sexta-feira, outubro 29, 2010

a vida literária


Um artigo recente de António Guerreiro na sua coluna «Ao pé da letra» na Atual de 16 de Outubro p.p., recordou-me uma reflexão bastante recente quando deparei, uma vez mais, com a palavra escritor antecedendo o meu nome, numa encomenda postal enviada pela APE. Perguntei-me então quando se é escritor? O que é preciso para o ser? Apenas ser sócio da APE? Parece-me pouco ou nada. Ter livros publicados? Já será alguma coisa, mas continuará a ser pouco. Ser conhecido e admirado pelos leitores? Será bastante ou tudo, consoante a qualidade dos leitores. Ser aceite pela crítica? Será nada ou quase tudo, consoante quem sejam os críticos. Ser o próprio a considerar-se ou a julgar-se escritor? Será nada, pouco ou bastante consoante for o homem que escreve e agora se julga. Quem o pode julgar, em verdade? Com o tamanho de alguns egos que por aí andam, até se poderá pensar que será essa a medida para aferir a qualidade do escritor. Com o poder do marketing e dos lobbies, não sei se se poderá concluir que o escritor merece esse nome quando é publicitado e louvado aos quatro ventos, se apenas se pode ter a certeza de que vai vender muito, mas não podendo garantir-se que vai ser lido. O texto de António Guerreiro pareceu-me ser certeiro na análise que faz a partir da revista «Ler» e ao apontar a Etologia como ciência necessária para estudar e procurar entender a vida de muitos «contentinhos» que por aí andam, egos inchados, cheios de si, dando-se bem com a vida que alguns fazedores de opinião ou vendedores de produtos, lhes proporcionaram.
Leiam António Guerreiro e pensem.
CVR

A literatura, que na época do romantismo fez da crítica o seu conceito imanente e, com a sociedade de massas, se tornou objeto da sociologia, entrou na fase em que reclama uma etologia. Em rigor, a etologia nada tem a dizer sobre a literatura, mas é a ciência mais competente para falar sobre
aquilo em que esta se dissolve: a vida literária. Entende-se por vida literária o código de comportamentos que rodeiam a instituição literária. A utopia de uma vida literária plena, encontramo-la na revista "Ler". Até um etólogo de fraco saber percebe, mal começa a folheá-la, que entrou numa reserva de vida especial. Não é que esta vida não habite nas páginas literárias dos jornais. Mas na revista "Ler" todos os álibis foram abandonados e o resultado é uma concentração de vida literária, um encontro jubilante de escritores, editores, críticos, divulgadores, leitores: a grande entrevista que eleva o entrevistado ao Olimpo do Grande-Escritor; as rubricas de fait-divers e de brincadeiras inocentes; as notícias e as listas dos livros a sair (a vida literária tem, por definição, uma tensão prospetiva, declina-se sob a forma do que aí vem); o top dos livros mais vendidos nos países a que o leitor cosmopolita não pode deixar de estar atento; a prodigiosa proliferação (dez, ao todo) de crónicas - o bem mais partilhado neste mundo de sonho. Tudo alimentado por um fervoroso amor aos livros, até às suas entranhas materiais. A vida barroca e flamejante deste jardim, que é o melhor dos mundos possíveis, tem a sua expressão na eloquência patética de um Candide sem ironia: "O que faz falta na crítica literária portuguesa é a análise superficial (Jorge Reis-Sá). Só nesta coutada protegida de vida literária, onde reina uma harmonia pré-estabelecida, "um devorador de livros açoriano", anunciado na capa, não é uma séria ameaça a um escritor que, logo abaixo, ousa dizer em voz alta: "O Livro sou eu."

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