Quando hoje comecei a dar corda ao neurónio para escolher o tema que ia tratar nesta coluna, caiu-me logo da prateleira dos arrumos recentes a Reunião do Curso Médico 1952/58 efectuada no último fim de semana em Aveiro. Caiu tão facilmente que, desde logo, a aceitei como tema.
Devo esclarecer, para que não haja qualquer dúvida, que o curso respeita a Coimbra e que foi tão tão importante que até teve direito à famosa balada da Despedida (Coimbra tem mais encanto …) escrita e musicada especialmente para a Récita do Curso, em estreia mundial, talvez já global …
Este curso de amigos, não só de colegas, tem reunido com grande frequência e até regularidade, mudando o local da celebração consoante a distribuição geográfica dos elementos do curso neste país à beira mar plantado. Este ano, Aveiro recebeu-nos. Para mim, motivo de dupla satisfação – porque gosto de Aveiro e já lá não ia há bastante tempo e porque tenho feito algumas ausências nas reuniões que agora pude pôr em dia.
No fim de semana passado, saldei a minha dívida com Aveiro e com as Reuniões de Curso. Por isso, regressei feliz e posso assegurar que tudo correu bem.
Comemorar 48 anos de curso, é obra! Compareceu a maioria dos que ainda restam, que são bastante mais do que aqueles que, infelizmente, nos deixaram. De uma forma geral, poderei dizer que todos se encontram em razoável estado de conservação, absolutamente dentro dos seus prazos de validade.
Há sinais do tempo, evidentemente. Cabelos mais brancos ou carecas maiores, rugas onde não as havia, colunas menos direitas, uma surdez ligeira aqui, um lapso de memória acolá, uma ligeira disartria mais adiante, um olhar mais ausente em rosto que era vivo, um certo arfar dispneico aqui e acolá, tosses várias, corridas periódicas aos lavabos, não mais do que isto. No resto, tudo bem. Tudo bem?
Penso que sim – olhos que brilham, abraços ainda fortes, a fala solta e fluente, a memória viva, o raciocínio fulgurante, o humor à flor da pele, a discussão acesa, os gostos e os interesses cada vez mais refinados, o gosto pela comida, a bebida moderada e certa para o momento, um manifesto gosto pela vida, uma defesa intransigente da sua qualidade, uma sentida certeza de que ainda podemos dar muito de nós aos outros, uma recusa de baixar os braços e aceitar, sem questionar ou intervir. Penso que sim, que estamos ainda vivos, diria mesmo que alguns estarão vivos como nunca estiveram. Sente-se terem vindo ao de cima gostos, hobbys, paixões insuspeitadas porque estranguladas por vidas clínicas activas e absorventes, que agora a reforma libertou. Vem à cabeça a frase interrogativa – quem diria. Quem diria, de facto, que alguns de nós se revelassem agora em novas facetas suas!
Não ouvi falar em morte. Todos falaram da vida e de como gostam de se sentirem vivos. Palpita-me que ainda vamos ter muitas Reuniões!
Mas falemos da parte social da Reunião. Na manhã de sábado, duas visitas culturais – ao Museu de Ílhavo, dedicado à faina maior, à pesca do bacalhau, com visão prévia de um vídeo nacionalista, do tempo da outra senhora, historicamente perfeito. Depois, visita guiada à faina principal, com descrição pormenorizada de todos os seus passos, desde os pequenos doris ao pequeno pipo da água ou da aguardente que os alimentava e lhes mantinha a força esforçada da pesca. Depois visitámos o Museu da Vista Alegre e a sua magnífica e rica capela privada.
A caldeirada de enguias que se seguiu na Costa Nova, retemperou todos, preparando-nos para a tarde que aí vinha. O regresso a Aveiro, foi feito de barco, com largo e demorado passeio pela Ria. Um dos nossos colegas, contou várias histórias verdadeiras passadas no navio Gil Eanes onde trabalhou alguns anos. Histórias de humor e de dor, já que não pode deixar de doer a demonstração tão real da ignorância pasmosa que aqueles esforçados portugueses mostravam naquelas pequenas histórias.
