolvido que a pessoa indicada para falar e pedir ao rei a libertação do contratador era o Cirurgião militar e Cirurgião Mor do Reino, Theodoro Ferreira de Aguiar, de quem o rei era muito amigo. Este acedeu em falar ao rei e este mandou libertar o contratador. A Corporação dos tabacos agradecida empenhou-se em agradecer principescamente a Theodoro Ferreira de Aguiar para o que se prontificaram a oferecer-lhe dez contos de réis. Theodoro Ferreira de Aguiar não aceitou e sugeriu que eles dessem o dinheiro ao rei para este, com esse dinheiro, mandar fazer duas Escolas Régias de Cirurgia e mais lhes sugeriu que a Corporação dos tabacos se encarregasse das despesas daquelas duas escolas enquanto durasse o contracto do tabaco. Assim sugeriu e assim sucedeu. O rei concordou e foi desta forma que nasceram as duas escolas. Nem sempre os caminhos do progresso e da modernidade passam por grandes decisões, mas apenas pelas cabeças e pela generosidade de uns quantos que têm do bem comum uma ideia correcta.
CVR

sábado, março 25, 2006

a mesa do poeta


Abauladamente cónico,
Dourado e verde,
Ergue-se o cedro,
Bem para o alto.

A lua, essa, está gorda,
Dourada-fogo,
Como lhe acontece estar.

Assim, tal e qual, a vejo eu
De meu amplo balcão,
Do canto de meu ring,
Onde combato a solidão.

Também ouço os sinos.
As crianças, os risos e as danças.
O cheiro a terra molhada
Que a Celeste antes regou.
Ouço o cantar da água
Na máquina que ela usou.

Ouço vozes adultas, a roda do triciclo,
As folhas que o vento arrasta.
Sinto a ferroada do mosquito,
Vejo luzes, muitas luzes.
De casas, muitas casas.
Além, mais perto, mais além.

Esta mesa de ferro onde escrevo,
À luz quente e dourada da lua.
É a mesa do poeta.

Toda a terra aqui chega,
Sons, cheiros, temperaturas.

Parece por encomenda,
O badalo do rebanho.

As hortênsias que são azuis,
Mesmo de noite.

O cão ladrou agora.
Quantas vezes, antes?

E eu vou continuar no meu balcão,
Para lá, para cá, para lá, para cá,

Contando metros, depois quilómetros,


Contando ausências, depois dores,


Contando amores, depois dores,

Dores.
Dores.
Dores.

CVR

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sexta-feira, março 24, 2006

e, se eu vos contasse? – 10.º programa – medicina dos descobrimentos





Ah, seja como for, seja para onde for, partir!
Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar.
Ir para longe, ir para fora, para a distância abstracta,
Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas,
Levado, como poeira, p’los ventos, p’los vendavais!
Ir, ir, ir, ir de vez!

Pelas vozes dos poetas, falam os deuses. E, os deuses quiseram que assim fosse. Ao mar se fizeram os portugueses e pelos cinco cantos da Terra espalharam a língua, a fé e uma forma muito própria de estar. Os padrões com a cruz de Cristo foram sendo semeados por esse mundo fora, dando manifesto sinal do que pode a vontade de um povo. Ao mar se fizeram os portugueses e assim foram fazendo a sua história. Pelos mares andaram e pelos mares foram morrendo alguns e se salvando outros. E as caravelas foram progressivamente fazendo-se ao mais longe e desse modo fazendo do longe, perto.
A bordo seguiam os capitães, os padres, os marinheiros e aqueles que viam nessas distâncias seguras fontes de comércio e de riqueza.
Agora cinco, logo dez, depois vinte, as caravelas partiam.
A experiência ensina, os olhos vêem, os ouvidos ouvem, a inteligência organiza e desse modo se foi fazendo o saber de experiência feito.
Não só a ciência da guerra se foi desenvolvendo. A medicina também. Tudo foi vendo, experimentando e aprendendo. Técnicas novas que encontrava, a medicina dos gentios, as plantas medicinais, de tudo isso a medicina se foi servindo para mudar procedimentos e atitudes. Não significa isto que ela tenha melhorado ou se tenha verdadeiramente enriquecido, mas significa que mudou ou, de uma forma mais correcta, se aumentou. Se a maioria das coisas que os médicos faziam eram erradas ou demasiado empíricas, como hoje o sabemos, assim continuaram sendo, na maioria dos casos. Mas, erradas ou não, novas formas de tratamento passaram a ser usadas. E muitas outras coisas que eram usadas empiricamente, vieram a mostrar-se correctas, muitos anos mais tarde.
Falar da medicina dos descobrimentos é falar de qualquer coisa que não houve, a menos que consideremos positivo o que hoje temos como negativo.
Se pensarmos que muitos séculos antes, durante a expansão romana, não havia barco que não levasse médico ou legião que o não tivesse, mais nos custa a entender que a maioria das naus e caravelas portuguesas o não levassem a bordo e contassem quanto muito, com um padre versado em coisas médicas. Não surpreende pois que muitas das coisas que vieram enriquecer os conhecimentos médicos da época, nos tenham chegado por descrições feitas por capitães de navio, por capitães de tropas. Talvez a existência da Inquisição possa explicar algumas coisas. Se é verdade que os inquisidores passavam a pente fino todos os navios que demandavam Lisboa, numa tentativa de encontrarem livros de medicina ou cirurgia que eventualmente reproduzissem partes do corpo humano para prontamente os censurarem ou interditarem, mais activos seriam à procura e perseguição de médicos cristãos novos, o que fez com que os nossos melhores médicos daquele tempo tenham fugido de Portugal e tenham sido médicos famosos em toda a Europa.
Por essa ou outra qualquer razão, o certo é que não se encontram registos que confirmem a presença de médicos a bordo de todas as armadas portuguesas.
Apesar de tudo é possível estabelecer-se uma lista de 12 médicos que ainda durante o século XV teriam participado na aventura das descobertas e dos quais destaco Mestre José Vizinho, físico e astrólogo de d. João II e 45 outros médicos que acompanharam os nossos descobridores durante o século XVI, dos quais destaco Garcia de Orta que embarcou para a Índia na armada de Martim Afonso de Sousa e Dimas Bosque, licenciado por Salamanca e que ficou a dever a sua celebridade ao facto de ser o médico com quem Garcia de Orta dialoga no seu famoso livro Colóquio dos simples e cousas medicinais da Índia... Só à laia de comentário, tenho que referir que Garcia de Orta ia fugido à Inquisição e que apesar do seu livro ter sido autorizado pelo Inquisidor Mor, não impediu que os ossos daquele grande médico tivessem sido desenterrados alguns anos após a sua morte e tenham sido queimados em praça pública, juntamente com todos os exemplares existentes do seu famoso livro.
É curioso referir que muitos médicos desta época deram um grande contributo para os descobrimentos, não pela sua acção médica, que temos vindo a ver que não foi a melhor, mas sim pelos seus conhecimentos noutros ramos da ciência, nomeadamente naqueles que facilitavam a arte de navegar. Muitos médicos dessa época tiveram grande importância na astronomia e nas ciências-base da náutica, ajudando a resolver um grande número de problemas teóricos e a idealizar os instrumentos práticos que a navegação exigia, nomeadamente quando se avistava terra e a orientação tinha que se tomar com referência à altura do sol e às estrelas. E entre vários médicos que se distinguiram neste capítulo, destaca-se Pedro Nunes, professor da Universidade de Salamanca, parteiro da Rainha, autor do Tratado da Esfera e do famoso Nónio, de que até hoje se conhece um único exemplar. Foi Pedro Nunes o primeiro a separar as águas do conhecimento e das diferenças entre astronomia e astrologia, que até ele se confundiam.
Pouco deverá a medicina aos médicos daquele tempo, mas muitas foram as consequências das descobertas para a medicina. Antes de mais, o conhecimento e aplicação das plantas medicinais até aí desconhecidas na Europa. Depois a troca de experiências entre os europeus e os nativos que exerciam a arte de curar.
Também o import – export da patologia daquele tempo, com a migração das doenças e o conhecimento de novas doenças. A sifilis, a varíola, o escorbuto, a influenza, a malária, a lepra e tantas tantas outras, que foram andando de um lado para o outro, atravessando mares e distâncias, implantando-se sem barreiras ou resistências, em terras até aí virgens de tais patologias.
Há sempre quem aprenda e sempre quem ensine. Deste passar de uns a outros se vai fazendo o conhecimento. Não podemos duvidar da importância dos descobrimentos neste desenvolver dos vasos comunicantes do conhecimento e da aprendizagem. Estupefacção deve ter sido uma sensação comum, face a situações inesperadas e desconhecidas. Estupefacção teria sido o menos que cerca de quatro mil japoneses terão tido, quando viram pela primeira vez o homem de quatro olhos que o jesuíta Francisco Cabral representava, ao mostrar-se perante eles, em 1571, usando óculos para corrigir a sua miopia.
Embora sendo evidente que os hospitais daquele tempo nada tinham a ver com os hospitais de hoje, o certo é que existiam casas que se destinavam ao tratamento e internamento dos doentes e que tinham o nome de hospitais. E, fossem eles como fossem, o que importa é avaliar a este tempo de distância o relevante papel dos portugueses durante os séculos XVI e XVII que foram construindo ou adaptando o impressionante número de 40 hospitais, de acordo com o esclarecido trabalho do Professor Luís de Pina, de Cabo Verde a Macau, sem contar com o Brasil.
No que à cirurgia se refere, as amputações representavam talvez o acto cirúrgico mais praticado no tempo dos descobrimentos, quer por razões de feridas de guerra, quer por esmagamentos, quer por gangrenas. A este propósito e como demonstração de que se pode aprender estando atento às coisas, não posso deixar de referir o que nesse tempo dizia Bartolomeo Maggi, professor na Universidade de Bolonha, quando explicava que tinha aprendido a fazer amputações correctas, depois de ter visto trabalhar os carrascos de Veneza e que só depois de os ter visto tinha percebido que se puxasse a pele antes de cortar, ficava com pele suficiente para poder fechar o coto de amputação...

