No jornal Expresso do passado dia 6 e na sua página, Miguel Sousa Tavares escreveu o texto que intitulou «À espera do milagre», onde no seu estilo habitual, fez uma análise certeira da governação que tem conduzido estes tristes e preocupantes dias que vivemos e aconselhava claramente a estes iluminados e esclarecidos célebres que tinha chegado a hora de terem, ou pelo menos mostrarem, alguma humildade, por pouca que seja, já que tal qualidade será atributo difícil de entender e, muito menos, assumir por parte de tão esclarecida gente. O texto tem qualidade, as verdades são como punhos, e ninguém pode ficar isento de pensar quanto mais tempo irá aguentar este retrocesso de qualidade de vida, de liberdade, de direitos e desigualdades. E milagres não há, pelo que não vale a pena esperar que cheguem. Como em tudo, o caminho faz-se caminhando...
«À espera do milagre»
«Parece ser chegado o momento de o Governo começar a dar alguns sinais de humildade e reconhecer que a sua receita para sair da crise não está a correr conforme previsto. Dialogar sem preconceitos com a oposição (e dialogar não é apenas ouvir e fazer orelhas moucas), explicar o que ninguém entende e corrigir o que está mal, tudo isso é bem mais inlportante do que a teimosia de tentar demonstrar a justeza de uma agenda ideológica com que alguns teóricos da economia e da política sonharam anos a fio.
O Governo louva-se de três boas notícias: a descida dos juros nos mercados da dívida, a descida acentuada do défice da balança de transacções e os sucessivos aplausos da troika à execução do programa. Tudo argumentos reversíveis. A descida dos juros é impossível não a ligar directamente à maciça disponibilidade de dinheiro fornecido aos bancos a 1% de juros, promovida pelo BCE. O saldo positivo da balança de transacções (que em si é uma boa notícia) dá-se, todavia, pelas piores razões: uma baixa indiscriminada das importações, quer as desnecessárias ou sumptuárias quer as necessárias para estimular o consumo interno, essencial à recuperação ou para manter a importação de bens e equipamento para as empresas funcionarem. E as boas avaliações da troika sobre o cumprimento do programa de ajustamento não escondem duas ordens de preocupações: o atraso de algumas medidas estruturais (as mais difíceis), como o peso excessivo dos lucros do sector eléctrico sobre a economia ou a renegociação das PPP, e os números assustadores do desemprego e da recessão, muito para lá daquilo que o Governo e a troika tinham estimado.
Mas, no outro prato da balança, há sinais cada vez mais evidentes de que a cura ameaça matar o doente. Isso toma-se evidente quando se constata (e é confirmado pelo novo orçamento rectificativo), que em 2012, tal como em 2011, o grosso do combate ao défice é feito por via do aumento de receitas e não pela diminuição da despesa. Encerrado o combate eleitoral, passado o tempo da retórica fácil e das soluções milagrosas, a nova maioria, uma vez chegada ao poder e na hora de fazer aquilo que tanto apregoou, dá-se conta de uma incómoda realidade: a estrutura da despesa pública portuguesa é dificilmente movível. A verdade é que, tirando excessos evidentes (como o despesismo das autarquias, que o Governo não se atreverá a enfrentar, como já se percebeu), não há muito mais por onde cortar - a menos que o objectivo final seja a liquidação, pura e simples, do Estado, liquidando as suas principais funções. Chega a ser arrepiante recuperar o discurso do PSD e CDS há apenas um ano, na oposição, e confrontá-lo com o que tem sido agora o seu desempenho governativo. Medidas extraordinárias para maquilhar o défice, por exemplo, nunca mais; orçamentos rectificativos eram sinal de absoluta incompetência no controlo das contas públicas; confusão entre dinheiros públicos e negócios privados jamais. Agora, compare-se isto com a nacionalização do fundo de pensões da banca que serviu para 'cumprir' o défice de 2011, acrescentando €6000 milhões ao activo; com o novo orçamento rectificativo, que, entre outras coisas, serve para acrescentar os €500 milhões que custa anualmente (e durante uma boa dúzia de anos), pagar as pensões dos novos reformados da banca e de que, pelos vistos, se tinham esquecido; e compare-se com o negócio de reprivatização do BPN ou com a recente notícia do financiamento da OPA do grupo Mello sobre a Brisa, assumido pela CGD (que também assume o empréstimo de €600 milhões ao BPN 'privátizado' e depois vai pedir ao 'accionista' - isto é, aos contribuintes que lhe 'empreste' por sua vez €1500 milhões para aumentar o capital, desfalcado por tanta genetosidade com estas pequenas e médias empresas).
