segunda-feira, dezembro 05, 2005

Um cocktail de mitos ou uma taça cheia de nada

Dizem os dicionários e a memória de quem estudou, que, mito, é a narração dos tempos fabulosos ou heróicos ou qualquer fábula aplicada a uma religião politeísta e, em sentido figurativo, coisa rara ou totalmente fabulosa. Se ao sentido figurativo, juntarmos o sentido familiar, mito pode significar aquilo que apenas existe na imaginação das pessoas crédulas, coisa inacreditável, que não tem realidade, enigma. E, mitismo, significa abuso das explicações míticas. Por sua vez, fábula, significa narração em que é quase impossível discernir o verdadeiro ou o falso, mito, lenda, narrativa imaginária, facto histórico inventado, pessoa ou coisa em que se fala, de que se faz falatório. E, fabular, significa também, inventar, imaginar, mentir.
Juntos que estão estes ingredientes culturais, podemos fazer uma papa de significantes, para receita base deste cocktail de mitos, bebida padrão, marca universal de todas as happy hours, de todos os bares, de porta aberta ou fechada, deste tresloucado mundo em que vivemos, hoje, ano 2001, a iniciarmos este século XXI, a que todos queríamos chegar, não se sabe porquê, nem se sabe para quê, mas que podemos desconfiar ser por uma ideação suicida colectiva, um mitismo interiorizado, que nos prometia, com o selo de garantia da fábula escrita por Nostradamus, um fim de mundo apocalíptico, com chuva de estrelas em queda feérica.
Agarremos agora no shaker e comecemos a fabricação, é este o verdadeiro nome, do cocktail de mitos que andamos a servir uns aos outros, que andamos a beber com uma frequência que muitos não desejariam tão grande, com um grau de satisfação e amargura, um sabor agridoce não esperado, mas constante.
O shaker está vazio e o primeiro ingrediente que para lá atiramos, é uma mão cheia de cifrões. Ingrediente base, base de tudo, respeitado deus desta nossa triste época. Convém agitar levemente o shaker, para que os cifrões se instalem bem, ocupem por completo a base e não permitam que outro ingrediente passe através deles, senão quando eles o determinarem e lhes abrirem caminho. Para os mais religiosos, e devotos ferrenhos deste novo deus, recomenda-se colocar um pouco mais que uma mão cheia deles. Começa aqui a dificuldade de fabricação deste cocktail. Porque se é verdade que, na maioria dos casos, cada um de nós sabe exactamente a dose que deve por no seu cocktail, é também verdade que quando este se destina a terceiras pessoas, clientes ou amigos e convidados, a dúvida se coloca, e nos perguntamos se a dose deve ou não ser reforçada, deve ou não ser diminuída. Deitamos depois uma medida de hipocrisia, meia medida de sacanice e uma colher média de mentira. Agita-se suavemente, como o agente 007, gostava. Deixa-se descansar um pouco.
Quando os últimos ingredientes acrescentados, deixarem de se ver e for apenas aparente o fundo de cifrões, vamos juntar meia dúzia de palavrões obscenos, tornando-se indispensável usar a palavra fuck, em quantidade, podendo substituir-se pela palavra hooker, sem a mesma garantia de sucesso. Agita-se novamente e, logo de seguida, acrescenta-se meio shaker de palavras mal ditas ou mal escritas, misturadas em molho de gramática desprezada, passando a bebida a ter corpo e a ver-se menos a base de cifrões. Descansa, pouco tempo.
De seguida, juntam-se vários golpes de karaté, de preferência mortais, devendo a introdução no shaker ser acompanhado de urros. O shaker deve então ser agitado violentamente.
É aconselhável introduzir um pouco de difamação, duas doses de heroína, uma dose de corrupção e, se possível, algumas violações ou, em substituição, um pouco de pedofilia.
Dependendo do destinatário, poderá também juntar-se uma AK47 ou um pouco de trinitroglicerina com ajuda de um lança rockets. Há quem junte alguns diamantes. Deixar assentar novamente. Não juntar gelo.
Já na parte final, acrescentar uma dose de squash ou um pouco de jogging ou fitness, em substituição, ou consoante o gosto de cada um. Agitar suavemente.
Para gostos mais refinados, convém juntar um pouco de especulação bolsista ou, se possível, uns pós de inside information.
Agita-se novamente, agora mais fortemente, para garantir total mistura dos componentes e, após isso, verifica-se com toda a atenção a espuma da superfície, para ver se há qualquer impureza. É fundamental retirar qualquer resquício de cultura, qualquer livro, momento de teatro, andamento de sinfonia, versos de poema, frases de um qualquer ensaio, qualquer pitada de honestidade, que tenham sido introduzidos por acaso e contaminação e ter particular atenção para não deixar qualquer porção, por mínima que seja, de princípios morais e regras de conduta. Feita esta limpeza, passa-se à decoração e arte final.
Decora-se com uma cereja de Madona, chocolate com chip de Schoemaker, uma sombrinha chinesa com imagens de Figo ou Zidane, uma framboesa de Cláudia Schiffer, um pouco de compota de Navratilova e polvilha-se depois com notícias da CNN e algumas top models e aplica-se uma palhinha MacDonnald’s. Está pronto a servir.
Deve beber-se com cuidado e em pequenos golos, embora haja quem goste de o beber como um shot, de um só trago.
Por mim, aconselho que se deite fora, com copo e tudo. Após o que se deve encher o peito de ar, respirar calma e sossegadamente, agarrar num bom livro, escutar uma boa música e viver assim o resto da vida, mesmo que seja sozinho.

1 comentário:

Ars Curandi disse...

Caro amigo.
Obrigado pela visita ao meu blog. Devo dizer que o criei, bem como o "Engenho e Arte", estimulado pela primeira visita que fiz ao seu.
Genial esta sua crônica. Se você me permite, gostaria de reproduzí-la no meu outro blog "Engenho e Arte". Gosto também muito dos seus poemas, os quais costumo acompanhar no grupo da SOBRAMES.
Um abraço,
Ruy