sexta-feira, março 24, 2006

e, se eu vos contasse? – 10.º programa – medicina dos descobrimentos





Ah, seja como for, seja para onde for, partir!
Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar.
Ir para longe, ir para fora, para a distância abstracta,
Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas,
Levado, como poeira, p’los ventos, p’los vendavais!
Ir, ir, ir, ir de vez!

Pelas vozes dos poetas, falam os deuses. E, os deuses quiseram que assim fosse. Ao mar se fizeram os portugueses e pelos cinco cantos da Terra espalharam a língua, a fé e uma forma muito própria de estar. Os padrões com a cruz de Cristo foram sendo semeados por esse mundo fora, dando manifesto sinal do que pode a vontade de um povo. Ao mar se fizeram os portugueses e assim foram fazendo a sua história. Pelos mares andaram e pelos mares foram morrendo alguns e se salvando outros. E as caravelas foram progressivamente fazendo-se ao mais longe e desse modo fazendo do longe, perto.
A bordo seguiam os capitães, os padres, os marinheiros e aqueles que viam nessas distâncias seguras fontes de comércio e de riqueza.
Agora cinco, logo dez, depois vinte, as caravelas partiam.
A experiência ensina, os olhos vêem, os ouvidos ouvem, a inteligência organiza e desse modo se foi fazendo o saber de experiência feito.
Não só a ciência da guerra se foi desenvolvendo. A medicina também. Tudo foi vendo, experimentando e aprendendo. Técnicas novas que encontrava, a medicina dos gentios, as plantas medicinais, de tudo isso a medicina se foi servindo para mudar procedimentos e atitudes. Não significa isto que ela tenha melhorado ou se tenha verdadeiramente enriquecido, mas significa que mudou ou, de uma forma mais correcta, se aumentou. Se a maioria das coisas que os médicos faziam eram erradas ou demasiado empíricas, como hoje o sabemos, assim continuaram sendo, na maioria dos casos. Mas, erradas ou não, novas formas de tratamento passaram a ser usadas. E muitas outras coisas que eram usadas empiricamente, vieram a mostrar-se correctas, muitos anos mais tarde.
Falar da medicina dos descobrimentos é falar de qualquer coisa que não houve, a menos que consideremos positivo o que hoje temos como negativo.
Se pensarmos que muitos séculos antes, durante a expansão romana, não havia barco que não levasse médico ou legião que o não tivesse, mais nos custa a entender que a maioria das naus e caravelas portuguesas o não levassem a bordo e contassem quanto muito, com um padre versado em coisas médicas. Não surpreende pois que muitas das coisas que vieram enriquecer os conhecimentos médicos da época, nos tenham chegado por descrições feitas por capitães de navio, por capitães de tropas. Talvez a existência da Inquisição possa explicar algumas coisas. Se é verdade que os inquisidores passavam a pente fino todos os navios que demandavam Lisboa, numa tentativa de encontrarem livros de medicina ou cirurgia que eventualmente reproduzissem partes do corpo humano para prontamente os censurarem ou interditarem, mais activos seriam à procura e perseguição de médicos cristãos novos, o que fez com que os nossos melhores médicos daquele tempo tenham fugido de Portugal e tenham sido médicos famosos em toda a Europa.
Por essa ou outra qualquer razão, o certo é que não se encontram registos que confirmem a presença de médicos a bordo de todas as armadas portuguesas.
Apesar de tudo é possível estabelecer-se uma lista de 12 médicos que ainda durante o século XV teriam participado na aventura das descobertas e dos quais destaco Mestre José Vizinho, físico e astrólogo de d. João II e 45 outros médicos que acompanharam os nossos descobridores durante o século XVI, dos quais destaco Garcia de Orta que embarcou para a Índia na armada de Martim Afonso de Sousa e Dimas Bosque, licenciado por Salamanca e que ficou a dever a sua celebridade ao facto de ser o médico com quem Garcia de Orta dialoga no seu famoso livro Colóquio dos simples e cousas medicinais da Índia... Só à laia de comentário, tenho que referir que Garcia de Orta ia fugido à Inquisição e que apesar do seu livro ter sido autorizado pelo Inquisidor Mor, não impediu que os ossos daquele grande médico tivessem sido desenterrados alguns anos após a sua morte e tenham sido queimados em praça pública, juntamente com todos os exemplares existentes do seu famoso livro.