O jantar oficial foi diferente do habitual, pois contou com a colaboração de um grupo de aveirenses que se juntaram debaixo do nome de Confraria de São Gonçalo e que utilizando com mestria as suas inteligências e capacidades histriónicas e artísticas, se divertem e nos divertem de forma exemplar. Entre eles encontramos advogados, engenheiros, médico, técnicos superiores, publicitários. Um grupo coeso, meio anárquico, mas interligado e dirigido de forma consentida, de modo a proporcionar um espectáculo non stop, variado, ligado, inteligente, sarcástico, divertido. Uma maravilha terapêutica para o olhar (se as lágrimas do riso fazem bem ao olho), e para o coração e a mente (se é verdade que rir é o melhor remédio). Se o espectáculo foi bom, melhores serão seguramente os ensaios, em que a palavra estará mais solta e as ideias mais vivas. Tenho a certeza de que se divertem como ninguém. E isto dá que pensar. Dá para nos interrogarmos sobre a vida nas grandes cidades e na província. No caso concreto desta Confraria que aqui nos serve de exemplo, pergunto eu quantas experiências destas seria possível desenvolver nas grandes cidades e quantas estariam dispostas, no caso de existirem e sobretudo de subsistirem, a participarem em eventos, gratuitamente, apenas pelo prazer de estar e dar aos outros a alegria que conjuntamente vivem e exercitam. Desde que abandonei a grande cidade e me recolhi numa minúscula aldeia, cada vez mais recuperei a capacidade de me surpreender, de ser surpreendido. Garanto-vos que não voltaria a viver na cidade grande. Mas, disso poderei falar noutras ocasiões, não agora.
Na manhã seguinte, houve missa por todos os colegas falecidos ao longo destes 48 anos. Recomendo a quem não conheça, uma visita a uma jóia de arte religiosa, que é a riquíssima e bonita igreja de Jesus, do Museu de Santa Joana. Dificilmente se encontrará outra igreja que exiba tal riqueza e tal abundância de talha dourada, perfeitamente conservada.
Por fim, uma visita às Caves Aliança, subterrâneas, onde repousam milhões de garrafas de champagne e tonéis vários de aguardentes finas. Almoço em sala especial daquelas caves, por onde já passaram e ali comeram as mais altas figuras que têm conduzido o destino deste país, desde o tempo em nos tornamos médicos de carta passada e agora. Da qualidade do leitão, não falo, para não ter que salivar.
Adeus, amigos, até para o ano em Guimarães.
O tempo foge e não é possível agarrá-lo, mas é possível vivê-lo melhor.
Este curso de amigos, não só de colegas, tem reunido com grande frequência e até regularidade, mudando o local da celebração consoante a distribuição geográfica dos elementos do curso neste país à beira mar plantado. Este ano, Aveiro recebeu-nos. Para mim, motivo de dupla satisfação – porque gosto de Aveiro e já lá não ia há bastante tempo e porque tenho feito algumas ausências nas reuniões que agora pude pôr em dia.
No fim de semana passado, saldei a minha dívida com Aveiro e com as Reuniões de Curso. Por isso, regressei feliz e posso assegurar que tudo correu bem.
Comemorar 48 anos de curso, é obra! Compareceu a maioria dos que ainda restam, que são bastante mais do que aqueles que, infelizmente, nos deixaram. De uma forma geral, poderei dizer que todos se encontram em razoável estado de conservação, absolutamente dentro dos seus prazos de validade.
Há sinais do tempo, evidentemente. Cabelos mais brancos ou carecas maiores, rugas onde não as havia, colunas menos direitas, uma surdez ligeira aqui, um lapso de memória acolá, uma ligeira disartria mais adiante, um olhar mais ausente em rosto que era vivo, um certo arfar dispneico aqui e acolá, tosses várias, corridas periódicas aos lavabos, não mais do que isto. No resto, tudo bem. Tudo bem?
Penso que sim – olhos que brilham, abraços ainda fortes, a fala solta e fluente, a memória viva, o raciocínio fulgurante, o humor à flor da pele, a discussão acesa, os gostos e os interesses cada vez mais refinados, o gosto pela comida, a bebida moderada e certa para o momento, um manifesto gosto pela vida, uma defesa intransigente da sua qualidade, uma sentida certeza de que ainda podemos dar muito de nós aos outros, uma recusa de baixar os braços e aceitar, sem questionar ou intervir. Penso que sim, que estamos ainda vivos, diria mesmo que alguns estarão vivos como nunca estiveram. Sente-se terem vindo ao de cima gostos, hobbys, paixões insuspeitadas porque estranguladas por vidas clínicas activas e absorventes, que agora a reforma libertou. Vem à cabeça a frase interrogativa – quem diria. Quem diria, de facto, que alguns de nós se revelassem agora em novas facetas suas!