Vi as águas os cabos vi as ilhas
E o longo baloiçar dos coqueirais
Vi lagunas azuis como safiras
Rápidas aves furtivos animais
Vi prodígios espantos maravilhas
Vi homens nus bailando nos areais
E ouvi o fundo som de suas falas
Que já nenhum de nós entendeu mais
Vi ferros e vi setas e vi lanças
Oiro também à flor das ondas finas
E o diverso fulgor de outros metais
Vi pérolas e conchas e corais
Desertos fontes trémulas campinas
Vi o rosto de Euridice das neblinas
Vi o frescor das coisas naturais
Só do Preste João não vi sinais
As ordens que levava não cumpri
E assim contando tudo quanto vi
Não sei se tudo errei ou descobri


CVR

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quinta-feira, março 23, 2006

e, se eu vos contasse? – 9.º programa – o hospital termal das caldas da rainha

Estamos diante do Hospital Termal das Caldas da Rainha que é, muito provavelmente o mais antigo hospital termal conhecido no mundo.
Inicialmente quando foi criado e construído não era como agora o vemos, uma vez que esta frontaria corresponde já às alterações que lhe foram introduzidas pelo rei D. João V e supervisionadas pelo engenheiro militar Brigadeiro Manuel da Maia.
O primeiro hospital data de 1484 e foi mandado construir pela rainha D. Leonor, esposa de D. João II e irmão do futuro rei D. Manuel, que para além de ser a alma deste hospital foi também a criadora das Misericórdias que este ano fazem 500 anos.
Há duas razões para explicar a razão desta decisão de D. Leonor de mandar construir o hospital. Uns dizem que tendo ela sofrido um aborto quando se encontrava em Almeirim, este se teria complicado com febre puerperal e nevralgias pélvicas, que só viriam a curar quando a rainha tomou banho nas águas sulfurosas das Caldas. Outros, dizem que não foi essa a razão e que tudo dependeu de a rainha passando por este local ter visto vários mendigos e pobres a banharem-se nuns charcos de água que por aqui havia e que se apiedou deles e logo decidiu empreender esta obra.
Tenha sido por uma ou outra razão ou por nenhuma delas, o certo é que a obra se fez e representou um grande avanço arquitectónico e funcional para aquela época. O hospital, para além dos banhos, estava dotado com enfermarias para homens, para mulheres, para religiosos e pessoas honradas, para peregrinos e passantes e para alguns empregados. A rainha dotou o hospital com um regulamento, chamado Compromisso e datado de 1512 e que determinava os direitos e obrigações dos doentes e de todos quantos ali trabalhavam e a forma de funcionamento: nele se estabelecia que o Hospital Termal abria no dia 1 de Abril e encerrava a 30 de Setembro de cada ano, data que viria ser alterado anos depois, em 1775, pelo Marquês de Pombal e D. José, que mandaram que passasse a abrir apenas a 15 de Maio.
O original do Compromisso encontra-se arquivado neste hospital, hoje Centro Hospitalar das Caldas da Rainha e foi um documento elogiado pela generalidade dos historiadores, com a excepção de Braamcamp Freire que o achava um regulamento mal feito e da rainha tinha uma opinião pouco favorável, que talvez se prendesse com a suspeita que chegou a haver de que teria sido ela quem teria envenenado o rei, seu marido, com arsénico, o que está em total desacordo com a ideia de pessoa misericordiosa que ela tinha. Inicialmente tudo era comandado pela rainha e depois do Compromisso pelo Provedor a quem ela conferia poderes quase reais dentro do hospital. O Compromisso estabelecia que o Provedor não podia ser frade, nem fidalgo acima de cavaleiro. Passou a usar como símbolo do poder, a bengala feita em cana da Índia, que a rainha costumava usar.
Foi por causa das águas termais e da rainha D. Leonor que nasceu a que é hoje cidade das Caldas da Rainha, que à data de 1500 não existia, nem como lugar. Foi criada por decreto e por incentivos vários, dados inicialmente por D. Afonso V, em 1474, que pretendia que 4 homens ali passassem a viver e construíssem casa onde pudessem dar guarida a todos aqueles que quisessem usar das águas. E posteriormente por D. João II, em 1488, que oferecia privilégios a vinte homiziados que ali se quisessem instalar e que deixariam de ser perseguidos pela polícia e teriam várias benefícios.

Depois a rainha pôs ao serviço do hospital as rendas de várias terras até aí pertença de Óbidos, Aldeia Galega e Merceana, para sustento do hospital e dos pobres que ali se fossem tratar. Assim se fez o lugar, depois a vila, hoje a cidade das Caldas da Rainha.
Não é certo que no local onde se construiu o hospital tenham sido encontrados vestígios da presença romana e da utilização das águas por eles, mas há quem defenda tal teoria. O que é certo é que havia 3 nascentes e a rainha mandou estudar qual seria a indicada para abastecer os banhos do hospital da água milagrosa. As canalizações eram em mármore e traziam a água para a sala do pocinho, onde se passou a beber e séculos depois a chamar buvette por influência francesa e para as piscinas dos banhos. A dos homens, onde cabiam 30 pessoas e que tinha a dimensão de 56 por 24 palmos e a das mulheres, onde cabiam 20 pessoas e tinha a dimensão de 46 por 13 palmos e ainda para o chamado banho da rainha, onde só esta se banhava e que agora estamos a ver.
À entrada havia uma sineta que tocava para marcar o início de funções. Chamavam-lhe a «campa».
Quando D. João V resolveu remodelar e aumentar o hospital as indicações que deu a Manuel da Maia foram as de que se devia fazer «o preciso, o decente e o mais cómodo para os doentes».
O tratamento termal durava 24 dias, assim repartidos:
1 dia para confissão e comunhão
5 dias de xaropes e 1 de purgas
3 turnos de banhos durante 9 dias
4 dias de folga entremeados a purgas e banhos
4 dias de convalescença
Segundo a estatística curavam-se por ano – 600 doentes.
O tratamento assentava nos banhos e posteriormente começou também a ser bebida, depois de um militar francês, de seu nome Patoullier, defender que elas faziam bem a tudo. Isso ocasionou uma quase revolta dos empregados dos banhos que achavam que dessa maneira iam perder o emprego e tudo fizeram para desacreditar Patoullier. Mas, a verdade é que vingou a tese de que as águas também faziam bem quando bebidas.
Embora tenha havido ao longo dos tempos várias análises feitas às águas, de muito pouco rigor científico, só é de crédito a análise feita já no século XX.

