Analisemos isto. Passemos da ideia-pensamento-fala à ideia-pensamento-registo ou escrita.Se pensarmos nas formas várias de definir o homem, vamos sempre chocar com as definições originais de Cícero e de Aristóteles.O homem é um animal racional.O homem é um animal que tem logos.O que significa isto? Diz-nos a filosofia que ter logos é o mesmo que ter discurso. E, dentro deste conceito, se pode extrapolar e dizer que quem tem logos tem razão. Entendendo esta razão no sentido de ter discurso.Se entendermos este discurso como a fala de que falámos, podemos ver que, se em vez de o passarmos pelo aparelho fonador, o enviarmos pelas estradas secundárias que correm o braço, antebraço e mão, vamos obter o discurso escrito.E assim, teremos a escrita ou escritura, que se completará com a leitura.Escrit - ura, leit - ura, palavras com sufixo ura, que é um sufixo de futuro, um movimento para. Para o quê?Em principio, escrever implica leitura, como escrever ou ler implica quem escreve ou quem lê, destinatário último de quem escreveu.Tanto escrever como ler, são actos de movimento. Qualquer deles tem qualquer coisa de arrebatamento, de enlevo, de rapto.O sufixo ura, quer em escritura ou leitura, implica isso mesmo. O movimento que rapta o escritor ou o leitor à sua consciência de si. Ao mesmo tempo que significa a presença de si a si, se atentarmos em que con - sciencia, significa exactamente ter ciência de si ou ter presença de si. Sem ser adesão de si a si. Um turbilhão.E, escritor e leitor são levados no jogo espaço - tempo do texto. Do texto que os enleva. Que os en - leva. Deles se dirá que estão ausentes, que não dão conta de nada. Na verdade foram raptados.Escrever implica sempre essência.O pensamento vem quando ele quer, nunca quando eu quero. O eu não tem o controlo, nem é senhor do pensamento.É por isso que a escrita é uma aventura. Mais uma vez o sufixo ura nos mostra o significado de aventura -- o vir de coisas por vir. Como se fosse uma errância e o escritor um ser errante. Cada frase que escrevo, me abre outra frase, assim se encadeando umas nas outras.Escrita e leitura estão absolutamente ligadas. Se é certo que podemos encontrar escrita valiosa em gente inculta, o comum, diria, o normal, é que só pensa quem pensamentos já leu longamente. Do mesmo modo, só poesia faz quem leu muita poesia.Eu disse, só poesia faz. Assim mesmo. Fazer poesia. E, lá está a palavra grega poei, que significa fazer e é a antepassada directa da palavra poesia.Já alguém disse, suponho, que as nossas opiniões não são nossas ... andam por aí. Que queria dizer, quem isto disse? Exactamente o que eu disse, quando escrevi que só pensa quem pensamentos já leu longamente.E se o texto que o escritor escreveu for por ele metido na gaveta e fechado à chave? Deixou de ser escrito porque não teve leitores? Nunca. O acto de escrever era já de si, essência e movimento. E o movimento do leitor só começa quando começa a sua acção de ler. Quando for raptado. Até lá, perde-se este movimento mas não o da escrita, que esse já foi feito.Pensamento, fala, escrita. Linguagem. Língua. Língua portuguesa. Fonte e ponte da nossa união. Razão de estarmos aqui, fermento de união que já nos ligava, mesmo antes de nos conhecermos e que agora se estreita e nos confunde e faz de nós uma irmandade.Confrades da arte médica e da arte da escrita, convivas iguais sentados à mesma mesa da língua portuguesa, agora irmãos, agora amigos.Amigos que se vão ter e ler longamente e encontrar entre nós mais laços, mais pontes, mais pensamentos e sentimentos que nos podem enriquecer e levar a escrever mais amadurecidamente. Amigos que se vão deixar raptar e enlevar mais facilmente.Foi bom encontrarmo-nos, sabermos uns dos outros e não só daqueles que já uns e outros sabiam.Quantos de nós, do lado de lá do Atlântico, conhecem os vossos escritores mais autênticos? Quantos de vós conheceis os nossos, para além de Camões e Pessoa? Uns e outros conhecerão mais alguns, mas serão acasos, encontros bem sucedidos. Realizados.Agora, o campo abriu-se e do nosso intercâmbio, das nossas ligações, da nossa amizade, um mundo novo se pode abrir ao nosso pequeno e limitado mundo individual. Está em nós e só em nós, consegui-lo. Abrirmo-nos e darmo-nos. Abrirmo-nos e disponibilisarmo-nos para o que damos e para o que recebemos.É por isso que a UMEAL pode ser útil. Eu disse, pode. Não disse, é. Só o direi, quando cada um de nós, der os passos para o outro, para dar de si a outro. Quando os nossos caminhos forem comunicantes e não paralelos, fechados.Vejo agora que as considerações filosóficas acerca da língua só tinham um objectivo. A pretexto do pensamento, deixar falar o coração.Eu abri o meu. Que cada um de nós o abra também e se defenda assim da música terrível do silêncio e prefira antes o cântico da amizade.
CVR
www.darcordaoneuronio.blogspot.com
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