Manifestamente, as convicções ideológicas do Governo não coincidem com a realidade encontrada. E o Governo reage como os corónéis das ditaduras sul-americanas: "mude-se a realidade!" Se o défice não se consegue baixar ao ritmo que se acreditava possível por via dos cortes na despesa pública, vai-se sangrando a economia. Com certeza, repito, que há muitos excessos por onde cortar, muito despesismo público injustificável, muitos e muitos abusos a que tem de se pôr termo. Infelizmente, porém, tudo somado não chega para compensar sequer aquilo que verdadeiramente é ruinoso para o Estado: a expropriação do 13º e 14º mês dos funcionários públicos, por exemplo, traduz-se numa receita equivalente ao custo de 'privatizar' o BPN a favor de Américo Amorim e Isabel dos Santos - e ninguém consegue explicar porque não encerraram o banco, simplesmente (sim, eu li a entrevista da secretária de Estado do Tesouro, aqui no Expresso: fiquei exactamente na mesma). Depois, há cortes na despesa pública que são intoleráveis do ponto de vista social, como pagar subsídio de desemprego apenas a metade dos desempregados e tratá-los como se fossem todos culpados ou suspeitos de viverem, por vontade própria, na tal "zona de conforto" de que falava aquele infeliz membro do Governo.
A tentativa de fazer coincidir a realidade com a utopia, através de uma cega aritmética, está a ser feita à custa da destruição do tecido económico decisivo do país, que são as pequenas e médias empresas, os trabalhadores por conta própria, a economia de proximidade. As grandes empresas e os grandes grupos económicos, quando já não tiveram mais contratos públicos para disputar nem mais favores a esperar, vão-se embora e, de qualquer maneira, pagam impostos onde mais lhes convém. Mas o resto, não. A diminuição da receita fiscal, que já se verifica, não é, ao contrário do que pretende acreditar o Governo, apenas um fenómeno conjuntural: a receita vai continuar a cair, na justa medida em que a economia vai continuar a retrair-se e a fuga fiscal se irá acentuar, quando, depois de tão esticada a corda, só restar a escolha entre pagar ou sobreviver.
Porém, sentindo o bafo gelado do fiasco, o Governo vai fugir em frente, num caminho já sem qualquer racionalidade nem sentido útil. Resulta do orçamento rectificativo, que restam ao Governo €18 milhões (!) de folga orçamental para este ano. Mesmo que o petróleo não suba mais, que a recessão na Europa e em Espanha não se acentue, que as exportações não continuem em queda, não há milagre que nos salve. As contas foram mal feitas, os dossiês mal estudados, a estratégia mal escolhida. Mas o Governo vai prosseguir no mesmo caminho, porque, antes de mais, o que eles nunca reconhecerão é que as suas ideias estão erradas: só funcionam em laboratórios onde se cozinham os MBA.
Presumivelmente, o Governo irá assim tornar definitivo o que era excepcional (como os cortes no 13.º e 14.º mês); irá aumentar a receita fiscal, subindo ainda mais os impostos; irá continuar todos os dias, ministro a ministro, nessa penosa e deprimente tarefa de anunciar novos cortes, com o entusiasmo de quem anuncia missão cumprida. Vai consumar o crime antipatriótico de privatizar a TAP (e, para mais, a preço de saldo), vai vender a água, os aeroportos, tudo o que mexer. E vai privatizar um canal da RTP, apenas porque o ministro Relvas quer e não tem de dar satisfações a ninguém, embora já toda a gente lhe tenha explicado que vai ser um desastre para todos.
VoIto ao princípio: começa a faltar um exercício de humildade, de que não se vêem sinais alguns no horizonte. No limite, até poderíamos acreditar que o Governo tivesse razão, ou parte da razão, em teoria. Mas nós não vivemos de teorias. Todos os dias há empresas que fecham, famílias que são mandadas para o desemprego, novos pobres encostados à parede. Os portugueses têm sido absolutamente estóicos a aguentar tudo. Mas só uma cegueira irresponsável permite imaginar que se pode levar as coisas até ao fundo do fundo e depois renascer, em paz e alegria».
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