CVR

quarta-feira, março 22, 2006

pelo menos agridoce

Há já várias crónicas que ando a anunciar que, mais dia menos dia, ainda vou ser capaz de escrever uma crónica de esperança, construtiva e, se não doce, pelo menos agridoce.Quando me sentei diante do TFT de 19 polegadas que me ofereci (porque vão-se os euros mas fiquem os olhos, melhor dizendo, fique a visão), logo esta ideia me veio à cabeça e, de imediato, comecei a martelar as teclas e a ideia; mas, logo reparo que acabado este intróito, vou cair na real, como dizem os brasileiros, e verificar que, dificilmente, poderei levar esta crónica ao fim, se persistir em que ela saia sob o signo da esperança.Porque em boa verdade, esperança de quê? Além do mais hoje é dia 4 de Fevereiro e o dia 20 das eleições ainda está longe. E será que vai haver mesmo lugar à esperança?Eu sei que quando se quer, se pode fazer da desgraça, esperança. E para isso, bastava pensar na última das calamidades mundiais, pensar naquela onda gigante accionada por mão invisível que já contabilizou mais de 200 mil mortos, todos inocentes.Bastava pensar nesse tsumani, neste maremoto melhor dizendo, para ver o que a solidariedade e a esperança conseguem. Às imagens assustadoras daquela devastação, seguiram-se rapidamente as imagens daqueles rostos sofridos de muitos anos, agora mais sofridos ainda por este choque inesperado, que com sorrisos não esboçados, nem de circunstância, mas autênticos, afirmam com segurança que o que é preciso é reconstruir e tocar a vida para a frente. E, se o dizem, melhor o fazem, pois todos juntos, em união, arrancaram logo a caminho da reconstrução, construindo novamente o que se perdeu.E vem logo à ideia que também em Portugal, na segunda metade do século XVIII, houve um homem de vistas largas, embora de sentimentos curtos, que em situação semelhante disse a única coisa que havia a dizer – cuidar dos vivos.E assim se fez e, de tal modo, que ainda hoje se vê. E o que ainda se vê, dá para pensar no que agora se não vê. A vista larga, o planear e construir para o futuro, e não como agora, em que parece que se constrói para ontem, mais do que para hoje ou amanhã. Se o metropolitano tivesse sido decisão dele, seria que ainda andávamos a aumentar as plataformas das antigas estações que agora se mostram desajustadas para as necessidades?Nessa altura houve esperança e a reconstrução fez-se. Mas, houve também determinação e autoridade e respeito.E hoje o que há? Determinação? Autoridade? Respeito? Determinação de quem? Autoridade onde? Respeito de quem e de quê?E mais recentemente, naquela calamidade conduzida por mão bem visível e identificável que é a guerra do Iraque, assistimos a uma outra onda de esperança, talvez cega, talvez perdida, mas que não deixa de ser esperança, de alguns milhões de iraquianos que, apesar da destruição quase total do seu país por lobos disfarçados de cordeiros, apesar das ameaças de morte sentenciadas, foram capazes de se deslocarem às secções de voto e manifestarem a sua vontade e a sua determinação. Com essa atitude, chegaram até a alterar as leis da matemática e das estatísticas, pois em boa verdade aqueles 60 e tal por cento de votantes são mais do que 300 por cento de votantes em condições normais. Aqui se pode ver a força da esperança ou talvez a necessidade imperiosa de a ter.E que teremos nós? Ninguém está ameaçado de morte se votar e assim cumprir esse direito e esse dever. Todos sabemos que é importante, mais do que nunca, manifestar o sentir do povo português e o seu desejo de ter um país que nos encha de orgulho de a ele pertencermos.Mas,Por certo continuará a estar bom tempo e a ONDA espera-nos. Nas praias do norte, do oeste, do sul. Se não para tomar banho, pelo menos para passear, apanhar sol, comer um bom grelhado. Hoje, é dia de eleições, dirão alguns. Que se lixe, está um dia tão bom.E, se chover, a ONDA será outra. Será o «está-se tão bem na cama», «é tão bom ouvir a chuva, aqui entre lençóis», «está mesmo dia de centro comercial» ou ainda «está mesmo dia de ir ao cinema».Alguém tem esperança que não vá ser assim? Pergunto sinceramente – alguém tem esperança que não vá ser assim?E, no dia seguinte, dos dois lados em confronto, se ouvirá o mesmo – se calhar o meu voto fez falta.Mas, já será tarde. Já não haverá lugar para a esperança.Por mim, nem que seja para justificar o título desta crónica, digo-vos francamente – desta vez, tenho esperança que os portugueses acordem.
(Publicado em 2005 e agora renovado com imagens)
CVR

