A saúde em Portugal esteve sempre condicionada por dois factores crónicos – a falta de dinheiro e a má organização ou, melhor dizendo, o mau planeamento. Contudo, ao longo dos tempos, sempre houve gestos correctivos e inovadores que, pelo menos durante algum tempo, ajudaram a uma melhor assistência e a maiores benefícios para a população doente. No fundo, isso sucedeu sempre que alguém parou para pensar ou sempre que se colocou a inteligência ao serviço da saúde. Todo este intróito para lembrar que até ao século XVI, melhor dizendo até aos últimos anos do século XV, continuava a ter-se a noção de que tudo servia para hospital desde que houvesse onde deitar os doentes e eles estivessem protegidos das intempéries. Chamava-se hospital a qualquer local que recolhesse doentes e nunca se cuidava de procurar que esses hospitais tivessem as características próprias dos verdadeiros hospitais desse tempo. Como é bom de ver, estes hospitais desenvolviam-se como cogumelos e bons ou maus tinham sempre uma característica comum que era terem despesas constantes e pesarem no orçamento de quem os sustentava. Foi preciso que alguém fizesse o raciocínio simples, e repleto de senso económico, de concluir que se se juntassem os doentes em verdadeiros e poucos hospitais, se podiam prestar melhores serviços e gastar menos dinheiro. Num outro programa falei-vos disto por alto, quando vos expliquei as razões que levaram à fundação do Hospital Real de Todos os Santos. Como então expliquei, esta concentração de hospitais ridículos num verdadeiro hospital, mostrou-se a medida indicada mas levantou imediatamente um novo problema que era saber quem e como se administravam. Estamos agora a aproximar-nos do tema do programa de hoje, em que tenciono contar-vos como foram criadas as misericórdias, para que serviam e quem teve a boa ideia da sua criação. Costuma afirmar-se e ter-se como certo que a criação das Misericórdias se deve à rainha D. Leonor, viúva de D. João II e irmã de D. Manuel I.E, se é verdade que foi ela a criá-las com o seu poder e despacho régio, não é menos certo que a ideia, e esta é que conta, se deve não a ela, mas a alguém mais versado na arte de pensar e mais virtuoso de sentimentos, por profissão. Não por nacionalismo irracional, mas porque lamento que assim tenha sucedido e não tenha aparecido um português com essa ideia, tenho que confessar que se deve a um espanhol a ideia e o empenho da criação das misericórdias. Chamava-se esse espanhol de nação, como então se dizia, Frei Miguel de Contreiras, nascido em Valência ou em Segóvia, não se sabe ao certo, religioso trinitário, quer dizer da Ordem da Santíssima Trindade, que em 1481 veio viver para Portugal, onde começou a pregar o socorro à pobreza e o alívio e tratamento dos doentes, como as manifestações mais «levantadas» da piedade. A sua palavra e a sua acção depressa se fizeram notar. Corria a cidade de Lisboa sempre acompanhado de um anão que conduzia um burro, com grandes alforges para recolher as dádivas em géneros que a população lhe oferecia por ele ser para eles o pai dos pobres, como lhe chamavam. Depois quando chegava ao largo da Sé, procedia à distribuição dos géneros recebidos por todos os necessitados que ali recorriam. E guardava alguns géneros para, pessoalmente, os ir levar aos presos das cadeias e a doentes acamados nas suas casas. Passado pouco tempo passou a ser o confessor da rainha e, como tal, a ter um acesso fácil à pessoa real e a possibilidade, se bem trabalhada, de influenciar o pensamento da rainha e levá-la a pensar nos problemas que ao frei Miguel Contreiras pareciam inadiáveis. E de tal maneira sensibilizou a rainha para a necessidade de se fazer algo que, em 1498, foi criada com solenidade, no claustro da Sé de Lisboa, mais propriamente na Capela de Nossa Senhora da Piedade, também conhecida por Capela da Terra Solta, porque o pavimento era em terra, a Confraria de Nossa Senhora da Misericórdia. Mas, além do papel da rainha e de Frei Miguel Contreiras há que destacar a acção do Cardeal de Alpedrinha, D. Jorge da Costa que vivia em Roma e era pessoa de grande entendimento e que esteve várias vezes para ser Papa. Quando da eleição de Júlio II este ter-lhe-á dito que só era Papa em nome porque na realidade era ele o verdadeiro Papa. Já tinha sido conselheiro da rainha quando esta quis fazer o Hospital Termal das Caldas da Rainha e mais uma vez foi a pessoa a quem a rainha pediu ajuda e opinião antes de criar a Misericórdia. Terá sido por sua opinião que se seguiria o modelo de Florença no futuro Compromisso da Misericórdia de Lisboa. O Cardeal de Alpedrinha devia ser muito bom homem e na graça de Deus, pois sendo muito baixa a longevidade daquele tempo, ele conseguiu viver até aos 102 anos, devendo ser uma verdadeira excepção só explicável por graça divina. E, desde então, foram os enfermos, até aí, sem amparo recolhidos numas casas provisórias, no