Estou à porta do Hospital do Desterro que, como grande parte dos antigos hospitais foram instalados em antigos conventos. Este Convento do Desterro foi fundado em 1591 pelos monges de S. Bernardo. Como muitos destes edifícios tem uma história complicada de ocupações e destinos. De uma forma geral e simplificada posso dizer-vos que em 10 de Agosto de 1750, recebeu todos os doentes existentes no Hospital Real de Todos os Santos após um grande incêndio que lavrou naquele Hospital. Estes doentes seriam posteriormente alojados no Colégio de Santo Antão. Durante esta ocupação os frades foram alojados no chamado Palácio dos Arcebispos de Lisboa, contíguo à Sé e conhecido por Pátio da Sé. Depois do terramoto de 1755, foi reconstruido e foi habitado pelas monjas da Ordem de Cister que só abandonariam o convento em 1814, tendo entretanto albergado, no fim do século dezoito e princípio do século dezanove, o Hospital da Marinha até 1806, data em que este se instalou no Campo de Santa Clara onde ainda hoje se encontra. Passou depois a servir como Colégio dos Meninos Órfãos da Mouraria e da Real Casa Pia e de seguida deu guarida a doentes infecto-contagiosos do Hospital de São José, especialmente os de febre amarela e cólera. Durante duas décadas funcionou como quartel e depois de 1856 passou a estar ao serviço do Hospital de S. José, como anexo, para doenças infecto-contagiosos, venéreas e cancro. E desde essa altura que aqui funcionavam enfermarias para sífilis, o que justifica a nossa presença aqui, uma vez que o que eu hoje vos quero contar é um pouco da história da sífilis.
Depois das pestes, da fome e da guerra que atravessou grande parte da Idade Média, a esperança começou a renascer e nos finais do sec. XV as cidades da Europa apresentavam grande desenvolvimento. Era a entrada do Renascimento. Homens e mulheres mudaram os hábitos e procuravam mais os prazeres mundanos. O sexo, até aí muito reprimido e até excomungado, tornou-se mais vulgar, o que levou ao aparecimento de mais adultério, prostituição e criação dos banhos públicos como locais de prazer e não propriamente de higiene. É o tempo em que Colombo, depois de ter oferecido os seus serviços ao Rei de Portugal, que lhos não aceita e até repudia (mal informado por pessoas consideradas da Corte, de que se destaca Vasco da Gama que, consta, teria aconselhado a sua morte ou prisão), os vai oferecer ao Rei de Espanha que os aceita. Parte assim Colombo para a sua viagem à procura da Índia, mas, em vez disso, chega a terras da América que vai baptizando a seu gosto. Chega então ao que hoje se chama Haiti e ele chamou de Hispaniola. Os marinheiros sedentos de ver mulheres e de satisfazerem seus prazeres recorrem àquelas belas mulheres tisnadas quase despidas que, com gosto, afogavam seus desejos. Satisfeitos, continuaram viagem, desconhecendo, contudo, que carregavam consigo uma nova doença desconhecida na Europa, que viria a chamar-se sífilis.
Regressados, começaram por sua vez a contaminar os seus parceiros sexuais com grande rapidez. Posteriormente com a guerra que Carlos VIII de França desenvolve em Itália, aumentaria ainda mais. Os italianos foram ajudados por Fernando de Espanha e, desse modo, vão os franceses e os italianos serem contaminados com esta nova e terrível doença. Coube aos marinheiros de Vasco da Gama disseminar a doença no Oriente, levando-a na sua primeira viagem a Calecute em 1498. A propagação da sífilis foi tamanha que levou a que os novos hospitais tentassem cuidar dela. No novo hospital que D. João II mandou fazer, de raíz, em Lisboa e D. Manuel I inaugurou – o Hospital Real de Todos os Santos – foi criada a chamada «casa das boubas», que era o nome utilizado então, para se designarem adenomegálias, abcessos, úlcerass, verrugas e pápulas.
