Na Visão desta semana, José Gil, publicou na sua habitual coluna este magnífico texto que intituçou «Os anos que aí vêm». Filósofo esclarecido e respeitado que é, sempre nos habituou a análises correctas da matéria em discussão. Sei que todos os leitores da Visão o lerão seguramente, mas acreditão que ao colocar aqui esse texto outros poderão usufruir da sia esclarecida análise, aqui o deixo para aqueles que por aqui passem.
Os anos que aí vêm
Sistema político, o Governo, a democracia saem com muitas feridas deste mês caótico que acabámos de viver. O discurso dos
responsáveis políticos, sobretudo, atingiu o grau zero do descrédito. Diz-se tudo e o seu contrário, anuncia-se, desmente-se, volta-se a anunciar, recua-se, promete-se e descompromete-se. Ninguém acredita já em Passos Coelho, em Vítor Gaspar, em Paulo Portas - e já pouco no Presidente
da República. Tudo se quebra, se fende, se esboroa: a confiança nos nossos líderes, a esperança no futuro, a fé numa qualquer solução para a crise. Só acreditamos no abismo e na «explosão nuclear» prestes a rebentar no meio das nossas vidas. A população inteira está contra o Orçamento de Estado (OE). Mas os nossos governantes clamam com uma tal convicção «que só há esta solução ou o País entra
em falência», que este género de chantagem acaba por se impor. Adotamos então - desde os economistas ao cidadão comum
- uma dupla crença contraditória: que a
extrema austeridade é a única saída para
a crise, e que o Orçamento que a instaura nos levará à catástrofe. É o cúmulo do caos mental das breves semanas que acabamos de atravessar. Mas alimentamo-nos assim com um resto ínfimo de confiança suicidária.
Apesar de o português saltar de um para outro acontecimento que o absorve por inteiro, esquecendo rapidamente o primeiro - veja-se: bastou aquele incrível comunicado do presidente do CDS, afirmando a fidelidade à coligação, para que o tumulto da vida política parecesse desaparecer como por encanto -, o desgaste provocado por todo este «barulho»
Tudo se quebra, se fende, se esboroa: a confiança nos nossos líderes,
a esperança no futuro, a fé numa qualquer solução para a crise
à volta do OE não se vai apagar tão cedo.
A crise de confiança é total. E o pior, é que não se vê uma possibilidade consistente de resistência ao que nos é proposto e imposto. Viver-se-á, então, nos limbos de um impasse: entre a desconfiança e a resignação. Não haverá oposição da população - as manifestações, mesmo regulares, não congregam vontades de uma população
a que falta o povo -, porque o alvo não tem contornos bem traçados: o primei¬ro-ministro?; o ministro das Finanças?;
o Governo? a troika? Aonde está o poder, na Europa ou ainda na nossa soberania mutilada e alienada? Quem «manda» em Portugal: Passos Coelho ou a sr.a Merkel? À falta de um adversário bem definido, as forças de luta dispersam-se ou voltam-se contra elas próprias.
E, AFINAL, se não se vê saída e se a chantagem à «solução sem margem de manobra do OE» vai resultar, é porque o Governo não teve coragem, nem vontade política, de atacar a estrutura socioeconómica
do nosso sistema estadual e político.
Por isso o OE é iníquo e profundamente injusto. Quem manda em Portugal? Internamente, os «poderes instalados» (como se diz), quer dizer, a rede de cumplicidades e promiscuidade entre o poder político e o poder económico, a conivência dos que se alimentam dos compadrios, clientelismo partidário, parentesco, amizades, e que reservam para o seu clã os lugares e benefícios que oferecem o Estado, as instituições e as empresas, nos múltiplos focos, camadas e sub-redes de que o poder é feito. A crise pôs a nu este esquema sumário que divide a sociedade em dois grandes grupos (em traços muito largos): os privilegiados, e os pobres e «remediados».
O Estado tornou-se, assim, um grande reservatório de mais-valias exorbitantes, milionárias, graças ao clientelismo e à corrupção - situação que começou a ser corrigida depois do 25 de Abril (por isso se quer agora desmantelar o Estado social). A crise e o O E vão-nos fazer regressar à situação anterior, própria de certos Estados autoritários e subdesenvolvidos. Com todos os perigos que se instalam já e se anunciam para a democracia. E se, porventura, se atingirem as metas orçamentais fixadas, teremos um país exangue, exausto, em involução regressiva. Uma espécie de barbárie decadente substituirá o que um dia ter-se-á chamado cultura. Eis o que para aí vem, com este OE.
(José Gil)