Exmo. Senhor Presidente da República
Exmo. Senhor Vice-Presidente da Assembleia da República
em representação da Senhora Presidente da Assembleia da República
Exma. Senhora Ministra da Justiça em representação do
Senhor Primeiro-Ministro
Exmo. Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
Exmo. Senhor Presidente do Tribunal Constitucional
Exmo. Senhor Presidente do Supremo Tribunal
Administrativo
Exmo. Senhor Presidente do Tribunal de Contas
Exma. Senhora Ministra da Justiça
Exmos. Senhores Vice-Presidentes da Assembleia da
República
Exmos. Senhores Presidentes dos Grupos Parlamentares
Exma. Senhora Procuradora-Geral da República
Exmo. Sr. Chefe do Estado-Maior-General das Forças
Armadas
Exmo. Senhor Provedor de Justiça
Exmo. Senhor Cardeal Patriarca de Lisboa
Demais Convidados
Senhores Magistrados
Caros Colegas
Minhas Senhoras e meus Senhores
Este
é o último ano em que, em representação dos advogados portugueses, discurso
nesta cerimónia.
Uma
cerimónia que, formalmente, é organizada em conjunto por este tribunal, pela
Procuradoria-Geral da República e pela Ordem dos Advogados a que presido.
Este
é, pois, um local comum às três principais profissões forenses.
Este
Supremo Tribunal de Justiça é, pelo menos neste dia, a verdadeira Casa da Justiça
portuguesa.
Por
isso ele é o local próprio para os balanços que cada orador entenda fazer; é o
local adequado para, em nome daqueles que representamos, analisar os principais
problemas da justiça e do país.
Aqui
estão, formalmente convidados, em conjunto pelo Sr. presidente do STJ, pela
Sra. PGR e por mim próprio, as mais altas figuras do estado, com destaque para
V. Exas. Senhor Presidente da República e Senhora Presidente da Assembleia da
República, bem como membros do Governo, representantes dos grupos parlamentares
e das forças armadas, dos demais tribunais, e da Igreja Católica, entre outras
entidades.
Defendi,
em tempos, que os organizadores desta cerimónia deveriam, no final do ano
parlamentar, ir à Assembleia da República informar os representantes
democráticos do povo português sobre como foi, em geral, administrada a justiça
nesse ano.
Defendi
e continuo a defender essa iniciativa pois entendo que, quanto mais
transparentemente se relacionarem entre si os titulares dos poderes do estado
democrático menos o farão às ocultas.
Quanto
mais transparente for a interdependência entre esses poderes mais nítida será a
separação entre eles, maior será a independência de cada um deles e,
consequentemente, melhor se cumprirá o espírito e a letra do artigo 2º da
Constituição da República Portuguesa.
Juízes,
Procuradores e Advogados todos pertencemos à mesma família e todos trabalhamos
na mesma casa, em prol do mesmo objectivo que é a justiça.
Por
isso, estamos condenados a entendermo-nos - quer queiramos quer não - em
benefício ou por imposição dos direitos e dos interesses legítimos dos cidadãos
e do próprio estado de direito.
Sendo
este alto tribunal, pelo menos hoje, a Casa da Justiça, ele é o local próprio
para em nome da Ordem a que presido e em representação dos Advogados
portugueses aqui exprimir as nossas preocupações sobre o estado de direito,
sobre a democracia, sobre a administração da justiça.
Este
é, pois, o local próprio para denunciar;
o
populismo da política do governo em matéria de justiça;
para
denunciar a utilização por parte do executivo dos órgãos de informação para
fanatizar as consciências dos cidadãos;
para
denunciar o sistemático recurso à propaganda em vez de informação rigorosa
sobre os assuntos de interesse colectivo;
para
denunciar a alteração das leis essenciais ao funcionamento da justiça com a
finalidade de conquistar popularidade fácil.
Este
tribunal é o local adequado para denunciar a insensibilidade deste governo em
relação aos problemas dos portugueses;
a
insensibilidade de pessoas que chegaram ao poder prometendo nunca fazer aquilo
que hoje fazem com calculismo e frieza;
de
pessoas que derrubaram o governo anterior por ele pretender aplicar medidas de
austeridade infinitamente mais leves do que as que o actual governo agora
aplica com gélida determinação e, até, com prazer ideológico; em suma: de
pessoas que tudo fizeram (incluindo a criação artificial de uma crise política)
para obrigar Portugal a pedir a intervenção da TROIKA, pois, sempre
souberam que só com essa intervenção poderiam realizar a sua oculta agenda
ideológica que passa pela aniquilação dos direitos de quem vive só do seu
trabalho, que passa pela destruição do estado social, que passa por um ajuste
de contas com os valores e conquistas mais emblemáticos da revolução do 25 de
Abril e pela reinstauração de um modelo de organização económica que,
verdadeiramente, apenas triunfou nos primórdios do século XIX ou então em
algumas das piores ditaduras do século XX.