e, se eu vos contasse? – 8.º programa – a medicina na idade média

Nos primeiros séculos da Idade Média, a situação dos estudos e do exercício da medicina na Europa, oscilava entre a medicina laica que seguia as antigas tradições romanas, e a medicina escolástica, com sede nos conventos.
De entre as Escolas que funcionaram nestes recuados tempos, a mais importante foi a Escola de Salerno, desde o século IX ao século XIV.
Há dúvidas se o Papa português João XXI, de seu nome Pedro Hispano, ali terá sido professor.
Também não se tem a certeza e já entra no capítulo das lendas, se esta Escola de Salerno foi fundada por quatro médicos – um grego, um latino, um hebreu e um sarraceno, o que, a ser verdade, justificaria que esta Escola centralizasse nela várias orientações e estilos.
Numerosos tratados médicos foram aparecendo ao longo dos tempos de funcionamento desta Escola, mas o mais importante e conhecido, terá sido o «Flos Medicine» ou «Regimen Sanitatis Salernitarum», considerado a espinha dorsal de toda a literatura de práctica médica até ao aparecimento do Renascimento. Foi escrito sob a forma de poema. Milhares de médicos, ao longo dos tempos, sabiam estes poemas de cor. Supõe-se que deste livro se fizeram mais de 300 edições, em francês, alemão e italiano.
Existe uma grande semelhança entre este livro e o «Thesaurus pauperum» de Pedro Hispano, Papa João XXI, mas, tendo em conta as datas de aparecimento de um e de outro não será de admitir que a autoria do Regimen Sanitatis salernitarum se deva ao médico português, embora se desconheça quem realmente o escreveu.
A uroscopia ou estudo da urina como decifração diagnóstica, era respeitada nesta escola e um dos seus médicos Isaac Hebreu, escreveu um livro sobre esta teoria, tendo em atenção a cor, a densidade, o cheiro, conteúdo, floculação e depósito no vaso de noite.
Foi também nesta escola que Ruggero de Frugardo, escreveu a primeira obra com importância sobre cirurgia e chamada «Post mundi fabrican». Durante 3 séculos foi o livro cirúrgico adoptado e mais seguido em toda a Europa. Foi tão importante que acabou por dar origem a um outro famoso livro chamado «Livro dos quatro mestres», que mais não era do que a crítica destes à cirurgia de Ruggero. A leitura destes livros antigos surpreende-nos a maioria das vezes, por encontrarmos neles conceitos médicos e cirúrgicos que continuam a ser de grande actualidade e que mostram o nível elevado de pensamento de quem os escreveu. Por exemplo, na cirurgia de Ruggero, a descrição de como se deve actuar no caso de fracturas do crâneo com afundamento, é primorosa.
Também a cirurgia de Rolando de Parma foi importante. Era um livro muito ilustrado e com grande qualidade de imagens.
O curso de medicina na Escola de Salerno, durava 5 anos e havia depois um 6º ano para o futuro médico praticar, sob a direcção de um médico reconhecido. Após isso, a Escola concedia-lhe a devida autorização para o exercício da medicina.
A partir de 1300, dá-se o declínio da Escola de Salerno e da medicina daqueles tempos. Os médicos só se preocupavam em usar ricos e sumptuosos trajes, com a uroscopia e a investigação do dia e da hora em que devia ser feita a sangria. Os estudos de anatomia e fisiologia foram abandonados.
A medicina caíu tanto que havia que fazer algo por ela. É como resposta a isso, que aparecem as primeiras Universidades ou Estudos Gerais. Uma das primeiras, senão a primeira, foi criada em Montpellier. Havia universidades que dependiam do poder político e outras da Igreja, mas em ambas a última palavra competia ao Papa. Desde 1200, até ao fim da Idade Média, constituiram-se 80 universidades na Europa. Mas, o funcionamento destas nada tinha a ver com o que viria a ser depois.
A anatomia, por exemplo, ensinava-se em lugares ou casas modestas e sem condições e nalguns casos, em casas onde funcionavam prostíbulos. Muitas vezes as lições eram dadas na casa do professor, a quem os discípulos pagavam as lições e a cadeira em que se sentavam e por vezes o professor podia hospedá-los e viverem todos juntos.
Os estudantes, sobretudo os estrangeiros, viviam em hospedarias e pagavam uma mensalidade ao senhorio que era negociada por 4 mediadores da universidade. As casas onde viviam os estudantes eram quase sagradas e era quase impossível o senhorio pô-los na rua. As repúblicas coimbrãs...
Neste período houve cirurgiões famosos, como Hugo de Luca e Guido Lanfranco, mais conhecido como Lanfranc, pois foi desterrado de Itália em 1290 e fez quase toda a sua vida em Paris, onde escreveu a sua Nos primeiros séculos da Idade Média, a situação dos estudos e do exercício da medicina na Europa, oscilava entre a medicina laica que seguia as antigas tradições romanas, e a medicina escolástica, com sede nos conventos.
De entre as Escolas que funcionaram nestes recuados tempos, a mais importante foi a Escola de Salerno, desde o século IX ao século XIV.
Há dúvidas se o Papa português João XXI, de seu nome Pedro Hispano, ali terá sido professor.
Também não se tem a certeza e já entra no capítulo das lendas, se esta Escola de Salerno foi fundada por quatro médicos – um grego, um latino, um hebreu e um sarraceno, o que, a ser verdade, justificaria que esta Escola centralizasse nela várias orientações e estilos.
Numerosos tratados médicos foram aparecendo ao longo dos tempos de funcionamento desta Escola, mas o mais importante e conhecido, terá sido o «Flos Medicine» ou «Regimen Sanitatis Salernitarum», considerado a espinha dorsal de toda a literatura de práctica médica até ao aparecimento do Renascimento. Foi escrito sob a forma de poema. Milhares de médicos, ao longo dos tempos, sabiam estes poemas de cor. Supõe-se que deste livro se fizeram mais de 300 edições, em francês, alemão e italiano.
Existe uma grande semelhança entre este livro e o «Thesaurus pauperum» de Pedro Hispano, Papa João XXI, mas, tendo em conta as datas de aparecimento de um e de outro não será de admitir que a autoria do Regimen Sanitatis salernitarum se deva ao médico português, embora se desconheça quem realmente o escreveu.
A uroscopia ou estudo da urina como decifração diagnóstica, era respeitada nesta escola e um dos seus médicos Isaac Hebreu, escreveu um livro sobre esta teoria, tendo em atenção a cor, a densidade, o cheiro, conteúdo, floculação e depósito no vaso de noite.
Foi também nesta escola que Ruggero de Frugardo, escreveu a primeira obra com importância sobre cirurgia e chamada «Post mundi fabrican». Durante 3 séculos foi o livro cirúrgico adoptado e mais seguido em toda a Europa. Foi tão importante que acabou por dar origem a um outro famoso livro chamado «Livro dos quatro mestres», que mais não era do que a crítica destes à cirurgia de Ruggero. A leitura destes livros antigos surpreende-nos a maioria das vezes, por encontrarmos neles conceitos médicos e cirúrgicos que continuam a ser de grande actualidade e que mostram o nível elevado de pensamento de quem os escreveu. Por exemplo, na cirurgia de Ruggero, a descrição de como se deve actuar no caso de fracturas do crâneo com afundamento, é primorosa.
Também a cirurgia de Rolando de Parma foi importante. Era um livro muito ilustrado e com grande qualidade de imagens.
O curso de medicina na Escola de Salerno, durava 5 anos e havia depois um 6º ano para o futuro médico praticar, sob a direcção de um médico reconhecido. Após isso, a Escola concedia-lhe a devida autorização para o exercício da medicina.
A partir de 1300, dá-se o declínio da Escola de Salerno e da medicina daqueles tempos. Os médicos só se preocupavam em usar ricos e sumptuosos trajes, com a uroscopia e a investigação do dia e da hora em que devia ser feita a sangria. Os estudos de anatomia e fisiologia foram abandonados.
A medicina caíu tanto que havia que fazer algo por ela. É como resposta a isso, que aparecem as primeiras Universidades ou Estudos Gerais. Uma das primeiras, senão a primeira, foi criada em Montpellier. Havia universidades que dependiam do poder político e outras da Igreja, mas em ambas a última palavra competia ao Papa. Desde 1200, até ao fim da Idade Média, constituiram-se 80 universidades na Europa. Mas, o funcionamento destas nada tinha a ver com o que viria a ser depois.
A anatomia, por exemplo, ensinava-se em lugares ou casas modestas e sem condições e nalguns casos, em casas onde funcionavam prostíbulos. Muitas vezes as lições eram dadas na casa do professor, a quem os discípulos pagavam as lições e a cadeira em que se sentavam e por vezes o professor podia hospedá-los e viverem todos juntos.
Os estudantes, sobretudo os estrangeiros, viviam em hospedarias e pagavam uma mensalidade ao senhorio que era negociada por 4 mediadores da universidade. As casas onde viviam os estudantes eram quase sagradas e era quase impossível o senhorio pô-los na rua. As repúblicas coimbrãs...
Neste período houve cirurgiões famosos, como Hugo de Luca e Guido Lanfranco, mais conhecido como Lanfranc, pois foi desterrado de Itália em 1290 e fez quase toda a sua vida em Paris, onde escreveu a sua «Grande Cirurgia», que era o livro de texto usado em Paris e em outras universidades. Deve-se a ele a célebre frase, de grande importância política e educacional, «Ninguém pode ser bom médico se ignora as intervenções cirúrgicas, nem ninguém pode ser bom cirurgião e operar se não conhece a medicina e a anatomia». Foi o primeiro grito de alerta contra a descriminação de que os cirurgiões eram vítimas e uma tentativa de acabar com a práctica instituída de a cirurgia ser praticada por pessoas incultas e sem preparação.
É curioso que séculos depois, o Marquês de Pombal tenha querido pôr fim a esta desigualdade e tenha feito um decreto para resolver o assunto, onde usou esta frase, sem contudo lhe atribuir a paternidade.
A peste negra ou peste bubónica de 1347. Foi tão terrível que até nos livros de Cirurgia se lhe faz referência, como no de Guy de Chauliac. O médico, durante a peste, usava uma estranha indumentária, com vestes longas que o tapavam completamente, luvas altas e trazia no nariz uma esponja embebida em vinagre, em que se dissolviam pós de canela e cravo. Esta esponja era metida num nariz comprido de ave.
Foi durante esta peste negra que surgiu a ideia e práctica da chamada quarentena, que veio até hoje e consistia em manter o doente afastado de contactos com outras pessoas durante 40 dias.
Sangria, purgantes, vesicatórios e clisteres foram a base fundamental da terapêutica na Idade Média. Mas, o principal medicamento foi a teriaga, segundo uns inventada por Andrómaco, na antiguidade, segundo outros por Mitríades. Diz-se que a receita foi encontrada por um deles, escrita e esculpida em bronze, no templo de Asclépios em Epidauro.
A teriaga, ao longo dos tempos, teve as mais variadas composições. Era uma mistura de vários produtos, tendo como base a carne de víbora. Algumas teriagas tinham mais de 50 substâncias. A preparação era difícil e requeria cuidados especiais.
Em Itália, no final de 1400, havia uma classe médica bem organizada, com leis que regulamentavam o exercício da medicina. O médico não podia fazer um diagnóstico e estabelecer uma proposta grave, sem consultar outro colega. Havia uma multa de 40 soldos, se um médico falasse mal de outro. Em público....

