Desde que se pratica a arte de curar, que em termos gerais se diz medicina, que existe uma clara disparidade entre o exercício da medicina e o exercício da cirurgia. Porquê, perguntarão os senhores telespectadores. Por uma razão ou um punhado delas fáceis de explicar. Durante séculos os conhecimentos médicos eram extremamente rudimentares e eram passados de boca a boca, portanto duma forma não muito diferente do que se passava com os actos cirúrgicos que também eram passados dessa forma. Com o aparecimento das universidades, teoricamente o ensino da medicina passou a ter alguma qualidade, embora não fosse muita. Só que nas universidades apenas se ensinava matéria médica e o ensino da cirurgia era inexistente e continuava a ser feito por pessoas incultas, que nem sabiam ler nem escrever, mas tinham habilidade para usar o bisturi em alguns actos cirúrgicos. Os médicos consideravam indigno o exercício da cirurgia. E séculos e séculos se passaram sem que esta situação fosse alterada. Em Portugal a primeira tentativa que se fez, não para equiparar médicos e cirurgiões, mas para dar a estes mais formação, foi com a criação em Lisboa do Hospital de Todos os Santos, que resultou da junção num só, construído de raiz, dos mais de cinquenta hospitais, ou assim chamados, que ao tempo existiam em Lisboa. Este hospital foi construído de 1492 a 1501, no local do Rossio, onde hoje é a Praça da Figueira, junto ao Convento de São Domingos. Tinha uma frontaria lindíssima de que sobressaía a sua igreja e escadaria. Tinha uma forma de cruz, em que a igreja era um dos braços e os outros três eram as enfermarias; a chamada de São Vicente para os febricitantes, que é como quem diz para todos aqueles que tinham febre, fosse qual fosse a sua causa, a de São Cosme para os feridos e a de Santa Clara para as mulheres.
Cada uma destas enfermarias tinha anexo um claustro com uma fonte no seu centro. Havia ainda uma outra divisão que era a casa dos enjeitados.
O hospital tinha inicialmente a capacidade de 103 camas, que logo vieram a mostrar-se insuficientes; por isso começaram a deitar dois doentes em cada cama, com os transtornos que isso representava. Por volta de 1551, acrescentaram mais duas enfermarias para sifilíticos e uma outra, na cerca, que servia apenas para internar os frades de São Francisco. Apesar disso o hospital continuava a ter uma capacidade insuficiente e sabe-se que por volta de 1601 tinha 324 doentes internados e em 1620 tinha 600, tendo chegado mesmo a ter 700 doentes, exactamente no dia em que foi destruído pelo terramoto de 1755.
Quando começou a funcionar dispunha de dois cirurgiões e de um médico, mas em 1564 já tinha 3 cirurgiões e dois médicos. Por alvará de 20 de Novembro de 1556 foi criada uma aula de cirurgia e anatomia, iniciando-se assim uma verdadeira escola de cirurgia que funcionou até ao século XIX. Para o funcionamento desta aula recorreu-se a estrangeiros, tal como se tinha feito em relação aos médicos de que destaco Dias de Ysla. E na cirurgia destacaram-se Afonso Rodrigues de Guevara e António de Monravá y Roca, este já no século XVIII e que deve ter sido o primeiro a criar uma universidade privada em Portugal, já naquele tempo e não nas últimas duas décadas como se podia pensar. A Academia das Quatro Ciências – Medicina, anatomia, cirurgia e física. Entre os portugueses e ao longo dos tempos destacaram-se António da Cruz e o seu livro Recopilação, e Manuel Constâncio, este já discípulo de Dufau, que se seguiu a Santucci.
O primeiro problema com este hospital viria a ter lugar em 1750, por causa de um grande incêndio que o destruiu quase por completo, estando internados 740 doentes e 5 anos depois foi totalmente destruído pelo terramoto de 1755.
Os doentes foram instalados em cabanas armadas no Rossio e nas cocheiras do Conde de Castelo Melhor e depois no palácio de Antão de Almada.
Só 4 anos depois, expulsos os jesuítas em 1759, foi o seu convento destinado a hospital a que deram o nome de São José em homenagem ao rei. Os doentes só foram transferidos em Abril de 1760. Iniciava-se então uma nova fase na vida hospitalar de Lisboa e na formação dos cirurgiões portugueses.
