Penso que a maioria dos portugueses desconhece a actividade cultural existente fora das grandes cidades. É natural que assim suceda num mundo que se pauta pelo individualismo, pelo stress, pela solidão individual e grupal. O conceito muito explorado ultimamente do «viaje para fora cá dentro» foi feliz na sua enunciação e no iniciar de um movimento de conhecimento do país que é nosso, onde nascemos, mas que desconhecemos e maltratamos.
No que me diz respeito posso considerar-me um privilegiado, já que o ter nascido no norte mais norte, roçando a raia com Espanha, estudado no centro, bem no centro territorial e académico e ter exercido a minha vida profissional no sul ou no princípio dele, capital do país, me permitiu toda a vida um viajar de norte a sul e sul a norte, que me foi pondo sempre em contacto com o país real e profundo, como é politicamente correcto dizer-se.
Mesmo sendo e considerando-me um privilegiado nesse sentido, tenho que reconhecer que existe uma malha de desigualdades culturais nos 89.000 Km2 em que o nosso país se contém (92 389 Km2 se incluirmos Madeira e Açores). Mas se é verdade que existe essa desigualdade não é menos verdade que cada dia me surpreendo mais com as manifestações culturais que vão brotando por esse país fora.
Perguntarão os leitores que bicho me terá mordido para que eu hoje me tenha posto a debitar sobre esta matéria. E perguntam bem, já que raramente trago este assunto à baila nas inúmeras crónicas que aqui vou colocando; e para que esta escolha fique esclarecida, digo já que há razões para que eu o esteja a fazer. Reparem no plural usado e logo entenderão que eu devo ter algo para contar e opinião para dar sobre aquilo que me espicaçou.
Para encurtar, devo dizer que por razões várias tive de me deslocar num curto período de tempo a cidades do interior que conheço razoavelmente, mas nas quais sempre vou encontrando qualquer coisa de novo para ver e para me admirar, admirando-as.
Refiro-me especificamente a Évora, Tomar e Torres Novas, onde tive oportunidade de assistir a espectáculos magníficos de que já dei registo neste meu blog.
No entanto, o tema desta crónica tem a ver com a inauguração em 20 de Abril de 2007, da Casa-Estúdio Carlos Relvas na Vila da Golegã, após as demoradas obras de conservação e beneficiação que ali ocorreram.
Carlos Relvas nasceu na Golegã, no dia 13 de Dezembro de 1838, filho do abastado lavrador, presidente da Câmara e procurador da Junta Geral do Distrito José Farinha Relvas de Campos, e foi registado com o nome de Carlos Augusto de Mascarenhas Relvas e Campos.
Casou com D. Margarida Amália Mendes de Vasconcelos, filha dos condes de Podentes, com a qual teve 4 filhos. Por morte desta voltou a casar em segundas núpcias com Mariana Pinto Correia Relvas, contra a vontade de seus filhos, especialmente de seu filho José que viria a abandonar os ideais monárquicos de seu pai e a abraçar os ideais republicanos, sendo ele quem proclamou publicamente a República em 5 de Outubro de 1910, nos Paços do Concelho em Lisboa, exercendo depois funções governativas.
Com apenas 16 anos foi nomeado fidalgo cavaleiro da Casa Real. O rei ofereceu-lhe o título de barão e, mais tarde, o de visconde, mas Carlos Relvas recusou sempre essas mercês. Comendador da Ordem de Nossa Senhora da Conceição do Vila Viçosa.
Carlos Relvas foi repórter fotográfico de 1ª categoria, inventor de sucesso, músico, lavrador, cavaleiro tauromáquico e mestre de equitação, jockey de cavalos de corrida, hábil atirador de pistola e de carabina, dextro jogador de pau, de florete e de sabre. Possuidor de cavalos magníficos, sabia ensiná-los a primor. Toureou a cavalo e a pé; sempre em festas de caridade, para as quais não recusava nunca o seu concurso. A última tourada em que tomou parte foi no Verão de 1893, a favor das vítimas do ciclone dos Açores. Mandou construir na Golegã uma praça de touros, que se inaugurou com uma corrida em benefício do hospital daquela vila.
Em 1880 assistiu a um naufrágio na barra do Douro, o que o levou a estudar a maneira mais rápida e segura de acudir aos náufragos. Durante três anos não descansou, e nos fins de Outubro de 1883 dirigiu ao ministro da Marinha um requerimento, apresentando o barco salva-vidas da sua invenção. No dia 7 de Novembro desse ano realizou-se a experiência na Foz do Douro, com tripulação comandada por Carlos Relvas. Duraram uma hora essas experiências, que mostraram as vantagens incontestáveis do salva-vidas Relvas sobre os salva-vidas existentes. Pelas suas características passou a ser conhecido pelo nome de «sempre em pé» e foi pintado por Malhoa.
A paixão pela fotografia foi adquirida já adulto (pode dizer-se que se iniciou nessa arte aos 24 anos) durante as suas frequentes viagens à Europa. Carlos Relvas era um viajante, já que nessa época, correu mundo - China, Japão, Índia, Estados Unidos e toda a Europa.
Carlos Relvas criou o primeiro estúdio fotográfico de raiz em Portugal e é considerado o primeiro fotógrafo amador do país. Muitas das suas fotografias e dos seus instantâneos figuraram em várias exposições nacionais e estrangeiras.