Este
é, pois, o local certo para, recuperando um ideia central do programa do
presidente americano Barak Obama, dizer ao governo português que a existência
do estado social não faz de Portugal uma nação de pessoas dependentes, mas
antes nos liberta a todos - repito: a todos - para melhor executarmos as
tarefas que farão este país trilhar as veredas do progresso e do
desenvolvimento e proporcionarão um futuro melhor para os nossos filhos.
E,
sobretudo, para advertir solenemente o governo de que não tente convencer-nos
de que temos de escolher entre apoiar os idosos ou os jovens; de que temos de
escolher entre apoiar aqueles que, durante décadas, com o seu trabalho, com os
seus impostos, taxas e contribuições, sustentaram este país ou os cidadãos mais
jovens a quem entregaremos o futuro de Portugal.
Todos
temos direito aos benefícios do progresso e do desenvolvimento.
Nós,
a população activa, temos uma dívida de gratidão para com os idosos deste país.
Foram
eles, os que hoje estão reformados e aposentados, que pagaram as escolas onde
estudámos gratuitamente, os hospitais onde nos tratámos sem taxas moderadoras;
foram eles que pagaram as maternidades onde nasceram sem qualquer custo para as
famílias alguns dos que agora os consideram apenas como um custo económico que
é preciso reduzir ou eliminar.
O
governo português tem de respeitar os pactos que os reformados e os aposentados
celebraram com o estado e com a segurança social quando eram trabalhadores
activos e garantir-lhes um fim de vida com dignidade.
Isso
é não só uma exigência do princípio da protecção da confiança, mas também um
critério de aferição de seriedade que ninguém tem o direito de violar - é
também uma questão de honradez.
Exmo. Senhor Presidente da República
Exmo. Senhor Vice-Presidente da Assembleia da República
em representação da Senhora Presidente da Assembleia da
República
Exma. Senhora Ministra da Justiça em representação do
Senhor Primeiro-Ministro
Este
tribunal é, pelo menos hoje, o local apropriado para denunciar a fraude em que
se consubstanciam certas pretensas formas de justiça.
A
justiça faz-se nos tribunais com juízes e advogados independentes e com
procuradores e não em centros de mediação, ou julgados de paz.
O
estado tem a obrigação de resolver com justiça os litígios entre os cidadãos e
não obrigá-los a fazerem as pazes.
O
estado gasta quantias vultuosíssimas em instâncias alternativas que, se
aplicados nos tribunais proporcionariam uma justiça muito melhor à cidadania e
à economia - ao país e aos cidadãos.
O
estado tem a obrigação de resolver soberanamente os litígios entre empresas e
não remetê-las para essa gigantesca farsa que são os chamados tribunais
arbitrais, que em muitos casos não passam de meros instrumentos para legitimar
verdadeiros actos de corrupção.
Façamos,
a este propósito, um breve desenho para os mais distraídos: por detrás de
qualquer acto de corrupção está um acordo entre corrupto e corruptor mediante o
qual o primeiro adquire para o estado bens ou serviços ou adjudica obras a um
preço muito superior ao seu preço real, repartindo depois essa diferença entre
ambos e, nalguns casos, também com terceiros, nomeadamente com o partido a que
pertence o decisor corrupto.
Normalmente
o acto que materializa esse acordo entre corrupto e corruptor assume a forma
jurídica de um contrato publico-privado em que as partes são o estado (ou
alguns dos seus órgãos) e a empresa ou instituição privada representada pelo
corruptor.
Para
que o propósito atinja os fins delineados sem qualquer problema para os seus
autores, basta apenas que esse contrato inclua uma cláusula mediante a qual as
partes recorrerão obrigatoriamente a um tribunal arbitral para resolver
qualquer litígio dele emergente.
Depois,
finge-se uma divergência ou outro pretexto qualquer como um atraso no pagamento
do inflacionado preço para que o caso vá parar ao dito tribunal.
