Na página 22 da Visão de 5 de Janeiro de 2012, Viriato Soromenho-Marques publicou o artigo que intitulou «A lição de Hamilton para europeus distraídos», um lúcido ensaio sobre a inteligência e visão dos que deixam marcas e a estupidez e mediocridade daqueles que hoje nos governam, incapazes de ver as causas e os efeitos, os problemas e as soluções, ofuscados que estão pelo brilho dos cifrôes e daqueles que na penumbra dos gabinetes os fazem mover em estratégias concertadas com o fim certeiro de enriquecer poucos e empobrecer muitos. Uma luta de poder com mão cifrónica. Penso que faz bem a todos ler este magnífico e esclarecido ensaio sobre a visão justa em causas justas. Dá gosto ver que no ano de 2012 se invoque o espírito e a acção esclarecida de Alexander Hamilton, 1º Secretário do Tesouro dos Estados Unidos da América (1812) e que se recomende hoje ter atenção a acção de um economista duzentos anos antes. O mérito a quem o tem ou teve.
«A lição de Hamilton para europeus distraídos»
«No passado 9 de novembro, quando a dívida pública italiana ultrapassou o Rubicão (7% nos títulos a dez anos), a chanceler Merkel recebeu o importante relatório anual do seu Conselho dos Cinco Sábios. Este órgão, em funções desde 1963, reúne reputados economistas alemães. Uma parte da paz laboral germânica deve-se ao crédíto que este órgão goza junto do patronato e dos sindícatos. No final da reunião, Merkel dísfarçava o mal-estar que lhe causara o facto de, também os seus sábios, terem adíantado que os eurobonds seriam indíspensáveis para a resolução da crise das dívidas soberanas na Europa. O que passou despercebido, mesmo da imprensa económica, foi uma breve nota de rodapé do extenso relatório, onde se dízia terem os peritos alemães retirado inspiração do plano apresentado por A. Hamilton, ao Congresso dos EUA, em 1790.
Alexander Hamilton (1755-1804), o mais visionário dos fundadores dos EUA em matéria económica, foi o primeiro secretário do Tesouro do Governo do Presidente Washington, e um dos obreiros da Constituição elaborada em Filadélfia, em 1787, tendo organizado a clássica obra O Federalista (a Gulbenkian reeditou este clássico em 2011, tendo por base a tradução que coordenei em 2003). Em 1790, os EUA estavam à beira da rutura. A principal razão residia nos conflitos entre Estados relacionados com grandes «dívidas soberanas» acumuladas durante a Guerra de Independência.
Quem conheça a época ficará espantado com a semelhança das situações e argumentos, na Zona Euro. O Massachusetts queixava-se do Connecticut ou de Maryland, por estes terem sido poupados ao esforço de guerra (e de dívida). A Virgínia, embora tivesse sido um terrível campo de batalha,já tinha saldado metade da sua dívida, enquanto Nova Iorque se mantinha numa situação de deliberado incumprimento. Também em 1790 era difícil saber até onde ia a dívida pública. Existiam credores na Europa (bancos holandeses e até britânicos, das dívidas anteriores à guerra), mas sobretudo cidadãos americanos que, apoiando o esforço de guerra, se viam à beira da falência, com títulos de dívida (em valor monetário ou fundiário) sucessivamente desvalorizados.
Hamilton nunca poderia ter lido Marcel Mauss, nem Nietzsche, mas sabia, como o primeiro, que também em política a dádiva pode gerar dívidas simbólicas de lealdade, sem as quais nenhuma sociedade subsiste, e como o segundo, suspeitava que a retórica de transformar as dívidas (schulden) em culpa moral (schuld) - desporto favorito da senhora Merkel- é um mecanismo de opressão e não de libertação. Por isso, lançou, entre 1790 e 1791, o plano económico que iria salvar a América como união federal. No meio de enorme controvérsia, ele continha três medidas fundamentais:
a) mutualização de toda a dívida estadual, transformada em dívida federal (trocando os títulos antigos por novos), restaurando a confiança dos mercados com o pagamento de juros e a promessa futura de vencimento; b) criação do Banco Nacional, com a função de ser o credor de última instância para o frágil e desorganizado sistema bancário da época, e fonte de recurso para o financiamento público; c) criação de um plano de fomento industrial para o emprego e revitalização económica.
Calcula-se que a divida pública dos EUA fosse de 197 milhões de dólares (ajustados a valores de 1980). Em 1811, havia sido reduzida para 49 milhões. A confiança dos mercados permitiu que Jefferson juntasse, em 1803, mais de 2 milhões de km2 aos EUA, comprando a Louisiana francesa por 15 milhões de dólares, obtidos por empréstimo a juros favoráveis. Mas a lição de Hamilton - que a liderança europeia desconhece por egoísmo incompetente - é a de que uma dívida pública tem ser enfrentada com uma resposta sistémica, que vá à raiz dos problemas, e ofereça um horizonte estratégico de futuro. Inversamente, a austeridade perpétua, prometida no acordo de 9 de dezembro, é uma receita segura para a catástrofe europeia».
1 comentário:
Concordo com os argumentos apresentados. Só me parece pouco sensato insinuar que a retoma do crescimento económico é possível (ou desejável), ainda por cima vindo o escrito de quem defende a sustentabilidade e tem plena consciência dos limites do crescimento. Deixo aqui apenas um link sobre este assunto:
http://www.neweconomics.org/publications/growth-isnt-possible
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