Carlos Relvas era membro da Sociedade Francesa de Fotografia e obteve medalhas nas exposições dessa sociedade, de 1870, 1874 e 1876. Alcançou outros prémios, de que destaco –
1873 - Medalha do Progresso, em Viena de Áustria,
Medalha de prata, em Madrid,
1875 – Medalha de prata da Sociedade Fotográfica, Viena de Áustria,
1876 – Medalha, em Filadélfia,
Primeiro prémio, na Exposição de Amesterdão,
Cruz de Bronze dourado, na exposição hortícola do Palácio de Cristal do Porto, 1877 - Medalha de ouro, na Exposição do Porto,
Medalha de ouro na Exposição da União Central de Artes Decorativas no Palácio da Industria em Paris.
Inicialmente, Carlos Relvas usava um processo que suplantava todos os métodos existentes (que usavam clara de ovo); o chamado processo do "colódio úmido", veio resolver a dificuldade até aí existente (quando se usava o vidro como base do negativo), que era encontrar-se algo que contivesse, numa massa uniforme, os sais de prata sensíveis à luz, para que não se dissolvessem durante a revelação. O único inconveniente deste método era a necessidade de sensibilizar, expor e revelar a chapa num curto espaço de tempo.
Carlos Relvas tinha um espírito curioso e inventivo, visitava estúdios fotográficos da Europa e possuía uma biblioteca de 4.000 volumes. Pelo que não é estranho que fosse acompanhando toda a evolução da técnica fotográfica. Por isso, em 1875 introduziu em Portugal a fototipia, processo fotográfico de Jacobi de Neuerdorf, que consistia na impressão com tinta forte em meio de gelatina bicromada e exposta ao sol, técnica que marcou a substituição do colódio pela gelatina (embora se fale de colódio seco).
Era respeitado e estimado pelo seu carácter franco e bondoso; muito caritativo e esmoler, tornou-se na Golegã o verdadeiro pai dos pobres, segundo dizem jornais da época.
Morreu em 23 de Janeiro 1894, num acidente de cavalo.
O atelier fotográfico Carlos Relvas na Golegã, foi construído entre 1872 e 1875, com os recursos financeiros da sua fortuna pessoal, segundo projecto de Henrique Carlos Afonso e idealizado pelo próprio Carlos Relvas.
Uma construção original em termos de arquitectura europeia, em que foram utilizados mais de 30 mil quilos de ferro. A sua arquitectura lembra uma igreja precisamente para parecer um templo, um templo da fotografia. A fachada principal aparece-nos ladeada por dois baptistérios (que correspondem interiormente aos laboratório de claro e escuro) e apresenta um baixo relevo representando um cavalo marinho e por cima um janelão enquadrado pelos bustos de Niépce e Daguerre e um pouco mais acima uma rosácea ladeada por anjos que seguram câmaras fotográficas. Construído em estilo neo-gótico, mas com muito da arquitectura industrial de então, com motivos de inspiração muçulmana nos estuques, conta com um amplo estúdio completamente envidraçado no piso superior, com uma luz natural soberba, coada através de panos brancos controlados manualmente, com uso de roldanas. O acesso dos clientes fazia-se quer pelas escadarias laterais, quer pela belíssima escada de caracol em madeira, vinda de Itália. O chão da casa foi revestido a mosaicos importados de França.
Em 1870, mandou construir um belo jardim romântico em volta da casa estúdio, para onde Carlos Relvas chegou a trazer árvores das viagens que fez pelo mundo.
Em 1887, Carlos Relvas, foi obrigado a habitar o estúdio, por incompatibilidades com o filho José, em consequência de partilhas e antagonismo político, decorrendo daí a destruição da singular tipologia do atelier. Só a Galeria norte manteve intacta a sua ossatura original de ferro e vidro de forma a permitir a continuidade da actividade fotográfica de Carlos Relvas.
Hoje este magnífico edifício é considerado monumento nacional, como se lê no Diário da República, com a data de 6 de Março de 1996, no Anexo I, com o título «Monumentos nacionais» - Casa-Museu de Carlos Relvas, também denominada «Casa-Estúdio de Carlos Relvas», «Atelier de Carlos Relvas» ou «Museu de Fotografia de Carlos Relvas», incluindo os seus jardins e recheio, no Largo de D. Manuel I e na Rua de José Farinha Relvas, Golegã, freguesia da Golegã.
A Casa-Estúdio Carlos Relvas que esteve à beira da degradação total e da ruína, com todo o seu espólio de cerca de 10.000 negativos e positivos fotográficos, adereços, mobílias e aparelhagem, encontra-se hoje completamente recuperada (salvo as peças já irrecuperáveis), graças à intervenção e combatividade da Câmara Municipal da Golegã, com o apoio do IPPAR e a ajuda recente do Instituto Português de Museus. Estas entidades estão de parabéns. No passado dia 22 de Fevereiro de 2008, foi assinado um protocolo entre a Câmara da Golegã e o Instituto Politécnico de Tomar, com vista à criação do Centro de Estudos de Fotografia que ficará instalado num anexo construído junto à Casa Estúdio para albergar o espólio fotográfico de Relvas.
Mal fora que se tivesse deixado continuar a caminho da ruína esta obra arquitectónica única no mundo e se deixasse no esquecimento a figura de Carlos Relvas, personalidade multifacetada de artista, inventor, desportista, lavrador, que era um verdadeiro gentleman rider e gentleman farmer (como diz José Veiga Maltez, presidente da Câmara da Golegã).
Aconselho a todos a visita, tendo a certeza que vão gostar e que serão surpreendidos agradavelmente por verdadeiras preciosidades que aqui, e de propósito, não referi.
Este post substitui o colocado em Março de 2008, com o mesmo nome