Imagine-se,
agora, qual será a decisão desse tribunal.
Qual
será a decisão de um tribunal em que os juízes foram substituídos por advogados
escolhidos e pagos - principescamente, aliás - pelo corrupto e pelo corruptor.
É
óbvio que proferirá a sentença pretendida por ambos e obrigará o estado ao
cumprimento integral da prestação que o corrupto e o corruptor haviam acordado
entre si.
O
recurso ao tribunal arbitral previne também a hipótese de o decisor corrupto
ser substituído no cargo por outra pessoa alheia ao negócio.
É,
sobretudo, para isso que se tem vindo a generalizar o recurso aos tribunais
arbitrais na esmagadora maioria dos negócios do estado.
Agora,
praticamente todos os contratos público-privados contêm uma cláusula mediante a
qual se estabelece que o tribunal competente para dirimir qualquer litígio
deles emergente será um tribunal arbitral, pois não podem correr o risco de o
caso poder ir parar a um tribunal independente e ser apreciado por um juiz
independente.
Nada
tenho contra os tribunais arbitrais quando, em processos cujo objecto é
disponível, eles são escolhidos por entidades privadas.
Até
reconheço que eles podem ter alguma utilidade entre entidades privadas com
idêntica capacidade económica.
Mas
temos de reconhecer que eles favorecem sempre quem tem mais dinheiro - quem tem
mais dinheiro para pagar - reparem bem! - os honorários dos juízes.
Não
aceito é que o estado fuja dos seus próprios tribunais e procure as
arbitragens, onde, sintomaticamente, é sempre condenado.
É
um tipo de justiça às escondidas, quase clandestina, usada para legitimar
verdadeiros assaltos ao património público, obviamente com a conivência de quem
tinha por missão defender esse património.
Por
isso é escandaloso que o estado recorra a esses pseudo-tribunais.
Tal
só se compreende como uma forma encapotada de prejudicar o próprio estado.
Mas,
chegou-se a uma situação em que até os impostos estão a ser discutidos nas
arbitragens, o que - diga-se em abono da verdade - se deve a uma lei do
anterior governo, mas que o actual acarinha com especial ternura.
Ou
seja: aquilo que não está na disponibilidade do estado - a cobrança dos
impostos - passou a poder ser discutido e decidido num tribunal privado em que
os juízes são nomeados e pagos pelas partes, incluindo o próprio contribuinte
devedor.
Obviamente,
não foi para protecção dos pequenos e médios contribuintes (algumas vezes
vítimas de verdadeiros assaltos do fisco) que se instituiu essa medida, mas sim
para legitimação da evasão fiscal dos grandes contribuintes, pois só estes têm
dívidas fiscais em montantes que justificam o recurso a esse tipo de justiça.
E,
muito provavelmente, a fórmula decisória não anda muito longe deste paradigma:
"deves mil, pagas duzentos ou trezentos e o resto será dividido por nós
todos, incluindo, obviamente, os juízes".
Tudo
bem resguardado do escrutínio público, como convém, e com base num emaranhado
de leis fiscais que parecem feitas para impedir a cobrança efectiva de
impostos.
O
escândalo chegou a tal ponto que este governo até já tornou os tribunais
arbitrais obrigatórios para certos tipos de litígios, ou seja, até já proibiu
empresas privadas de recorrerem aos órgãos de soberania que são os tribunais
públicos.
É
o que acontece com os litígios entre as empresas titulares das patentes dos
medicamentos e as que procedem ao fabrico de genéricos.
E
tudo isso acontece num país onde é público e notório que certos membros do
governo têm interesses profissionais directos no grande negócio das arbitragens
em Portugal.
E
tudo isto com um governo cuja propaganda tenta fazer crer que tem uma vontade
firme de combater a corrupção, mas, curiosamente, só faz através de leis
grosseiramente inconstitucionais.
Exmo. Senhor Presidente da República
Exmo. Senhor Vice-Presidente da Assembleia da República
em representação da Senhora Presidente da Assembleia da
República
Exma. Senhora Ministra da Justiça em representação do
Senhor Primeiro-Ministro
Este
é também o local próprio para dizer bem alto que vivemos num país onde os
cidadãos não podem confiar nas leis da República.
A
certeza jurídica da norma geral, abstracta e objectiva capitulou perante a
arbitrariedade da decisão judicial e, por isso, ninguém pode antecipar ou
prever com segurança a solução de um qualquer problema jurídico levado a um
tribunal.