Pode dizer-se que a escola de cirurgia do hospital de S. José representou a grande escola formadora de cirurgiões até ao primeiro quartel do século XIX e mesmo até meados do século XX, se tivermos em conta que a Régia Escola de Cirurgia que viria a ser criada em 1825 ficou aqui instalada. Não está em causa dizer-se que aquilo que se ensinava neste hospital de S. José era bom ou mau, moderno ou antiquado. A única coisa que importa dizer é que este hospital representava o único local do país onde verdadeiramente se ensinava a cirurgia, mesmo tendo em conta que cirurgiões se iam formando em todo o país desde que o Cirurgião Mor ou o Físico Mor os aprovassem em exame. Sabe-se que estes exames eram na maioria dos casos autênticas burlas, havendo aprovações em troco de dinheiro dado ao examinador ou a outros cirurgiões que se apresentavam a exame na vez dos candidatos. A corrupção era um facto. Contudo, no princípio do século XIX houve outras aulas de anatomia e cirurgia a funcionar e com qualidade, mas eram aulas que formavam os cirurgiões militares. Foram particularmente importantes a de Chaves e a de Elvas. Houve cirurgiões preparados em Chaves que depois trabalharam e ensinaram neste hospital de S. José, outros que foram aqui professores, como houve cirurgiões deste hospital que foram ser professores em Chaves, nomeadamente o seu primeiro professor, de seu nome Manuel José Leitão. Também no Brasil se fundaram aulas de anatomia e cirurgia, nomeadamente no Hospital da Misericórdia e no Hospital Militar, ambos no Rio de Janeiro e outra no Hospital da Bahia. Para frequentar estas aulas de anatomia e cirurgia referidas já era necessário que os alunos soubessem ler, escrever e contar e que soubessem latim e francês, o que representava um claro e gigantesco progresso na dignificação desta profissão.
O Marquês de Pombal tentou honrar e dignificar a cirurgia e decretou que dessa data em diante as universidades ensinassem igualmente cirurgia e que os licenciados o fossem em medicina e cirurgia. Pouco foi conseguido com esse decreto. Para que verdadeiramente se iniciasse a caminhada para a equiparação da medicina e da cirurgia, foi necessário esperar por 1825 e pela criação das Régias Escolas de Cirurgia de Lisboa e do Porto, que por sua vez viriam a dar lugar anos mais tarde às Escolas Médico-Cirúrgicas (1836) e já no século XX às actuais Faculdades de Medicina.
Como se formaram estas Régias Escolas?. De uma forma extremamente curiosa e por razões marginais ao poder político. Sucedeu que o Intendente Geral da Polícia mandara prender o mais importante contratador de tabaco. Essa prisão despertou um movimento no sentido da sua libertação, mas todas as tentativas, mesmo que encabeçadas por gente de condição não obtiveram qualquer efeito. Alguém se lembrou então de interceder junto do rei e logo foi resolvido que a pessoa indicada para falar e pedir ao rei a libertação do contratador era o Cirurgião militar e Cirurgião Mor do Reino, Theodoro Ferreira de Aguiar, de quem o rei era muito amigo. Este acedeu em falar ao rei e este mandou libertar o contratador. A Corporação dos tabacos agradecida empenhou-se em agradecer principescamente a Theodoro Ferreira de Aguiar para o que se prontificaram a oferecer-lhe dez contos de réis. Theodoro Ferreira de Aguiar não aceitou e sugeriu que eles dessem o dinheiro ao rei para este, com esse dinheiro, mandar fazer duas Escolas Régias de Cirurgia e mais lhes sugeriu que a Corporação dos tabacos se encarregasse das despesas daquelas duas escolas enquanto durasse o contracto do tabaco. Assim sugeriu e assim sucedeu. O rei concordou e foi desta forma que nasceram as duas escolas. Nem sempre os caminhos do progresso e da modernidade passam por grandes decisões, mas apenas pelas cabeças e pela generosidade de uns quantos que têm do bem comum uma ideia correcta.
CVR
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