Largo de Santo António, concedidas pelo Senado. Esta Confraria teria a sua sede nesta Capela até ao ano de 1534, ano em que foi transferida para um sumptuoso templo mandado construir por D. Manuel I, no local onde hoje se encontra a Igreja da Conceição Velha, na Rua da Alfândega e que já foi inaugurada por D. João III. Era uma igreja em estilo manuelino, sendo seus arquitectos Diogo Boytac e João de Castilho e que rivalizava com o Mosteiro dos Jerónimos e foi completamente destruída no terramoto de 1755. Da sua beleza ainda hoje se pode ajuizar pois a única parte que não foi destruída pelo terramoto, foi uma porta lateral virada a sul e que hoje representa a porta frontal da actual Igreja da Conceição Velha. Ocupava uma grande área e além da grandiosa Igreja da Misericórdia de Lisboa que tinha de largura o actual comprimento da Igreja da Conceição Velha, tinha edifícios destinados a dois recolhimentos, secretaria, cartório e serviços administrativos. Nessa cerimónia foi estabelecido um Compromisso ou um regulamento como hoje dizemos, baseado no existente em Florença numa organização análoga e já existente desde 1350. O compromisso estabelecia que a Misericórdia não se destinava só a ter e gerir hospitais mas a cumprir as 14 obras de misericórdia, as sete do corpo e as sete do espírito. Que tudo se fizesse para tornar iguais os desgraçados aos afortunados. Auxiliavam-se as donzelas pobres a casar, as viúvas pobres com alimentos e dinheiro, os peregrinos com pousada e ajuda, os presos com advogados que os defendessem, os mortos com a possibilidade de enterros dignos e sobretudo os doentes com agasalho e curativo. Quando tudo isto se passou estava D. Manuel em Espanha, mas quando regressou, apoiou a acção da irmã e logo que pôde promoveu todos os meios possíveis para o desenvolvimento da Misericórdia, pelo que em 1516 criou uma dotação especial a que chamou a obra pia e mandou erigir um templo digno para aquela Confraria que acabou por ficar digna como ele pretendia, mas que infelizmente não chegou a ver. Após a destruição pelo terramoto de 1755 da Misericórdia da Rua da Alfândega, foram os seus serviços espalhados por vários edifícios alugados ou cedidos. E só no tempo de D. José e do Marquês de Pombal se resolveu esta situação insustentável, quando por Carta Régia de 6 de Fevereiro de 1768 foi entregue à Irmandade os edifícios que constituíam a Casa Professa dos Jesuítas e a magnífica Igreja de São Roque com os seus tesouros de arte sacra e que se encontravam devolutos havia meses por expulsão da Companhia de Jesus. E, hoje continua a ser a sede da Misericórdia de Lisboa. Com o passar dos anos as Misericórdias foram espalhando-se por todo o país. Logo em 1498, Lagos, Tavira, Montemor-o-Velho, Angra do Heroísmo e Vila Praia da Vitória. No ano seguinte, Porto, Évora e mais umas tantas. Em 1500, Coimbra; Beja, Ponta Delgada e outras. Em 1501 apenas a de Setúbal e em 1502 a de Santarém e Olivença e quase todos os anos se foram fundando outras de que destaco a da minha terra natal, Chaves que data de 1516. No século XV fundaram-se 23 e 139 no século XVI. Todos os séculos se foram fundando Misericórdias e já no século XX ainda se fundaram 107. Com os descobrimentos portugueses as Misericórdias foram sendo criadas pelo mundo fora, existindo já em 1504 a de S. Tomé, a de Ponta Delgada em 1500 e a de Goa em 1511. Passou a ser normal que por cada Misericórdia que se fundasse se constituísse um hospital sob administração daquela Confraria. E a administração mostrou ser eficaz de tal modo que esta situação se manteve por vários séculos e ainda hoje vamos encontrar a vocação hospitalar das nossas Misericórdias, que tendo perdido alguns dos seus hospitais na sequência do 25 de Abril de 1974, têm vindo a recuperar essa função, dando provas de eficácia e qualidade de serviços. Nunca a Igreja e o seu poder estabelecido estiveram ausentes do processo de transformação dos cuidados hospitalares. Quando D. João II pensou em reunir as dezenas de pequenos hospitais de Lisboa num só, o de Todos os Santos pediu a devida autorização papal que lhe foi concedida por Bula papal de Sixto IV, em 13 de Agosto de 1479, mas apenas para ter efeito em Lisboa. Apenas em 21 de Fevereiro de 1485 o Papa Inocêncio VIII, através de Bula estendeu essa autorização a todo o país. O Hospital de Todos os Santos foi um dos que esteve sob administração da Misericórdia por alvará de D. Sebastião em que diz que faz essa entrega porque « por se ter visto, por experiência de muitos anos a fidelidade e zelo, fervor e caridade, com que os irmãos servem os cargos da dita irmandade e aceitam e sofrem os trabalhos dela, pelo que se deve com razão esperar redução de gastos e de muitos ordenados... por isso em todas as cidades e vilas do Reino se entregava às Misericórdias a administração e governança dos seus hospitais».
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