Os
mesmos factos com a mesma lei dão origem a decisões, muitas vezes, totalmente
opostas.
Ninguém
pode prever a decisão final de um processo, porque, apesar de a lei ser a mesma
e os factos também, essa decisão, frequentemente, varia de juiz para juiz.
E
como a história abundantemente nos mostra a justiça e o direito podem muito
facilmente ser transformados em instrumentos de terror.
Infelizmente,
há decisões judiciais que constituem verdadeiros actos de um estado terrorista.
Quando
um juiz de direito emite um mandado de busca em branco quanto ao seu objecto,
ou seja, uma ordem para apreender todos os documentos e objectos que se
encontrem no escritório de um advogado e que possam constituir provas contra os
seus clientes, incluindo os computadores pessoais e profissionais do advogado,
isso é um acto de terrorismo de estado.
Por
isso, este é também o local adequado para daqui lançar uma solene advertência
aos Advogados portugueses: retirem dos vossos escritórios quaisquer documentos
ou objectos que possam incriminar os vossos clientes, pois correm o risco de um
juiz ir lá apreendê-los para os entregar à acusação.
Para
alguns juízes, o escritório de um advogado não goza, hoje, em Portugal, da imunidade
que deveria ter.
Chegámos
a um ponto da nossa vida colectiva em que os Advogados terão de recorrer aos
velhos métodos com que outrora contornavam as perseguições das polícias da
ditadura.
Este
é, também por isso, o lugar certo para proclamar a minha solidariedade para com
todos os advogados que têm sido vítimas de atropelos judiciais às suas
prerrogativas profissionais, designadamente, devido ao seu empenho na defesa
dos direitos e dos interesses legítimos dos seus constituintes.
Uma
palavra de solidariedade que quero enviar, também, aos advogados que têm sido
vítimas de verdadeiras agressões à sua honra pessoal e profissional por parte
do actual governo.
Refiro-me,
naturalmente, aos Colegas que intervêm no âmbito do sistema de apoio judiciário
e que, por essa via, prestam um inestimável serviço ao estado de direito,
permitindo que os cidadãos mais pobres possam aceder à justiça e aos tribunais
com um mínimo de qualidade e de dignidade.
Em
vez de reconhecer o papel desses advogados na consolidação do estado de
direito; em vez de lhes pagar atempadamente os parcos honorários que a lei
estabelece; em vez dignificar esse serviço como essencial ao fortalecimento da
cidadania, o governo português - o actual governo - lança, publicamente, sobre
eles as mais pérfidas suspeitas.
O
governo não só se atrasa escandalosamente no pagamento dos seus diminutos
honorários como lança sobre eles uma campanha pública de enxovalho, tentando
fazer crer que todos eles cometem fraudes.
O
estado português é de todos os da Europa ocidental o que menos gasta com cada
processo no âmbito do apoio judiciário.
Atente-se
que Portugal gasta por processo dez vezes menos do que gasta o Reino Unido.
Mas
mesmo assim, o governo chegou ao ponto de participar criminalmente contra
muitos advogados por supostas irregularidades em que os prejudicados são os
próprios advogados.
Pasme-se:
muitos advogados foram alvo de participações criminais, com base em
irregularidades que consistiram em declarar menos diligências processuais do
que as que realmente tinham sido realizadas e, como tal, recebendo menos
honorários do que aqueles a que tinham legalmente direito.
Mas,
num país onde alguns órgãos de comunicação social não escrutinam a informação
que lhes mandam e se limitam a transformar em verdades todas as falsidades que
lhes chegam às mãos, esses métodos têm sucesso político e mediático garantido.
Sempre
disse e repito-o mais uma vez aqui: o Advogado é um profissional profundamente
vinculado ao direito e aos princípios éticos e deontológicos da sua profissão.
Ele
ajuda o suspeito ou mesmo o autor de um crime a defender-se em juízo mas não o
pode auxiliar a cometer um crime e muito menos o pode cometer em nome do seu
constituinte.
Quando
isso acontece o advogado deve ser punido com mais severidade do que aqueles em
benefício de quem actuou.
E
a Ordem dos Advogados está empenhada no reforço do prestígio e da dignidade
social da advocacia.
