segunda-feira, outubro 25, 2010

ética e moral, na perspectiva de um médico e aprendiz de filósofo


Código de Hamurabi (1690 AC)

Num mundo em que os princípios morais têm sido postos frequentemente em dúvida, sendo diferentes de sociedade para sociedade, de religião para religião, mesmo de indivíduo para indivíduo, a Moral, como um todo, acabou por deixar de governar ou orientar o cidadão.
Isso levou a que as sociedades procurassem, através de leis civis, colmatar essas alterações, porque continua a ser indispensável haver directrizes.
Mas há leis morais que não podem ser substituídas por leis civis. Então, grupos de várias naturezas (social, profissional, etária, ideológica), têm procurado encontrar uma via intermédia que dê solução ao vazio provocado pela perda de, e da, força da Moral. É assim que se refugiam na Ética.
Hoje em dia, é raro ouvir falar-se em Moral, a menos que seja para afirmar que cada vez há menos e, em contrapartida, raro é o dia em que não ouvimos nos media, umas dúzias de vezes, a Ética ser invocada.
Analisemos o que são uma e outra?
A palavra Moral vem do latim Mores e a palavra Ética vem do grego Etikon e ambas significam Costumes.
A palavra Deontologia (vem de Deontos – o Dever) constitui um ramo da Ética, podendo definir-se como a ética profissional.
Há quem afirme que a Ética é a ciência da Moral. Outros entendem que a Ética é a Moral aplicada.
A Moral vive da noção do bem e do mal que são noções de carácter moral, filosóficas.
Por isso os filósofos foram tratando destes assuntos ao longo dos tempos.
Sócrates atendia ao conteúdo do bem moral. Era uma Ética do bem.
Platão optou por uma Ética de fins. Se estes são bons, também o são a intenção, o saber e o poder.
Aristóteles colocou o bem moral, como actuação perfeita do homem, o que lhe permitirá, usando a inteligência prática ou prudência, situar a virtude em rigorosa equidistância.
Para os epicuristas a Ética não seria o estudo de um bem objectivo em si.
Os estóicos acentuaram uma Ética do dever e do ser.
O cristianismo deu lugar à Ética cristã, ontológica e teleológica, por isso o bem ético encontra-se inserido na consecução dos próprios fins da natureza e da sua obra, nas virtudes específicas e no valor de cada ser.
A partir de Kant, a Ética ficou independente das ideias religiosas e transformou-se numa ética do dever, da determinação da verdade.
A revolução industrial ou social teve reflexos importantes no relacionamento entre as pessoas e portanto na Ética. Criou-se a Ética da era industrial.
No que respeita à matéria médica, a ética do médico disponível, cheio de bondade, sempre pronto a sacrificar o seu descanso pelos doentes, muitas vezes sem qualquer paga, deu origem a uma nova Ética: a do profissional de saúde. Onde se apreciavam qualidades morais, avaliam-se agora também qualidades técnicas.
As correntes da Ética e da Moral evoluíram sempre paralelamente às escolas filosóficas.
A Moral é a ciência do comportamento espontâneo, porque estuda o comportamento adquirido durante a formação do indivíduo, nas fases mais precoces da sua vida, intrínseco, quase interiorizado, como tal espontâneo, constituindo a consciência de cada um.
A Ética é a ciência do comportamento elaborado, interessado no comportamento perante as novidades, as tecnologias avançadas; resulta de conceitos muito discutidos, constituindo por fim um Código.
Com a evolução científica acelerada, maior divulgação e absorção mais precoce dos conhecimentos, muitos dos conceitos éticos transformaram-se em conceitos morais.
Tanto no que se refere à Moral como à Ética, importa definir não só o que deve ser, mas também o que não deve ser, o moral e o imoral, o ético e o anti-ético.
Muitos dos princípios considerados éticos nos séculos passados, deixaram hoje de o ser, porque a evolução da ciência e da tecnologia assim o têm exigido.
O Código Ético fica situado entre a Moral e a Ética. E só existe porque os homens não cumprem ou não aceitam os princípios morais.
Um certo número de elementos de carácter social ou pessoal, os conceitos científicos, tecnológicos, as noções morais ou para-morais, a luta entre o saber e o sentir, a importância da emotividade, as modas filosóficas, constituem factores determinantes no sentido ético do comportamento das sociedades.
Existem outros factores, mais estáticos, que têm a ver com as características dos povos, o seu modo de ser e estar que, por exemplo, separam os povos nórdicos dos mediterrânicos.
Ao longo dos séculos, a noção de Ética tem sofrido uma evolução permanente, o mesmo não se passando, de modo tão marcado, com a noção de Moral, porque esta se apoia na existência do Bem e do Mal. Por isso, a Moral é teoria, elaboração mental.
À Ética não interessa o que deve ser ou não deve ser porque se baseia nos factos, na ocorrência. A Ética depende do que ocorre, do que acontece, da novidade.
Nas últimas décadas a Ética passou a ser preocupação dos profissionais de várias áreas, mais do que dos próprios filósofos.
Um pouco por todos os lados, formam-se comissões, integradas por indivíduos que se esforçam em criar princípios éticos relacionados com as suas profissões, que por vezes são princípios de natureza moral, não de natureza ética; porque na sua maioria apontam o que deve ser ou o que não deve ser que, como se sabe, são princípios morais.
A Moral é individual, decide-se no próprio indivíduo, na sua consciência; a Ética é recíproca ou colectiva, um contracto com aceitação das partes.
A Moral é resultado de preceitos, a Ética resultado de confrontos de ideias. Enquanto o médico e o doente estão de acordo, não é exigida a intervenção da Ética.
A Moral propõe, aconselha, mas cada um decide por si; a Ética impõe, e uma vez estabelecida, é entendida como lei que não permite incumprimento.
A Moral diz como deve ser, a Ética diz o que tem de se fazer.
A Moral é ampla, a Ética restrita, porque se refere apenas a campos determinados da actividade humana.
A Moral baseia-se em princípios, a Ética em consequências. Quais as consequências da interrupção voluntária de gravidez, por exemplo.
A Moral é independente, a Ética é condicionada, pela lei geral do país, pela moral, pela deontologia, pelos condicionalismos da profissão e da tecnologia.
A Moral é abstracta, a Ética concreta, tem em mira uma aplicação concreta. Depende de uma prática e desligada desta deixa de ter consistência.
A Moral realiza-se numa Doutrina, a Ética num Código.
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Há mais de dois milénios que o Corpo Médico se rege, ou procura orientar-se, por verdades e princípios essenciais que, sendo a base indiscutível da sua independência e liberdade profissionais, constituem a trama e a estrutura da própria independência e liberdade dos doentes que se lhe entregam.
Independência e liberdade do doente, fundamento da liberdade e independência do médico e seu limite.
São elas, precisamente, a Independência e Liberdade, que transparecem e ressaltam nos Juramentos ou nas Preces que ecoam desde há séculos até aos nossos dias, como compromissos do Corpo Médico perante o doente, perante a sociedade, perante a moral e perante Deus.
Se analisarmos todos estes Juramentos e Declarações -

