Transcrevo a crónica 'Fraco consolo' da Revista do Expresso desta semana, intitulada «Desconcerto do mundo», da autoria de Pedro Mexia.
PERCEBI QUE NÃO HAVIA OUTRO TEMA E PORVENTURA OUTRO POETA NA NOSSA LÍNGUA, OUTRO QUE CONTASSE TANTO, E CONTASSE TUDO
«Lembro-me de ter estudado Camões, como
toda a gente, “o épico e o lírico”, e gostei
daquele portuguesismo interrogativo e
inquieto, mais do que do esplendor de
Portugal, que, confesso, nunca me tocou;
mas muito mais vezes citava o poeta
“neopetrarquista”, como classificavam os
manuais, à época eu entendia sobretudo
esse amor idealizante, depois vi claramente o Camões sensual e
experimentado, tumultuoso, caótico até, com musas várias, de
grandes e pequenos instintos, meninas e mulheres que aparecerem e
desaparecem e que é preciso defender como um manuscrito, daqueles
que salvamos a nado. Eu sou devedor em tudo ao soneto que começa
“um mover de olhos, brando e piedoso”, não naquilo que escrevo,
bem entendido, mas na minha vida, facto que tem sido notado, com
insistente escárnio.
Mais tarde, cheguei aos poemas ditos “do desconcerto do mundo”.
Quando os encontrei, era demasiado novo, conhecia alguns
desconcertos, mas nunca me lembraria desse termo filosofante, que
nem compreendia bem; e não saberia chamar à minha pequena vida
‘o mundo’ ou sequer parte do mundo, antes um istmo ou arquipélago,
coisa contígua ao mundo, mas dele nunca fazendo parte por inteiro,
maleita da qual nunca me livrei, o que tem sido notado, com escárnio
insistente.
Quando se me foi chegando a idade de meio caminho, esta de agora,
mas à qual aportei antecipadamente, demasiado cedo, percebi que
não havia outro tema e porventura outro poeta na nossa língua, outro
que contasse tanto, e contasse tudo. Porque todos os nomes que ia
dando à minha experiência negativa do mundo eram insuficientes.
Havia frustração, desalento, incompreensão, incompletude, desânimo,
desconformidade, mas soavam a queixumes, e queixumes meus,
respeitantes a um ‘eu’ que era o meu e que, por esse facto, dificilmente
interessavam a mais alguém, excepto a quatro ou cinco pessoas que
por sangue ou afecto se importam. “Desconcerto”, pelo contrário, não
era um termo psicologista nem sentimental. Desconcerto não era uma característica minha, ou de Camões, ou de quem fosse, mas um atributo
do mundo. Era um estado em que o próprio mundo se encontrava, e
que nós, ao considerá-lo, apenas verificávamos: um mundo confuso,
absurdo, sem sentido, desacertado, desordenado, desvairado,
dissonante, transtornado. Nem nos momentos mais felizes, fugazes ou
não, acreditei que ‘o mundo’ fosse outra coisa que não isso.
E isto tem, inevitavelmente, uma dimensão moral. Cito ‘Esparsa ao
desconcerto do mundo’: “Os bons vi sempre passar/ no mundo graves
tormentos;/ e, para mais m’espantar,/ os maus vi sempre nadar/ em
mar de contentamentos”. Talvez nem todos os maus, ou aqueles que por
facilidade assim considero, nadem num mar de contentamento; mas
todas as pessoas que considerei até hoje verdadeiramente boas passaram
graves tormentos, muitos dos quais devido à sua bondade, que eu
defino de forma falível e discutível, mas veemente. Quando há dias me
perguntaram: “De que vale a pena ser bom?”, não soube responder, ou
não quis, porque daria uma resposta ética, desligada do sofrimento. E a
ética pode destruir a esperança dos esperançosos.
Até porque, mais tarde do que outros talvez, mas não com menos
impiedade, também eu fui quebrado pelo desconcerto, por esse choque
com o mundo que faz de nós pessoas más, porque ser bom nos deixa
desarmados, nos atira aos leões. E aos poucos, e depois de súbito,
aconteceu-me o mesmo que ao sujeito poético da ‘Esparsa’: “Cuidando
alcançar assim/ o bem tão mal ordenado,/ fui mau, mas fui castigado:/
Assi que, só para mim/ anda o mundo concertado»
pedromexia@gmail.com
Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia
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