Exmo. Senhor Presidente da República
Exmo. Senhor Vice-Presidente da Assembleia da República
em representação da Senhora Presidente da Assembleia da
República
Exma. Senhora Ministra da Justiça em representação do
Senhor Primeiro-Ministro
Há
dois mil anos, na Palestina, um homem inocente foi condenado à morte por uma
multidão de pessoas fanatizadas.
Antes
foi preso, interrogado, torturado, humilhado e julgado diante da turba de
justiceiros que ululava pela sua condenação.
O
julgamento, a sentença e a sua execução foram rápidas e exemplares.
Não
houve, como agora se diz, manobras dilatórias, nem excesso de garantismo, nem
outros expedientes que atrasassem ou dificultassem a justiça que todos queriam.
Tudo
aí se processou segundo um modelo que foi usado durante séculos e que alguns
quererem hoje recuperar.
E
se aqui, hoje, invoco, esse julgamento não é pelo facto de o arguido estar
inocente, pois sempre houve e haverá inocentes condenados.
Não
é pelo facto de, em troca da sua condenação, um criminoso ter sido libertado,
pois sempre houve e sempre haverá culpados que escapam à justiça; e sempre que
um inocente é condenado há um culpado que fica impune.
Também
não é pela brutalidade da condenação, pois essas sentenças sempre foram as
preferidas das multidões e dos justiceiros.
Não
é também pela convicção dos julgadores sobre a culpabilidade do acusado, pois
as turbas são sempre irracionais e só têm certezas.
Não
é sequer pela tortura e pela humilhação pública do acusado, pois essas práticas
também continuaram a existir durante séculos e continuam hoje em alguns estados
modernos que se dizem democráticos e de direito, como o nosso.
O
que ainda hoje me arrepia naquele julgamento é o facto de não ter havido
ninguém que erguesse a sua voz em defesa do acusado.
De
não ter havido ninguém que invocasse uma atenuante - pequena que fosse - para
amenizar um pouco a brutalidade da sentença que se anunciava.
O
arguido foi preso, interrogado, julgado e condenado em processo sumário, sem
qualquer defesa.
Ali
estava ele, sozinho, perante uma multidão de acusadores embriagados com as suas
próprias certezas e ululando pela rápida execução de uma sentença que eles
próprios proferiram, enquanto o juiz, que até tinha dúvidas sobre a sua culpa,
acabou lavando, cobardemente, as mãos, para não prejudicar a sua imagem
pública.
Ninguém
foi capaz de um só gesto em defesa daquele homem; até aos seus amigos mais
próximos faltou a coragem para uma simples palavra de conforto e de
solidariedade.
Se
aqui invoco esse terrível episódio é porque também há, hoje, em Portugal, quem
sobreponha a rapidez do julgamento à ponderação da justiça; quem queira que
crimes graves sejam julgados em processo sumário.
Se
invoco, aqui, esse julgamento é porque, hoje, em Portugal está a tentar
criar-se um ambiente um ambiente político e social que impede os acusados de
exercerem os seus direitos de defesa - que iniba outras pessoas, incluindo os
advogados, de os defenderem.
Alguns
acusados são, hoje, enxovalhados na praça pública sem qualquer possibilidade de
defesa.
A
multidão de há dois mil anos foi hoje substituída por uma turba mediática onde
se destacam, magistrados, polícias, jornalistas e os justiceiros que enchem as
caixas de comentários on-line.
Simples
suspeitos são condenados sem apelo nem agravo nos modernos pelourinhos em que
se transformaram certos órgãos de comunicação social, sem que sobre eles tenha
sido emitido qualquer veredicto formal de culpabilidade.
Políticos
sequiosos de popularidade fácil, jornalistas moralmente corrompidos, polícias
fundamentalistas, magistrados indignos da sua função - todos convergem para
gerar o ambiente social que exige sempre penas mais pesadas, medidas de coacção
mais duras e, sobretudo, para criar as condições de coacção psico-social
propícias a que só se ouça ou se acredite na versão dos acusadores.
Todos
se unem na tentativa de fazer gerar na opinião pública a ideia de que sãos os
direitos dos cidadãos que estão a mais no nosso sistema judicial; que é o
exercício processual desses direitos que entrava o funcionamento da nossa
justiça.
O
uso dos mais elementares direitos de defesa é apontado por eles como a causa
dos principais males da justiça portuguesa.
Os
Advogados, aqueles que detêm a missão constitucional de defender em juízo os
direitos das pessoas, são desqualificados no discurso oficial deste governo e
desvalorizados nos nossos tribunais.