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terça-feira, março 21, 2006

não me falem de política, que eu mordo!


Se há coisa que me baralhe a cabeça quando se trata de escrever algum texto obrigatório é ter a sensação de que se vai escrever sobre o já escrito, sobre um assunto que já tratámos anteriormente, um «remake» que, como todos os remeiques, será sempre inferior ao primeiro que se escreveu ou filmou, mesmo que feito com mais e melhores condições técnicas.Se isso me incomoda e me baralha, uma só coisa me poderá levar a insistir no tema já gasto – a estupidez do assunto ser tão chocante que a nossa compreensão se recusa a aceitá-la e a arquivá-la no fundo das coisas vistas e analisadas, sem lhe dar mais uma volta, mais um aperto, mais uma espreitadela, na longínqua esperança de perceber a razão última para tanta estupidez.E, por vezes, esta verificação é tão evidente que os neurónios começam a dar-se corda ainda antes de se escrever uma única palavra sobre o assunto. Foi isto o que me sucedeu hoje. O tema a tratar deve ter passado no ecrã do meu pensamento, com as luzinhas todas a brilharem e a correrem de forma tão impositiva que o sistema de alarme, qual antivírus atento, disparou os neurónios nesta corrida que até agora estão fazendo, sem proveito, mas de forma inevitável.E que tema é este que tal perturbação me traz e tanto esforço pede a meus cansados neurónios? A política, meus senhores. A política, seja a da saúde, seja a da justiça, seja a social e laboral, para já não falar nas relações exteriores. Essa porca, como portuguesmente lhe chamava Bordallo e nós lhe chamaríamos agora se não tivéssemos necessidade de lhe acrescentar vários adjectivos e superlativos.Pensa-se na política à portuguesa e basta escrever tópicos para se escrever um artigo, tantos e diversos eles são. Querem que vos mostre o que acabo de afirmar?Governo manda apertar o cinto a todos os portugueses. Por isso, passa a haver necessidade de contratar no estrangeiro, para não terem que apertar o cinto, preparadíssimos e adequados assessores para garantirem um perfeito e abalizado trabalho de fundo que permita ao Senhor Ministro saber o que faz quando for preciso tomar decisões ou o que diz quando simplesmente usar a palavra. Ainda recentemente foram contratados dois assessores para o Ministério da Defesa, de nacionalidade desconhecida e nome português, com vencimentos superiores ao do próprio Senhor Ministro.Para que isto fosse possível e coubesse dentro das verbas programadas e calculadas ao cêntimo no Orçamento mais apertado e politicamente correcto do século, houve necessidade de tomar várias medidas sensatas e que apontam para um são desenvolvimento dos jovens portugueses e para a confirmação das inatas virtudes deste povo de bem.Assim, para que os recém nascidos possam logo colaborar no esforço pedido a todos os portugueses e para que desde já aprendam a viver, a adaptar-se, e a saírem vitoriosos das várias contrariedades a que forem sujeitos, foi decidido que não haveria verba para dotar capazmente a unidade de cuidados intensivos da Maternidade com novas incubadoras, novos ventiladores, mais pessoal.Os jovens portugueses colaborarão, sobretudo os que vivem nas terras frias, dispensando aquecimento nas salas de aula a partir das onze horas, da manhã evidentemente, o que permitirá uma grande poupança e um desenvolvimento muscular e corporal apreciável por parte desses bons e jovens portugueses que farão que o seu exercício muscular permanente lhes mantenha as condições térmicas necessárias para não gelarem durante as aulas. E, para que não necessitem de gastar muita energia cerebral, poupando-a toda para a parte muscular, o Governo, sempre atento e protector, decidiu alterar o curriculum escolar e tirar dele todas as disciplinas que fossem esbanjadoras de energia cerebral.Por outro lado, os velhos, como parece que é bonito dizer-se agora, darão também o seu contributo, de modo a que alguns jovens iupis possam não ter que sentir qualquer necessidade ou dificuldade para frequentarem os ginásios, restaurantes caros e comprarem carros e fatos de marca. Por isso, o Governo decidiu, sabedor que era de que todos queriam contribuir para esse gigantesco esforço de recuperação nacional, que todos os pensionistas que auferissem mais de mil euros por mês não veriam aumentadas as suas pensões, o que não lhes causará qualquer transtorno, uma vez que durante 36 anos de trabalho se habituaram a vencer as dificuldades, e que agora, nesta época vespertina de suas vidas, têm menos necessidades e não precisam de frequentar restaurantes, pois haverá por certo um qualquer apoio domiciliário que lhes levará as refeições ao domicílio, ficando apenas obrigatórias as despesas com medicamentos e fraldas.Um país que ainda conta com portugueses destes pode considerar-se feliz e orgulhoso.Quando se soube de tais medidas, o resto da população, aquela a que se chama a força produtiva do país, reclamou também a sua participação e com tal veemência o fez, que o Governo acedeu a criar o pagamento de portagens onde as não havia, a aumentar as que já existiam e a subir os combustíveis, bem como o custo dos transportes públicos (e estes só depois de ter encarregado uma benemérita firma estrangeira que trabalha de borla, a fazer um minucioso estudo do sector), da água, do gás e da electricidade. E para que ficasse claro que tudo se fazia em nome dos necessitados e não dos barrigudos senhores que por aí pululam como cogumelos envenenados, determinou jogos malabares que levassem as acções da companhia eléctrica a não saírem da vertente descendente do gráfico, mostrando claramente quem são os portugueses inequivocamente apoiados por este salvador Governo.E é por tudo isto, meus senhores, que eu peço a todos que não me falem de política. Olhem que eu mordo e mordo mesmo ...

