quinta-feira, janeiro 22, 2009

o vinho e o mosto - um exercício de intertextualidade 15


De repente, como se um destino médico me houvesse operado de uma cegueira antiga com grandes resultados súbitos, ergo a cabeça, da minha vida anónima, para o conhecimento claro de como existo. E vejo que tudo quanto tenho feito, tudo quanto tenho pensado, tudo quanto tenho sido, é uma espécie de engano e de loucura. Maravilho-me do que consegui não ver. Estranho quanto fui e que vejo que afinal não sou.
Olho, como numa extensão ao sol que rompe nuvens, a minha vida passada; e noto, com um pasmo metafísico, como todos os meus gestos mais certos, as minhas ideias mais claras, e os meus propósitos mais lógicos, não foram, afinal, mais que bebedeira nata, loucura natural, grande desconhecimento. Nem sequer representei. Representaram-me. Fui, não o actor, mas os gestos dele.
Fernando Pessoa


De que me serve esta súbita cura da cegueira que foi minha vida? Acaso consigo fazer rewind e logo on, para uma nova vida emendada? Claro que não. E o que emendaria eu, se não sei sequer o que me levou a vivê-la assim e não da maneira que a minha actual não-cegueira aprovaria? Aprovaria, mesmo? É possível emendar-se uma vida quando se é geneticamente assim e não assado? Não me pergunto mais porque sinto eu este vazio que me desconforta e parece não ser meu, não ser em mim. Este não posso mais ignorá-lo, iludi-lo, fazer os gestos do actor que representa através de mim, usando meus gestos, usando-me, como todos fazem. E fazem-no de forma tão perfeita que quase me convenço que sou eu quem os está a usar. Puro engano. Vida de enganos. Poderia ser outra? Teria estado alguma vez nas minhas mão, a possibilidade de fazer da minha vida aquilo que sempre sonhei que ela fosse?
CVR

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