segunda-feira, março 28, 2011

é tudo relativo


Embora seja uma visão propositadamente exagerada, entende-se a razão de ser assim, pois doutra forma não obteria o efeito pretendido por quem escreveu o texto.
Exagerada e deformada, é certo. Mas certeira em grande parte dos casos. Se pensarmos um pouco, todos conhecemos alguém que se pode enquadrar neste amargo escrito.
Leiam e comentem.


Diálogo com um jovem à rasca
por
Rui Herbon

- Então, foste à manifestação da geração à rasca?

- Sim, claro.

- Quais foram os teus motivos?

- Acabei o curso e não arranjo emprego.

- E tens respondido a anúncios?

- Na realidade, não. Até porque de verão dá jeito: um gajo vai à praia, às esplanadas, as miúdas são giras e usam pouca roupa. Mas de inverno é uma chatice. Vê lá que ainda me sobra dinheiro da mesada que os meus pais me dão. Estou aborrecido.

- Bom, mas então porque não respondes a anúncios de emprego?

- Err...

- Certo. Mudando a agulha: felizmente não houve incidentes.

- É verdade, mas houve chatices.

- Então?

- Quando cheguei ao viaduto Duarte Pacheco já havia fila.

- Seguramente gente que ia para as Amoreiras.

- Nada disso. Jovens à rasca como eu. E gente menos jovem. Mas todos à rasca.

- Hum... E estacionaste onde? No parque Eduardo VII?

- Tás doido?! Um Audi TT cabrio dá muito nas vistas e aquela zona é manhosa. Não, tentei arranjar lugar no parque do Marquês. Mas estava cheio.

- Cheio de...?

- De carros de jovens à rasca como eu, claro. Que pergunta!

- E...?

- Estacionei no parque do El Corte Inglés. Pensei que se me despachasse cedo podia ir comprar umas coisinhas à loja gourmet.

- E apanhaste o metro.

- Nada disso. Estava em cima da hora e eu gosto de ser pontual. Apanhei um táxi. Não sem alguma dificuldade, porque havia mais jovens à rasca atrasados.

- Ok. E chegaste à manif.

- Sim, e nem vais acreditar.

- Diz.

- Entrevistaram-me em directo para a televisão.

- Muito bom. O que disseste?

- Que era licenciado e estava no desemprego. Que estava farto de pagar para as reformas dos outros.

- Mas, se nunca trabalhaste, também não descontaste para a segurança social.

- Não? Pois... não sei.

- Deixa-me adivinhar: és licenciado em Estudos Marcianos.

- F***-se! És bruxo, tu?

- Palpite. E então, gritaste muito?

- Nada. Estive o tempo todo ao telemóvel com um amigo que estava na manif do Porto. E enquanto isso ia enviado mensagens para o Facebook e o Twitter pelo iPhone e o Blackberry.

- Mas isso não são aparelhinhos caros para quem está à rasca?

- São as armas da luta. A idade da pedra já lá vai.

- Bem visto.

- Quiriquiri-quiriquiri-qui! Quiriquiri-quiriquiri-qui!

- Calma, rapaz. Portanto despachaste-te cedo e ainda foste à loja gourmet.

- Uma merda! A luta é alegria, de forma que continuámos a lutar Chiado acima, direitos ao Bairro Alto. Felizmente uma amiga, que é muito previdente, tinha reservado mesa.

- Agora os tascos do Bairro aceitam reservas?

- Chamas tasco ao Pap'Açorda?

- Errr... E comeram bem?

- Sim, sim. A luta é cansativa, requer energia. Mas o pior foi o vinho. Aquele cabernet sauvignon escorregava...

- Não me digas que foste conduzir nesse estado.

- Não. Ainda era cedo. Nunca ouviste dizer que a luta continua? E continuou em direcção ao Lux. Fomos de táxi. Quatro em cada um, porque é preciso poupar guito para o verão. Ah... a praia, as esplanadas, as miúdas giras e com pouca roupa...

- Já não vou ao Lux há algum tempo, mas com a crise deve estar meio morto, não?

- Qual quê! Estava à pinha. Muita malta à rasca.

- E daí foste para casa.

- Não. Apanhei um táxi para um hotel. Quatro estrelas, que a vida não está para luxos.

- Bom, és um jovem consciente. Como tinhas bebido e...

- Hã?! Tu passas-te! A verdade é que conheci uma camarada de luta e... bem... sabes como é.

- Resolveram fazer um plenário?

- Quê? Às vezes não te percebo.

- Costuma acontecer. E ficaram de ver-se?

- Ha! Ha! Ha! De ver-se, diz ele. Não estás a ver a cena. De manhã chegámos à conclusão que ela era bloquista e eu voto no Portas. Saiu porta fora. Acho que foi tomar o pequeno-almoço à Versailles.

- Tu tomaste o teu no hotel.

- Sim, mas mandei vir o room service, porque ainda estava meio ressacado.

- Depois pagaste e...

- A crédito, atenção. Com o cartão gold do Barclays.

- ... rumaste a casa.

- Sim, àquela hora a A5 não tinha trânsito. Já não havia malta à rasca a entupir o tráfego.

- Moras onde? Paço d'Arcos? Parede?

- Passas-te, ou quê…!? Que horror! Não, não. Moro na Quinta da Marinha, numa casita modesta que os meus pais se vêem à rasca para pagar. Para a próxima levo-os comigo.

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