(Já publicado em 2005 e agora renovado com imagem)

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a angústia do percussionista sinfónico

Pedro Carneiro
Era o primeiro dia do ano 2002. Madrugada tardia, que outra não poderia ser, já que seguida às doze badaladas, às passas, ao champagne, aos beijos e abraços entre a família e os amigos presentes, à conversa solta, sem freio nos dentes, noite adentro.Estávamos sentados em volta da mesa do primeiro almoço do ano, já quase lanche, quando alguém perguntou a que horas transmitiam o Concerto de Ano Novo. Ninguém sabia, como aliás sempre sucede quando se pergunta sobre coisas ou programas da televisão que merecemos. Alguém disse, liguem lá a televisão, pode ser que esteja a transmitir o concerto. Não estava. Mas, pouco demorou.E, comme d’habitude, lá começaram as duas horas anuais dos Strausses, que não são para ouvir, nem apenas para ver, mas sobretudo para ouver. E, apenas para ver no que respeita ao desempenho músico-teatral do maestro japonês ou do par ou pares de bailarinos que ilustram uma ou outra música de cada um dos Strausses.Foi então que, no meio de uma dessas leves e flutuantes músicas (não me perguntem qual, pois não o fixei, nem é necessário para este efeito), os meus neurónios resolveram dar-se corda, para entrarem bem ginasticados no ano que então começava.A orquestra tocava afinada, como sempre, e como era de esperar. As toillettes das senhoras e os fatos dos cavalheiros eram impecáveis, como se esperava e a ocasião obrigava. As flores, em grande demonstração de alta arte floral, disciplina cromática e conceitos elevados de domesticação da natureza, mostravam ao mundo global a beleza floral de São Remo e o dinheiro que ali estava investido.E o maestro, ah, o maestro, esse, sem batuta, usava o corpo como um todo e todos os pontos desse todo, como a real batuta que levaria a bom porto acústico aquela nave musical. E, com as suas mãos e olhos expressivos, dava o espectáculo, nele habitual, da utilização teatral dos poderes magnéticos da inteligência e da sensibilidade.Tudo batia certo. Os violinos gemiam a preceito, a harpa deliciava, os violoncelos sublinhavam as frases, os oboés, os fagotes, as tubas, as bombardas, as trompas, as violas de gamba, todos aqueles instrumentos de nomes e feitios vários, sabiam o caminho a seguir, como se tivessem entreolhos e nem precisassem das ordens do dono, que, como eles, parecia também saber que não precisava de as dar e lhe bastava pontoar com os seus gestos e forma de estar, a beleza de sons que iam saindo.Tudo batia certo, de facto. As câmaras atentas da televisão austríaca, também elas bem amestradas e mostrando claramente que teriam sido inúmeros os ensaios e impecavelmente feito o roteiro de filmagem, totalmente sincronizado com a música, iam mostrando, frase a frase musical, o instrumentista fundamental em cada passagem, a paixão com que cada um tocava ou a indiferença nítida e tecnocrática dalguns.Ora nos mostravam o naipe dos violinos, ou o pequeno solo da flauta, ou os dedos sensuais da harpista afagando as cordas que lhe maltratam os delicados dedos, logo um pouco da performance do maestro, logo depois os dedos ágeis do pianista, o trombone, novamente a flauta e o fagote, tudo num fartote de imagens, ensaiadas e ensinadas a ler a música. Um regalo para o ouvido, um regalo para o olho.E, no meio de todos estes instrumentos, no meio de todos estes instrumentistas, um só se destacava pelo silêncio que a pauta musical lhe impunha. Um só deles, permanecia em palco, fardado como os restantes, segurando duas massas almofadadas, as mãos quase apoiadas na imensa pele de porco esticada do timbale, escutando atentamente, esperando a vez, esperando o sinal, esperando o desejado momento em que, embora de forma breve, iria participar naquele festim de música. Era o percussionista sinfónico.Foi então que os meus neurónios, no seu afã de se darem corda, começaram a pensar que não havia entre todos aqueles intérpretes, nenhum que tivesse a responsabilidade do percussionista ou vivesse tão intensamente a angústia. Não era fácil a vida do percussionista. É certo que, tal como os outros, sabia ler música, tinha uma pauta em frente do nariz que lhe marcava as entradas e lhe dizia o que tinha que fazer. É verdade, sim. Todos sabemos que é verdade. Mas, já pensaram nos efeitos de desatenção? Já pensaram nos efeitos que causa a espera, a longa espera, pelo momento, pelo seu momento, o seu único e importante momento de dizer e mostrar a importância do seu papel, de mostrar o som do seu instrumento e a forma como ele é indispensável? De mostrar como sem a sua pancada seca naquela pele esticada, ficaria um vazio, um buraco imenso na teia de notas daquela rede musical? Já avaliaram a responsabilidade de tal pancada?Se um 2º violino não passar o arco com a pressão devida ou se um dos seus dedos não comprimir a corda como deveria, ou se a unha não conseguir o pizicatto devido, outros violinos o farão correctamente e nem se dará conta disso ou pouquíssimos darão. Se a corda da harpa não for esticada devidamente, talvez sintamos um pequeno arrepio que nos fará ter dúvidas sobre a correcção daquela nota. E, por aí fora, uns instrumentos cobrindo outros, um punhado de sons sobressaindo e um conjunto que parecerá harmónico mesmo que o não seja na sua totalidade.E, se o percussionista solitário não der a pancada na altura certa? E se não a der com a força devida? E, se não abafar com a outra mão a estridência da pancada? E se se esquecer de a dar?Por isso, o rosto tenso, os olhos bem abertos, não se vão fechar, adormecidos, embalados pela cadência melódica da música. Atento, tenso, vai virando as folhas da pauta, mais descansadamente do que alguns que até para isso parecem não ter tempo e, por vezes, tão descansadamente, que já vai mais mesmo embalado e de tal modo, que sente um esticão em todo o corpo, quando se apercebe que se tinha deixado atrasar e os compassos que vê não correspondem àqueles que ouve. Apressadamente, volta a folha uma e outra vez, e quando verifica que já recuperou o andamento e que se aproxima cada vez mais o seu momento de glória, mais tenso fica, mais aparentemente desperto.E, nós continuamos a ver os músicos, agora um, logo outro, agora o maestro, dono e senhor de todos aqueles sons. E, quando a câmara nos mostra outra vez o percussionista e a música nos mostra também o caminho inevitável, nós percebemos que o momento do percussionista está a chegar. Vemos os pequenos gestos que faz, o esticar e encolher dos braços, o pequeno gesto de relaxe, de descontracção, o toque da pele, o rodar da massa, o ligeiro aperto do esticador, o cálculo da distância da massa à pele, o cálculo mental da relação entre a força de percussão e o som desejado. Tudo isso vemos se estivermos atentos. Os olhos do percussionista procuram naturalmente as mãos do maestro, o corpo do maestro, atentos ao sinal que irá ser emitido e a que ele terá que responder com precisão. Momento que surge, marcado por toda a orquestra que prepara a sua entrada e que nós sabemos que prenuncia o fim anunciado.É então que os mais atentos ou prevenidos, poderão ouvir um estranho som, de instrumento desconhecido, que nos faz lembrar um suspiro de alívio. Já percebem a angústia do percussionista?Quando perceberei eu que os meus neurónios estão desafinados?

Salzburgo em 1811 – gravura de Christian Gottlieb Hammer

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regaleira

Qualquer coisa me incomoda
Na cave cova em que me encontro.

Não é o estar só, que disso sabia.
Tão pouco a comida, que dessa gostei.

O cigarro é igual e arde mansinho.
O ruído bastante, mas não de mais

E os passos bailados do idoso criado,
Ementa na mão, frase na boca,
Sem nunca, mas nunca,
Parar de correr.
Lembram um ring de boxe
No match de seu viver.

Um uppercut de filetes de pescada,
Logo um swing de açorda de camarão.

Dá e foge. Não se deixa tocar.

Pelo nome o tratam,
Que lho sabem bem.

O que me incomoda, então?

O cavalo White Horse na parede?
A caravela ao fundo?
O outro cavalo, quase sugado
Pelo extractor de fumos?

Ou esta maneira de ser português?