É curioso referir que muitos médicos desta época deram um grande contributo para os descobrimentos, não pela sua acção médica, que temos vindo a ver que não foi a melhor, mas sim pelos seus conhecimentos noutros ramos da ciência, nomeadamente naqueles que facilitavam a arte de navegar. Muitos médicos dessa época tiveram grande importância na astronomia e nas ciências-base da náutica, ajudando a resolver um grande número de problemas teóricos e a idealizar os instrumentos práticos que a navegação exigia, nomeadamente quando se avistava terra e a orientação tinha que se tomar com referência à altura do sol e às estrelas. E entre vários médicos que se distinguiram neste capítulo, destaca-se Pedro Nunes, professor da Universidade de Salamanca, parteiro da Rainha, autor do Tratado da Esfera e do famoso Nónio, de que até hoje se conhece um único exemplar. Foi Pedro Nunes o primeiro a separar as águas do conhecimento e das diferenças entre astronomia e astrologia, que até ele se confundiam.
Pouco deverá a medicina aos médicos daquele tempo, mas muitas foram as consequências das descobertas para a medicina. Antes de mais, o conhecimento e aplicação das plantas medicinais até aí desconhecidas na Europa. Depois a troca de experiências entre os europeus e os nativos que exerciam a arte de curar.
Também o import – export da patologia daquele tempo, com a migração das doenças e o conhecimento de novas doenças. A sifilis, a varíola, o escorbuto, a influenza, a malária, a lepra e tantas tantas outras, que foram andando de um lado para o outro, atravessando mares e distâncias, implantando-se sem barreiras ou resistências, em terras até aí virgens de tais patologias.
Há sempre quem aprenda e sempre quem ensine. Deste passar de uns a outros se vai fazendo o conhecimento. Não podemos duvidar da importância dos descobrimentos neste desenvolver dos vasos comunicantes do conhecimento e da aprendizagem. Estupefacção deve ter sido uma sensação comum, face a situações inesperadas e desconhecidas. Estupefacção teria sido o menos que cerca de quatro mil japoneses terão tido, quando viram pela primeira vez o homem de quatro olhos que o jesuíta Francisco Cabral representava, ao mostrar-se perante eles, em 1571, usando óculos para corrigir a sua miopia.
Embora sendo evidente que os hospitais daquele tempo nada tinham a ver com os hospitais de hoje, o certo é que existiam casas que se destinavam ao tratamento e internamento dos doentes e que tinham o nome de hospitais. E, fossem eles como fossem, o que importa é avaliar a este tempo de distância o relevante papel dos portugueses durante os séculos XVI e XVII que foram construindo ou adaptando o impressionante número de 40 hospitais, de acordo com o esclarecido trabalho do Professor Luís de Pina, de Cabo Verde a Macau, sem contar com o Brasil.
No que à cirurgia se refere, as amputações representavam talvez o acto cirúrgico mais praticado no tempo dos descobrimentos, quer por razões de feridas de guerra, quer por esmagamentos, quer por gangrenas. A este propósito e como demonstração de que se pode aprender estando atento às coisas, não posso deixar de referir o que nesse tempo dizia Bartolomeo Maggi, professor na Universidade de Bolonha, quando explicava que tinha aprendido a fazer amputações correctas, depois de ter visto trabalhar os carrascos de Veneza e que só depois de os ter visto tinha percebido que se puxasse a pele antes de cortar, ficava com pele suficiente para poder fechar o coto de amputação...

Vi as águas os cabos vi as ilhas
E o longo baloiçar dos coqueirais
Vi lagunas azuis como safiras
Rápidas aves furtivos animais
Vi prodígios espantos maravilhas
Vi homens nus bailando nos areais
E ouvi o fundo som de suas falas
Que já nenhum de nós entendeu mais
Vi ferros e vi setas e vi lanças
Oiro também à flor das ondas finas
E o diverso fulgor de outros metais
Vi pérolas e conchas e corais
Desertos fontes trémulas campinas
Vi o rosto de Euridice das neblinas
Vi o frescor das coisas naturais
Só do Preste João não vi sinais
As ordens que levava não cumpri
E assim contando tudo quanto vi
Não sei se tudo errei ou descobri


CVR

www.darcordaoneuronio.blogspot.com


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