Um dos mais importantes médicos que trabalharam no século XVI no Hospital Real de Todos os Santos, Rui Dias de Ysla, andaluz, no livro que escreveu sobre esta doença (Tratado cõntra o mal Serpentino que vulgarmente em España es llamado bubas), diz-nos que a sífilis é uma doença de importação americana, dizendo que o primeiro caso conhecido na Europa, ocorreu em Barcelona, em 1493, por via marítima. De Barcelona terá passado para Nápoles e quando os franceses invadiram este reino ali contraíram a doença pelo que lhe chamaram «mal de Nápoles», enquanto os italianos lhe chamavam «mal francês». Em Portugal chamava-se-lhe «mal de Castela», do mesmo modo que na Índia se lhe chamava «mal dos portugueses», sempre em função daqueles que eram responsabilizados pelo contágio. Estes nomes significavam apenas que ninguém queria a sua paternidade e era sempre o «mal dos outros». Mas Dias de Ysla chamou-lhe mal serpentino e ajudou a criar ideias mais precisas sobre a importância do contágio na transmissão da doença, recusando as ideias feitas de que seriam os astros a comandar a sua propagação. Estabelece princípios de profilaxia e higiene que se podem considerar notáveis para aquele tempo. Recomenda um exame médico semanal às mulheres públicas ou de má vida, como se dizia, e no caso de infectadas aconselhava o seu internamento em casas próprias, hospitais ou cárceres, só voltando a poder exercer a profissão passado um ano do seu isolamento. Recomenda (e temos que dar o desconto a Dias de Ysla por recomendar tal coisa, uma vez que o fez no século XVI), que as prostitutas vistam fatos próprios que as identifiquem como profissionais daquele ramo e que usem um documento de saúde que ateste o seu estado de saúde ou de doença. Mas se chamei a atenção para este facto e se compreendo que Dias de Ysla tenha recomendado tais coisas, justificadas pela época em que o fez, tenho que me penitenciar por não ter pensado logo que na primeira metade do século XX ainda as prostitutas eram portadoras dum boletim de sanidade próprio, que as fazia transportar esse ferrete da sua profissão indigna aos olhos da sociedade. Mas Dias de Ysla era um homem de vistas largas, «clever» como dizem os ingleses, e mandava estender estes exames médicos às criadas das estalagens e das tavernas, sabedor que era que elas estavam mais expostas ao assédio sexual dos clientes dessas baiucas e muitas delas não eram mais que prostitutas encobertas ou criadas com duplo emprego.
Coube a Girolamo Fracastoro dar o nome de sífilis a esta doença quando, em 1530, publicou o poema «Syphilis, sive morbus gallicus», no qual descreve a moléstia com que Apolo castigou o pastor Syphilus que teria praguejado contra ele. Inicialmente pensou-se que a transmissão se fazia através da pele o que levou, rapidamente, ao encerramento dos banhos públicos. Quando se começou a suspeitar que a transmissão era por via sexual, houve repressão sobre a prostituição e «inventaram-se» os preservativos feitos com intestino de carneiro. A sífilis passou, então a atingir grande parte da população não evitando classes sociais, género ou profissão. Foi assim que ao longo dos tempos, se sabe que foram contaminados pela sífilis gente célebre como os Reis Henrique VIII, Ivan o Terrível, Francisco I de França. Filipe II, Filipe IV e Carlos II de Espanha, Francisco José da Áustria e seu irmão Maximiliano, Afonso de Portugal, Maria Stuart, Sade, Lord Randolph Churchill, Franz Litz, Frans Schubert, Lola Montez, Guy de Maupassant, Stendhal, Lord Byron, James Joyce, Rimbaud, Óscar Wilde, Van Gogh, Gauguin, Goya, Samuel Colt, Benito Mussolini e por aí fora uma lista imensa de celebridades que traduz bem a dimensão do problema. Como curiosidade, devo dizer que até a moda foi obrigada a adaptar-se a esta nova doença e assim nasceram, no século XVIII, as cabeleiras postiças e as rendas farfalhudas à volta do pescoço que serviam para esconder as alopecias e as úlceras do pescoço.
A luta pela descoberta das armas necessárias para combater este mal levou à descoberta em 1905 do agente causador, o treponema pallidum, por Fritz Schaudin. Wasserman descobriu um ano depois o método que permite o seu diagnóstico laboratorial. Ehrlich, na sua 606.ª tentativa descobre o «Salvarsan» que parecia ter eficácia nas lesões cutâneas. Mas teria que se esperar pela descoberta da penicilina, por Fleming, para a partir de 1941 se poder dispor de uma verdadeira arma terapêutica.
Não deixa de ser chamativa a semelhança da história da sífilis com a da SIDA. Também esta apareceu após uma liberalização dos costumes e da prática sexual desenfreada que se iniciou nos anos 60 do século XX, a forma como durante muito tempo constituiu o «mal dos outros», a repressão inicial sobre homossexuais, sobre os haitianos (a Hispaniola), o encerramento de saunas. Era ainda a doença dos 4 H: homossexuais, heroinómanos, hemofílicos e haitianos. Quando se percebeu que também os heterossexuais eram infectados um novo H se acrescentou – o de «hooker», tal como antes com a sífilis. Separadas por cinco séculos, sífilis e SIDA, sexo e doença andaram de mãos dadas, fazendo renascer terrores ancestrais que podemos situar em Sodoma e Gomorra, como vem narrado no Antigo Testamento, e que são base de perigosos fundamentalismos.
Mas num e noutro caso não foi por terem sido transgredidos certos tabus sexuais, mas sim porque foram esquecidas certas regras e modos de vida que sempre é necessário manter.
Mas num e noutro caso não foi por terem sido transgredidos certos tabus sexuais, mas sim porque foram esquecidas certas regras e modos de vida que sempre é necessário manter.
Até para a semana, com novo tema e programa.
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