Dia mundial da poesia

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segunda-feira, março 20, 2006

A Sé de Lisboa



A Sé de Lisboa, também conhecida como Sé Catedral ou Igreja de Santa Maria Maior de Lisboa, parece remontar ao ano de 1147, data em que Afonso Henriques ou Afonso I de Portugal, conquista Lisboa, até aí sob o domínio muçulmano. Terá sido pouco depois dessa data que se terá iniciado a construção desta Igreja.Nessa altura a cidade de Lisboa reduzia-se a uma fortificação dotada de uma muralha de três lanços, dois deles tendo como ponto de partida o castelo que dominava a colina e o outro correndo ao longo do rio Tejo. E já nessa altura o desenvolvimento da cidade se centrava mais em volta do rio do que em volta do castelo. Nesse tempo e nos anos imediatamente seguintes, pode dizer-se que Lisboa apresentava três centros de desenvolvimento – o Castelo, Alfama e a Mouraria.A Igreja edificada nessa altura não corresponde à actual porque foi sofrendo, ao longo dos anos, vários acidentes e sofrendo graves estragos motivados por sismos de intensidade variada consoante a época em que aconteceram. De realçar os sismos acontecidos nos séculos XIV, XVI e XVIII, muito especialmente o que destruiu grande parte da cidade de Lisboa, em 1755. Esta destruição quase total da cidade deu origem àquilo que hoje chamamos a Baixa pombalina, com as suas características modernas e progressistas, em que a cidade foi reconstruída segundo um esquema baseado no traçado de ruas perpendiculares e espaçosas.O Marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Mello, poderoso Ministro do Reino encarregou dessa reconstrução da cidade, Manuel da Maia que se fez rodear de colaboradores como Eugénio dos Santos e Carlos Mardel.Parece que a Sé de Lisboa terá sido construída no local onde existia anteriormente uma Mesquita de culto islâmico, que se supõe ter sido construída sobre um templo romano dedicado ao Imperador Augusto ou a Roma. A Sé de Lisboa é um belo exemplo de arquitectura religiosa medieval, em que os conceitos estéticos foram sacrificados às necessidades defensivas, daí o seu aspecto robusto e amuralhado, muito próximo do estilo românico tardio.Durante os séculos que se seguiram à sua construção, a Sé de Lisboa sofreu variadíssimas alterações em relação ao seu projecto inicial. No século XII foi erigido um corpo central com um pórtico de acesso constituído por quatro arquivoltas semicirculares incidentes em oito capitéis de decoração vegetalista e figurativa, com figuras estilizadas que tradicionalmente se tem pensado que serão representações dos mártires cristãos de Lisboa, do século IV, Júlia, Máximo e Veríssimo e um vão superior dominado por uma rosácea central, que cria uma estrutura de dois andares. Os vitrais da rosácea foram executados já neste século, nos anos 30, na fábrica de Ricardo Leone e foram feitos através da reconstituição de vários fragmentos encontrados do antigo vitral. Esta fachada é orientada a poente e é ladeada por duas enormes torres de secção quadrada com contrafortes e frestas, rematados por uma crista de merlões que acentuam o aspecto de fortaleza que a robustez dos muros definiam e materializavam. Estas torres são actualmente torres sineiras, substituindo nessa função a primitiva torre, destruída pelo terramoto de 1755 e que parece ter tido três andares e estar erguida sobre o cruzeiro. Hoje em dia, os sinos são visíveis através de vãos reentrantes adornados de colunelos. Na parede da torre sul pode ver-se um relógio de sol que deve ser anterior ao século XIX, uma vez que já aparece em gravuras desse século.Parece que esta fase inicial da Sé de Lisboa terá sido influenciada pela construção e arquitectura da Sé Velha de Coimbra, complementada nalguns aspectos pelos exemplares da arquitectura medieval que eram as catedrais de Évora, da Guarda e do Mosteiro da Batalha. Isso faz com que a Sé Catedral de Lisboa não se possa considerar um exemplar único da arquitectura nacional dessa época, apesar da sua acabada originalidade e personalidade.O corpo da Igreja é constituído por três naves de seis tramos, com a nave central mais elevada em relação às outras duas que para além de mais baixas são também mais estreitas. Diferem também porque a nave central termina em abóbada de berço perfeita articulada por aros torais enquanto as laterais acabam em abóbadas de arestas. Sobre os arcos torais da nave central corre o trifório, que aparece como um elemento arquitectónico inovador da Sé de Lisboa e posteriormente usado noutras construções e que no seu conjunto definem a nave central em dois andares, técnica original e que nada tem a ver com o modelo da Sé Velha de Coimbra. Os pilares, muito espessos, têm estrutura cruciforme e várias colunas adossadas, assentando os arcos torais nas colunas mais robustas.No cruzeiro eleva-se uma cúpula octogonal com abóbada de cantaria de oito nervuras e florão central. No transepto abrem-se dois grandes arcos de acesso ao deambulatório onde chama a atenção o facto de se ver a transformação da primitiva volta perfeita em ogiva. O transepto é coberto com abóbada de berço e é assimétrico no remate das paredes norte e sul, com o trifório a apresentar-se como tribuna.Tudo indica que inicialmente a igreja fosse rematada por uma charola simples, constituída pela capela-mor e por duas pequenas capelas absidiais, tal como se vê na Sé de Coimbra. Mas no século XII foi acrescentado um corpo lateral, desde o braço do transepto ao portal lateral da fachada norte e que é conhecido como o Camarim do Patriarca. E desde essa altura as obras na Sé de Lisboa, por causa dos terramotos ou por quaisquer outros motivos, passaram a ser uma constante.O baptistério do século XVII situa-se na torre setentrional, com abóbada de arestas e que no século XVIII foi revestida a azulejos de figura, com representações do Baptismo de Cristo e da Pregação de Santo António de Lisboa aos peixes, entre outros temas menos importantes.No fim do século XIII e princípio do XIV foi construída a chamada Capela de Bartolomeu Joanes, importante mercador lisboeta, que pagou a sua construção. É uma capela de estilo gótico com dois ramos e abside poligonal e com uma abóbada de ogivas que partem de colunas finas. É nesta Capela que sobre o altar gótico existe um retábulo de altar de oito tábuas maneiristas, da Escola de Grão Vasco e datadas da segunda metade do século XVI, que representam o Mosteiro de S. Bartolomeu, a Adoração dos Magos, a Anunciação, a Descida da Cruz e a Natividade e a Ceia de Cristo. Mas mais importante que este retábulo é o Presépio feito por Machado de Castro, datado de 1766, e que constitui um elemento representativo do gosto do pintor e corrente no século XVIII. É uma obra lindíssima constituída por inúmeras figuras em barro cozido, policromadas, e de pequenas dimensões, distribuídas cenograficamente. Na ilharga norte e indo de poente para nascente, pode ver-se a torre setentrional, a parte externa da capela gótica, coroada de merlões e rasgada de frestas de arco quebrado com porta lateral de acesso. Depois oferece-se a Sacristia dominada pela sala do Tesouro Velho, pelo topo do transepto, um pano de muro com janelão de três lumes e a muralha envolvente do claustro gótico.A fachada nascente apresenta seis janelões rasgados numa muralha compacta e elevada. Na fachada sul há um muro de suporte rematado por merlões e uma janela de arco quebrado. E por fim a torre sul.O transepto desenvolve-se em cinco tramos e é coberto de uma abóbada de berço perfeito e apresenta composição assimétrica nas faces internas dos topos norte e sul. O trifório prolonga-se nos dois braços como se fosse uma tribuna.Durante o tempo de Afonso IV, entre os anos de 1325 e 1357 houve importantes alterações na Sé, especialmente a nível do transepto, da torre-lanterna e da capela-mor, que nada tinha a ver com o seu aspecto actual. Hoje, a capela-mor apresenta-se em estilo barroco e neoclássico, revestida a estuque, pinturas e mármores, uma abóbada em arco abatido, pilastras jónicas e nove janelões atípicos que permitem uma luminosidade melhor da que haveria no tempo de Afonso IV. Destinava-se a esta Capela o famoso políptico de São Vicente que se encontra no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, e que se atribui a Nuno Gonçalves. Este políptico tem sido objecto de numerosos estudos e teses de doutoramento, incidindo sobre a sua verdadeira autoria e sobre as figuras ali representadas, muito especialmente sobre uma delas que muitos defendem representar o Infante D. Henrique, o navegador.As capelas radiantes foram reconstruídas depois do terramoto de 1755 e apresentam interiormente um tramo rectangular e uma abside poligonal de três panos rasgados por estreitas frestas maineladas que apresentam vitrais modernos e têm abóbadas de ogiva. No acesso a estas capelas, as colunas têm capitéis ornamentados com motivos vegetalistas marítimos e terrestres pretendendo representar os vários sectores da actividade económica portuguesa. É importante que se diga que a estrutura arquitectónica destas capelas serviu de modelo aos quatro absidíolos da igreja do Mosteiro da Batalha, com o traço de Mestre Afonso Domingues.O Claustro foi erguido no tempo de D. Dinis. No tempo de Afonso IV foi muito alterada a sua estrutura e o seu desenho, tendo-lhe sido acrescentado um segundo andar. A cobertura das galerias é de ogivas simples e sem formalotes que arrancam, como os arcos torais, de mísulas cónicas inseridas nos muros, em tudo semelhantes aos que se encontram no Mosteiro de Alcobaça e que lhe terão servido de modelo.Em apoio da teoria que diz que a Sé terá sido construída no local onde teria existido uma Mesquita, existem algumas pedras visigóticas, a mais importante delas apresentando a representação de animais quadrúpedes e aves, com arcos e conchas, metidas nas paredes da actual Sé de Lisboa. E em apoio de ter havido no mesmo local um templo pagão romano, também se podem ver nas paredes da Sé algumas pedras de origem romana.Em 1911 iniciou-se o restauro integral da Sé, que veio a prolongar-se até aos anos trinta. Em 1991 abriu-se um poço no jardim do claustro e, por acidente ocorrido, verificou-se que o poço dava acesso a vestígios de várias construções antigas e onde se encontraram parte de um muro romano, vestígios de construções árabes, e um pano verde fenício. Até esta data continuam as investigações arqueológicas e as escavações, sendo de prever a abertura de um museu.