Código de Hamurabi, 1690 AC,

Juramento de Hipócrates, 400 AC,
Juramento Grego (Século IV ou V), de autor desconhecido,
Juramento Médico de Assaph, médico judeu do século VII,
Prece de Moisés Maimonide, século XII,
Juramento de Amato Lusitano, feito em Salónica, no ano do Mundo 5.319 (1559 da nossa era),
A Prece dos Médicos ou «Thephilat Herofim», de Jacob Zahalou, médico e rabino em Itália (1630-1693),
Juramento Médico de Montpellier, redigido por Lallunaut,
Juramento do Conselho da Ordem dos Médicos de França,
Juramento ou Declaração de Genebra, adoptada pela Assembleia Geral da Associação Médica Mundial em Genebra, Suíça, em Setembro de 1948, Juramento do Médico Hebreu, redigido pelo Prof. Halpern, de Jerusalém e pronunciado pela primeira vez em 12 de Maio de 1952, quando da entrega de diplomas aos primeiros diplomados do Estado de Israel,
Oração do Médico, de Sua Santidade o Papa Pio XII,
1.° Código Internacional de Ética Médica, adoptado pela 3.ªAssembleia Geral da Associação Médica Mundial, Inglaterra, Outubro de 1949,
Declaração de Helsínquia, Recomendações para orientação dos médicos em investigação clínica (Adoptada pela 18.ª Assembleia Médica Mundial, Helsínquia, Finlândia, 1964),

veremos que, embora com o desajuste do tempo, não há grandes alterações nos princípios consignados. Muda a forma de os enunciar e a marca de cada período.
Hoje, com o desenvolvimento imparável da medicina, as alterações estão finalmente aí à espreita. Avanços científicos e tecnológicos, banalização das técnicas, modificação dos princípios sociais, influência de filósofos e pensadores, movimentos sociais, são base de fermentação de novos cozinhados éticos.
Ao longo dos últimos anos isso tem sido aparente com problemas como os transplantes, gravidez in vitro, interrupção voluntária de gravidez, eutanásia, doentes terminais, clonagem e por aí fora.
É de esperar que hoje em dia, com a evolução da medicina, nos apareça qualquer dia o dito «cuida de ti mesmo», integrando um código ético de saúde, dado que cuidar de si, será também responsabilidade de cada um.

Entretanto, a Ética deu lugar à Bioética e esta prepara-se para dar lugar à Saniética. Enquanto a primeira tem a ver com o relacionamento entre o homem e a vida, o relacionamento do homem com os elementos da biosfera, a Saniética aplica-se à ética da saúde.
E não será ainda aqui que as coisas vão parar ou abrandar, pois presumo que daqui em diante ainda iremos assistir à publicação anual dos Códigos Éticos e tal como na lei civil, o crime terá que ser analisado à luz do código do ano em que o crime foi cometido.
A menos que a Moral recupere do estado de doença em que caiu e termine o ciclo histórico da sua queda. Por aqui e por ali, começa a haver sinais de que se prepara um renascimento moral.
Assim seja.
CVR

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