Começo hoje a publicar os meus programas televisivos da série «E, se eu vos contasse?», apresentados no canal TV Saúde da TV Cabo. O programa de hoje é apenas de apresentação. Quase no final, as imagens teatralizadas de um sketch estão substituídas pelo texto-guião.
Boa tarde, senhores telespectadores.
Começa hoje este programa chamado «E, se eu vos contasse», que pretende dar-vos a conhecer a História da Medicina e, de quando em quando, histórias da medicina ou, melhor dizendo, histórias da vida clínica, em que médico e doente serão autores.
Que interesse terá para vós esta rubrica? É natural que muitos de vocês, neste momento, estejam a fazer esta pergunta. É natural, mas não necessário, porque eu próprio me antecipo e vou, desde já, tirar-vos as dúvidas, não só em relação ao seu interesse mas também em relação a outra pergunta que anteriormente desejaram fazer, que era saber quem sou, o que faço aqui, porque sou eu e não qualquer outro.
Comecemos por mim, pela minha apresentação. Chamo-me Carlos Vieira Reis, como já terão provavelmente visto em rodapé, sou cirurgião, chefe de serviço hospitalar e para além da medicina tenho outros interesses, tais como escrever contos e romances, estudar e publicar artigos de História da Medicina, fazer programas de rádio, ter arrancado e mantido durante meses com o primeiro programa diário sobre saúde, quando começou a era das televisões privadas e ter mantido durante anos uma coluna semanal sobre saúde numa revista de grande circulação.
Não sou exactamente um novato nestas e noutras lides, como os meus poucos cabelos brancos deixam ver.
Mas, o que é que eu vos vou contar?
Sei lá. O que me vier à cabeça e eu pense que vos possa interessar. Desde já me defendo e me desculpo. Não vos garanto que o tema da minha conversa convosco tenha obrigatoriamente um princípio, um meio e um fim, sempre sobre o mesmo assunto. Poderá suceder que o princípio seja sobre o tema anunciado, o meio já não seja exactamente sobre ele e virmos a acabar o programa do dia a falar de algo que nem pensávamos em abordar. Mas, quando falamos uns com os outros não é exactamente isso que sucede. Não dizemos que a conversa é como as cerejas e evolui consoante as ligações que se vão encontrando ou estabelecendo?
Por exemplo, o tema de hoje deveria ser «A medicina instintiva, empírica, mágica e sacerdotal nos povos primitivos». Já me ouviram falar sobre isso?. Nem um pouco. Posso até dizer-vos que esse tema acabou de passar para o 2º programa. E, porquê?
Porque primeiro tive que me apresentar e dizer-vos ao que vinha e agora penso que vos devo apresentar também o local em que me encontro e dizer-vos qualquer coisa sobre ele. Trata-se da Casa Museu Bissaya Barreto e foi a antiga residência deste cirurgião ilustre que agora lhe dá o nome.
A sua importância na cirurgia portuguesa do século XX é enorme e não permite que nós tratemos da vida dele no resto de um programa. A vida dele e a importância que teve, necessitam de um programa exclusivo. Dele haveremos de falar em programa futuro.
Gostaria de terminar este programa de apresentação, com uma pequena e verídica história passada num dos hospitais de Lisboa, mais propriamente no Hospital do Desterro e no seu serviço de Cirurgia.
«A educação é uma coisa muito bonita.
A educação para além de ser uma coisa muito bonita, tem regras. É. feminina. E ter regras é muito bonito, é muito educativo, faz parte da ordem, que é outra palavra muito bonita. É por isso que quem não tem ordem é um desregrado. Vejam como tudo anda ligado, mesmo antes do meu conterrâneo Guerra Carneiro o ter escrito.
E quem tem regras, tem deveres, tem obrigações. Tem educação.
Era exactamente o que tinham os dois anestesistas que deram o pontapé de saída para esta história.
Sucedeu que um dos anestesistas era chefe e o outro estava ainda em trânsito para o ser. E sucedeu que este último foi colocado no Serviço onde o outro era chefe.
No dia em que foi colocado e como pessoa educada foi-se apresentar ao chefe. E este, como pessoa educada que também era, logo lhe disse – vamos entrar para a Sala de Operações que os cirurgiões já estão à espera e cirurgião é bicho que não gosta de esperar.
Apesar disso, apesar de já se fazer tarde, apesar de já estarem em falta, havia uma coisa que os anestesistas eram acima de tudo. Eram pessoas educadas.
Daí que, mesmo com os cirurgiões já dentro da Sala, já equipados e prontos a operar, mesa posta, doente em cima da mesa de operações, completamente nu e com o soro a correr, o chefe não tivesse evitado as palavras de apresentação, as regras mais elementares de etiqueta.
E assim, começasse por dizer que aquele colega que o acompanhava era o novo interno do Serviço e que se chamava Fulano e que iam gostar dele. E por aí fora, continuou com as apresentações. O cirurgião Fulano de Tal e Tal, os ajudantes: Fulano e Cicrano de Tais, a instrumentista Fulana de Tal, a enfermeira circulante Cicrana de Tal.
As apresentações estavam feitas, podia começar o trabalho, depois de todos aqueles «prazer em conhecê-lo».
Foi então que o doente, todo nu como já se tinha dito, se ergueu na mesa, se virou para o novo anestesista e disse simplesmente – eu sou o doente. Prazer em conhecê-lo. Vá lá saber-se quem tomou chá em criança».
Tal como este correcto e educado doente, também eu me levanto desta cadeira, vos estico a mão e vos digo do fundo do coração «Prazer em conhecê-los».
Até para a semana.
(continua)
CVR
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