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sexta-feira, março 17, 2006

E, se eu vos contasse? – 7.º programa – A medicina dos árabes


Depois da queda do Império Romano, iniciaram os árabes a conquista de outros povos e a sua expansão pela Europa. E foram observando aquilo que de melhor se fazia nos países que iam ocupando, em todos os sectores e também na medicina. Os califas transformam-se em verdadeiros protectores das escolas que vão encontrando.
O máximo esplendor desta protecção, verifica-se em Córdova, na nossa vizinha Espanha, onde por volta do ano 960 é criada a Academia de Córdova. Espantem-se senhores, como penso que cada um se espantará, quando eu vos disser que a biblioteca desta Academia tinha mais de 300.000 volumes. Também em Sevilha, Toledo e Múrcia surgiram novas Escolas. O ensino da medicina, nessa altura e nessas escolas, é considerado o mais precioso dos ensinos.
Os historiadores dividem-se quanto à importância que os árabes tiveram no desenvolvimento da medicina. Enquanto uns defendem que sem eles, nunca os ensinamentos de Galeno e Hipócrates teriam chegado à Idade Média e muito menos teriam passado para além dela, outros entendem que eles se limitaram a conservar os saberes que até aí se encontravam na posse da Igreja.
Isto faz-nos concluir que talvez se não possa falar de uma medicina árabe, mas apenas da apropriação que os árabes fizeram da melhor medicina de outros povos, sabendo usá-la, guardá-la e transmiti-la.
Mesué e Razes foram dois dos médicos árabes mais conhecidos. Este último, Razes, foi considerado o príncipe dos médicos práticos do seu tempo. Deixou mais de 300 livros escritos, de que três deles atravessaram os tempos e foram sido lidos pelos médicos dos séculos que se seguiram. Por exemplo, o «Livro da peste ou da pestilência», foi editado pela 1ª vez em 1498, em Veneza, séculos depois de ter sido escrito. Todo este livro é original, baseando-se apenas em casos, experiências e observações pessoais.

Razes pode ser considerado um seguidor de Hipócrates e combateu a importância exagerada que alguns atribuíam ao exame da urina ou urinoscopia, baseando nela quase toda a observação.
Razes tratou de saúde pública, medicina preventiva e doenças específicas. Vejamos os 7 princípios em que assentou a prevenção da saúde:
1 – moderação e equilíbrio esteja o corpo em movimento ou em repouso.
2 – moderação a comer e a beber.
3 – eliminação dos excessos.
4 – melhorar e regular os locais.
5 – evitar os excessos nefastos antes que se tornem incontroláveis.
6 – criar harmonia entre a ambição e a resolução.
7 – obrigar-se a adquirir bons hábitos, especialmente praticar exercício físico.

Escreveu uma enciclopédia médica em 22 volumes, intitulada «Kitab Al-Hawi (Continens)», que se transformou na bíblia médica do século X:
Volumes:
1 – doenças da cabeça
2 – doenças dos olhos
3 – doenças das orelhas, nariz e dentes
4 – doenças do pulmão
5 – doenças do esófago e do estômago
6 – vómitos, obesidade e caquexia
7 – doenças do peito, coração, fígado e baço
8 – as úlceras do estômago e do intestino e a disenteria
9 – ginecologia
10 – doenças do rim, uretra, etc …
11 – doenças do estômago causadas por parasitas abdominais, as hemorróides, as desordens vertebrais, a gota, as varizes, a elefantíase
12 – as diferentes espécies de cancro, inflamações, abcessos e tudo que se relaciona com as fraquezas do corpo
13 – as doenças dos ossos, fracturas, doenças internas e úlceras, feridas dos órgãos genitais
14 – defecação e vómito
15 – as febres e as doenças causadas pela obstrução dos canais naturais
16 – as febres trepidantes e esgotamento, febres e resfriados, febres ardentes ou febres infecciosas
17 – a varíola, a rubéola,e pragas da garganta
18 – condições críticas, crises
19 – a urina e relações com as picadas de serpentes, escorpiões e venenos
20 e 21 – a propósito dos medicamentos
22 – a farmacologia e assuntos respeitantes à medicina e à farmácia

E dizia que «a verdade, em medicina, é coisa que não se pode esperar: tudo que podemos ler nos livros tem menos valor que a experiência dum médico que pense e raciocine». Dizia ainda que «se o doente puder ser tratado com dieta, evitem-se os medicamentos e as associações deles e se pode ser tratado com medicamentos simples deve evitar-se associar vários medicamentos». Foi o primeiro a falar em asma alérgica e na rinite alérgica, relacionando-a com o cheiro das rosas (como dizia na sua dissertação sobre as causas da coriza na primavera, quando as rosas cheiram bem). Como se vê, ele tinha muita razão quando se referia aos médicos que pensam e raciocinam …

Mas o médico mais conhecido da época mais florescente da medicina árabe, foi Avicena. Escreveu o «Canon», onde ordena sistematicamente todas as doutrinas médicas de Hipócrates, Galeno e Aristóteles. Tem para si, como base fundamental de actuação, a teoria dos humores de Hipócrates. Este livro, escrito por volta do ano 1000, ainda em 1600 era livro base de qualquer médico ou Escola.
Dois séculos mais tarde e já no período de decadência da medicina árabe, destacou-se Averróis e depois dele o seu discípulo Maimónides.
Os árabes ficaram ligados ao desenvolvimento da farmacologia, tendo sido responsáveis pela introdução de vários medicamentos obtidos no reino vegetal e na química.
Os hospitais estavam bem organizados, nomeadamente o do Cairo, que já tinha enfermarias para feridos, febricitantes, doenças dos olhos, mulheres e outras. Havia um médico chefe que todos os dias dava lições aos seus discípulos e estes só poderiam vir a exercer a medicina depois de serem examinados por médicos velhos.
A cirurgia era considerada indigna de médico e era praticada por pessoas mal qualificadas, embora tivesse havido alguns que se distinguiram e foram célebres, pela sua actuação, pelos livros que escreveram e pelas magníficas descrições que fizeram dos vários instrumentos cirúrgicos.