sexta-feira, março 03, 2006

E, se eu vos contasse? – 1.º programa


Começo hoje a publicar os meus programas televisivos da série «E, se eu vos contasse?», apresentados no canal TV Saúde da TV Cabo. O programa de hoje é apenas de apresentação. Quase no final, as imagens teatralizadas de um sketch estão substituídas pelo texto-guião.

Boa tarde, senhores telespectadores.
Começa hoje este programa chamado «E, se eu vos contasse», que pretende dar-vos a conhecer a História da Medicina e, de quando em quando, histórias da medicina ou, melhor dizendo, histórias da vida clínica, em que médico e doente serão autores.
Que interesse terá para vós esta rubrica? É natural que muitos de vocês, neste momento, estejam a fazer esta pergunta. É natural, mas não necessário, porque eu próprio me antecipo e vou, desde já, tirar-vos as dúvidas, não só em relação ao seu interesse mas também em relação a outra pergunta que anteriormente desejaram fazer, que era saber quem sou, o que faço aqui, porque sou eu e não qualquer outro.
Comecemos por mim, pela minha apresentação. Chamo-me Carlos Vieira Reis, como já terão provavelmente visto em rodapé, sou cirurgião, chefe de serviço hospitalar e para além da medicina tenho outros interesses, tais como escrever contos e romances, estudar e publicar artigos de História da Medicina, fazer programas de rádio, ter arrancado e mantido durante meses com o primeiro programa diário sobre saúde, quando começou a era das televisões privadas e ter mantido durante anos uma coluna semanal sobre saúde numa revista de grande circulação.
Não sou exactamente um novato nestas e noutras lides, como os meus poucos cabelos brancos deixam ver.
Mas, o que é que eu vos vou contar?
Sei lá. O que me vier à cabeça e eu pense que vos possa interessar. Desde já me defendo e me desculpo. Não vos garanto que o tema da minha conversa convosco tenha obrigatoriamente um princípio, um meio e um fim, sempre sobre o mesmo assunto. Poderá suceder que o princípio seja sobre o tema anunciado, o meio já não seja exactamente sobre ele e virmos a acabar o programa do dia a falar de algo que nem pensávamos em abordar. Mas, quando falamos uns com os outros não é exactamente isso que sucede. Não dizemos que a conversa é como as cerejas e evolui consoante as ligações que se vão encontrando ou estabelecendo?
Por exemplo, o tema de hoje deveria ser «A medicina instintiva, empírica, mágica e sacerdotal nos povos primitivos». Já me ouviram falar sobre isso?. Nem um pouco. Posso até dizer-vos que esse tema acabou de passar para o 2º programa. E, porquê?
Porque primeiro tive que me apresentar e dizer-vos ao que vinha e agora penso que vos devo apresentar também o local em que me encontro e dizer-vos qualquer coisa sobre ele. Trata-se da Casa Museu Bissaya Barreto e foi a antiga residência deste cirurgião ilustre que agora lhe dá o nome.
A sua importância na cirurgia portuguesa do século XX é enorme e não permite que nós tratemos da vida dele no resto de um programa. A vida dele e a importância que teve, necessitam de um programa exclusivo. Dele haveremos de falar em programa futuro.
Gostaria de terminar este programa de apresentação, com uma pequena e verídica história passada num dos hospitais de Lisboa, mais propriamente no Hospital do Desterro e no seu serviço de Cirurgia.

«A educação é uma coisa muito bonita.
A educação para além de ser uma coisa muito bonita, tem regras. É. feminina. E ter regras é muito bonito, é muito educativo, faz parte da ordem, que é outra palavra muito bonita. É por isso que quem não tem ordem é um desregrado. Vejam como tudo anda ligado, mesmo antes do meu conterrâneo Guerra Carneiro o ter escrito.
E quem tem regras, tem deveres, tem obrigações. Tem educação.
Era exactamente o que tinham os dois anestesistas que deram o pontapé de saída para esta história.
Sucedeu que um dos anestesistas era chefe e o outro estava ainda em trânsito para o ser. E sucedeu que este último foi colocado no Serviço onde o outro era chefe.
No dia em que foi colocado e como pessoa educada foi-se apresentar ao chefe. E este, como pessoa educada que também era, logo lhe disse – vamos entrar para a Sala de Operações que os cirurgiões já estão à espera e cirurgião é bicho que não gosta de esperar.
Apesar disso, apesar de já se fazer tarde, ape­sar de já estarem em falta, havia uma coisa que os anestesistas eram acima de tudo. Eram pessoas edu­cadas.
Daí que, mesmo com os cirurgiões já dentro da Sala, já equipados e prontos a operar, mesa posta, doente em cima da mesa de operações, completamente nu e com o soro a correr, o chefe não tivesse evitado as palavras de apresentação, as regras mais elementares de etiqueta.
E assim, começasse por dizer que aquele colega que o acompanhava era o novo interno do Serviço e que se chamava Fulano e que iam gostar dele. E por aí fora, continuou com as apresentações. O cirurgião Fulano de Tal e Tal, os ajudantes: Fulano e Cicrano de Tais, a instrumen­tista Fulana de Tal, a enfermeira circulante Cicrana de Tal.
As apresentações estavam feitas, podia começar o trabalho, depois de todos aqueles «prazer em conhecê-lo».
Foi então que o doente, todo nu como já se tinha dito, se ergueu na mesa, se virou para o novo anestesista e disse simplesmente – eu sou o doente. Prazer em conhecê-lo. Vá lá saber-se quem tomou chá em criança».

Tal como este correcto e educado doente, também eu me levanto desta cadeira, vos estico a mão e vos digo do fundo do coração «Prazer em conhecê-los».
Até para a semana.

(continua)

CVR

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