Não ouvi falar em morte. Todos falaram da vida e de como gostam de se sentirem vivos. Palpita-me que ainda vamos ter muitas Reuniões!
Mas falemos da parte social da Reunião. Na manhã de sábado, duas visitas culturais – ao Museu de Ílhavo, dedicado à faina maior, à pesca do bacalhau, com visão prévia de um vídeo nacionalista, do tempo da outra senhora, historicamente perfeito. Depois, visita guiada à faina principal, com descrição pormenorizada de todos os seus passos, desde os pequenos doris ao pequeno pipo da água ou da aguardente que os alimentava e lhes mantinha a força esforçada da pesca. Depois visitámos o Museu da Vista Alegre e a sua magnífica e rica capela privada.
A caldeirada de enguias que se seguiu na Costa Nova, retemperou todos, preparando-nos para a tarde que aí vinha. O regresso a Aveiro, foi feito de barco, com largo e demorado passeio pela Ria. Um dos nossos colegas, contou várias histórias verdadeiras passadas no navio Gil Eanes onde trabalhou alguns anos. Histórias de humor e de dor, já que não pode deixar de doer a demonstração tão real da ignorância pasmosa que aqueles esforçados portugueses mostravam naquelas pequenas histórias.
O jantar oficial foi diferente do habitual, pois contou com a colaboração de um grupo de aveirenses que se juntaram debaixo do nome de Confraria de São Gonçalo e que utilizando com mestria as suas inteligências e capacidades histriónicas e artísticas, se divertem e nos divertem de forma exemplar. Entre eles encontramos advogados, engenheiros, médico, técnicos superiores, publicitários. Um grupo coeso, meio anárquico, mas interligado e dirigido de forma consentida, de modo a proporcionar um espectáculo non stop, variado, ligado, inteligente, sarcástico, divertido. Uma maravilha terapêutica para o olhar (se as lágrimas do riso fazem bem ao olho), e para o coração e a mente (se é verdade que rir é o melhor remédio). Se o espectáculo foi bom, melhores serão seguramente os ensaios, em que a palavra estará mais solta e as ideias mais vivas. Tenho a certeza de que se divertem como ninguém. E isto dá que pensar. Dá para nos interrogarmos sobre a vida nas grandes cidades e na província. No caso concreto desta Confraria que aqui nos serve de exemplo, pergunto eu quantas experiências destas seria possível desenvolver nas grandes cidades e quantas estariam dispostas, no caso de existirem e sobretudo de subsistirem, a participarem em eventos, gratuitamente, apenas pelo prazer de estar e dar aos outros a alegria que conjuntamente vivem e exercitam. Desde que abandonei a grande cidade e me recolhi numa minúscula aldeia, cada vez mais recuperei a capacidade de me surpreender, de ser surpreendido. Garanto-vos que não voltaria a viver na cidade grande. Mas, disso poderei falar noutras ocasiões, não agora.
Na manhã seguinte, houve missa por todos os colegas falecidos ao longo destes 48 anos. Recomendo a quem não conheça, uma visita a uma jóia de arte religiosa, que é a riquíssima e bonita igreja de Jesus, do Museu de Santa Joana. Dificilmente se encontrará outra igreja que exiba tal riqueza e tal abundância de talha dourada, perfeitamente conservada.
Por fim, uma visita às Caves Aliança, subterrâneas, onde repousam milhões de garrafas de champagne e tonéis vários de aguardentes finas. Almoço em sala especial daquelas caves, por onde já passaram e ali comeram as mais altas figuras que têm conduzido o destino deste país, desde o tempo em nos tornamos médicos de carta passada e agora. Da qualidade do leitão, não falo, para não ter que salivar.
Adeus, amigos, até para o ano em Guimarães.
O tempo foge e não é possível agarrá-lo, mas é possível vivê-lo melhor.
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