terça-feira, maio 11, 2010

criancinhas ...


Parece não haver dúvidas de que a maioria dos pais se demitiu da sua acção formadora e educativa permitindo que os seus filhos se venham a transformar em seres despidos de educação e valores. Esses pais perderam a força, o respeito dos filhos e, desse modo, os filhos. Penso que este texto publicado na Visão, intitulado «A Devida Comédia», da autoria de Miguel Carvalho, ilustra bem a deseducação hoje bem visível e audível no nosso dia a dia e nos telejornais diários. Aqui transcrevo o texto, para reflexão.



A DEVIDA COMÉDIA
Miguel Carvalho

A criancinha quer Playstation. A gente dá.

A criancinha quer estrangular o gato. A gente deixa.
A criancinha berra porque não quer comer a sopa. A gente elimina-a da ementa e acaba tudo em festim de chocolate.
A criancinha quer bife e batatas fritas. Hambúrgueres muitos. Pizzas, umas tantas. Coca-Colas, às litradas. A gente olha para o lado e ela incha.
A criancinha quer camisola adidas e ténis nike. A gente dá porque a criancinha tem tanto direito como os colegas da escola e é perigoso ser diferente.
A criancinha quer ficar a ver televisão até tarde. A gente senta-a ao nosso lado no sofá e passa-lhe o comando.
A criancinha desata num berreiro no restaurante. A gente faz de conta e o berreiro continua.
Entretanto, a criancinha cresce. Faz-se projecto de homem ou mulher. Desperta.
É então que a criancinha, já mais crescida, começa a pedir mesada, semanada, diária. E gasta
metade do orçamento familiar em saídas, roupa da moda, jantares e bares.
A criancinha já estuda. Às vezes passa de ano, outras nem por isso. Mas não se pode pressioná-la porque ela já tem uma vida stressante, de convívio em convívio e de noitada em noitada.
A criancinha cresce a ver Morangos com Açúcar, cheia de pinta e tal, e torna-se mais exigente com os papás. Agora, já não lhe basta que eles estejam por perto. Convém que se comecem a chegar à frente na mota, no popó e numas férias à maneira.
A criancinha, entregue aos seus desejos e sem referências, inicia o processo de independência
meramente informal. A rebeldia é de trazer por casa. Responde torto aos papás, põe a avó em
sentido, suja e não lava, come e não limpa, desarruma e não arruma, as tarefas domésticas são «uma seca».
Um dia, na escola, o professor dá-lhe um berro, tenta em cinco minutos pôr nos eixos a criancinha que os papás abandonaram à sua sorte, mimo e umbiguismo. A criancinha, já crescidinha, fica traumatizada. Sente-se vítima de violência verbal e etc e tal.
Em casa, faz queixinhas, lamenta-se, chora. Os papás, arrepiados com a violência sobre as
criancinhas de que a televisão fala e na dúvida entre a conta de um eventual psiquiatra e o derreter do ordenado em folias de hipermercado, correm para a escola e espetam duas bofetadas bem dadas no professor «que não tem nada que se armar em paizinho, pois quem sabe do meu filho sou eu».
A criancinha cresce. Cresce e cresce. Aos 30 anos, ainda será criancinha, continuará a viver na casa dos papás, a levar a gorda fatia do salário deles. Provavelmente, não terá um emprego. «Mas ao menos não anda para aí a fazer porcarias».
Não é este um fiel retrato da realidade dos bairros sociais, das escolas em zonas problemáticas, das famílias no fio da navalha?
Pois não, bem sei. Estou apenas a antecipar-me. Um dia destes, vão ser os paizinhos a ir parar ao hospital com um pontapé e um murro das criancinhas no olho esquerdo. E então teremos muitos congressos e debates para nos entretermos.

2 comentários:

msg disse...

Muito bom dia,CARO DOUTOR

Pois é,as"criancinhas...". É a vida.
E,com a sua licença,deixo-lhe

O SEU BAÚ

Teria,quando muito,vinte anos. Pode dizer-se que estava no seu apogeu. Assim o entenderia ela. A dona do mundo,a sua rainha.Para melhor ver o mundo,o seu reino,ou antes,para que melhor o mundo a visse,a sua rainha,estava de pé,com óculos escuros,feita estátua,do mármore mais fino,de mármore de Carrara.Dos ombros largos,pendia avantajada mala,o seu baú de preciosidades. Dele tirou um maço de cigarros,ainda intacto. Abriu-o e lançou parte da tampa para o chão. Um servo que a apanhasse.Pegou num cigarro e acendeu-o,recorrendo ao seu baú. Os gestos eram lentos,a modos que estudados. Uma rainha tem de saber comportar-se. Toda ela se expunha.Chegara a altura da sessão musical. Os auscultadores já estavam montados. Foi só premir os botões certos. E ali ficou,meneando a cabeça,mexendo os lábios. Parecia ter esquecido o mundo. Uma ingrata.Tantas canseiras dos paizinhos e talvez,também,dos avôzinhos. Tantos carinhos deles,tantos sonhos deles. Para isto. É a vida.

Muito boa saúde,CARO DOUTOR

cvr disse...

Muito bom, amigo.
CVR