Eles
são, por vezes, anatematizados e, até, silenciados nas salas de audiências dos
tribunais por pequenos ditadores travestidos de magistrados.
Se
o recurso de um cidadão contra uma decisão judicial que o prejudica tem de ser
feito em alguns dias, pois senão perde-se o direito de recorrer dessa decisão,
e se a apreciação desse recurso demora muitos meses ou anos - o que faz o
governo e a Assembleia da República às suas ordens para corrigir esse atraso?
Acaba
com o direito de recurso ou restringe-o gravemente, em vez de criar condições
para que os magistrados os decidam mais depressa.
Esta
é a metodologia que este governo e a maioria parlamentar que o apoia estão
seguir em matéria de justiça.
Quem
é fraco com os fortes acaba sempre sendo forte com os fracos.
O
actual governo está, hoje, a tentar introduzir na investigação criminal os
mesmos métodos que tão bons resultados deram na caça às bruxas da idade média
ou na perseguição dos opositores por parte dos regimes totalitários.
Em
breve, a confissão será a prova rainha do processo penal e tudo valerá para a
obter.
Em
breve, a prisão preventiva deixará de ser usada como medida cautelar a passará
a sê-lo como forma de obrigar os suspeitos a colaborarem com os investigadores
na sua própria incriminação.
Contra
tudo isso, contra essa subcultura que desqualifica o papel do advogado na
administração da justiça, daqui ergo a minha voz.
Daqui
denuncio também o populismo primário subjacente ao discurso das "manobras
dilatórias" e do "excesso de garantismo" com que este governo e
seus seguidores na comunicação social e nos tribunais têm vindo a intoxicar a
opinião pública.
Não
há excesso de garantias nas nossas leis.
O
que há são demasiadas violações dos direitos dos cidadãos - dos direitos humanos
- em alguns interrogatórios policiais (sem a presença de advogado), em algumas
prisões, e até em algumas salas de audiência.
O
que há em abundância no nosso sistema de justiça é o fundamentalismo justiceiro
de muitos magistrados e polícias, de alguns políticos e de demasiados
jornalistas.
O
que há em excesso em Portugal é humilhação pública dos arguidos, condenados ou
não.
O
que há em excesso no nosso sistema de justiça é desrespeito pelos princípios do
contraditório e da imediação; é desrespeito pelos cidadãos e pelos seus
mandatários.
O
que há em excesso no nosso sistema de justiça são alterações legislativas e
cada vez mais leis com cada vez menos qualidade.
Exmo. Senhor Presidente da República
Exmo. Senhor Vice-Presidente da Assembleia da República
em representação da Senhora Presidente da Assembleia da
República
Exma. Senhora Ministra da Justiça em representação do
Senhor Primeiro-Ministro
É
hora de terminar.
Fez
ontem, precisamente, seis anos que aqui discursei pela primeira vez como
Bastonário da Ordem dos Advogados.
Faço-o
hoje pela última vez nessa veste e, devo dizê-lo, com qualquer outra, pois
dificilmente aqui voltarei, o que, aliás, vai agradar a muitos, incluindo a mim
próprio.
Sinto
aproximar-se o fim de uma longa caminhada.
Às
vezes tenho uma estranha sensação de plenitude e outras um sentimento de vazio.
Sinto
que aqui disse tudo o que havia para dizer; sinto que disse tudo o que devia
ser dito.
Um
advogado não existe para agradar mas sim para incomodar.
Um
advogado existe para fazer tudo aquilo que faltou naquele julgamento de há dois
mil anos e não permitir que os julgamentos sejam tão rápidos; existem para
estar ao lado dos seus constituintes sejam eles vítimas, acusados ou
condenados; existem para enfrentar todos os justiceiros.
Existem
para que a justiça seja feita com ponderação, com objectividade, com
imparcialidade e até com humildade.
Um
advogado existe para defender direitos e interesses legítimos - para ser útil
aos cidadãos.
E
será tanto mais eficaz nessa sua missão quanto mais capaz for de incomodar os
poderes e os poderosos.
E
será tanto mais incómodo para estes quanto mais capaz for de defender os
cidadãos, quanto mais útil for à cidadania.
Quando
pensei na melhor forma de terminar esta série longa de discursos, quase sempre,
fui parar ao regaço protector de um poeta, à companhia reconfortante da poesia.
Umas
vezes fui seduzido pelo arrebatamento demolidor de Jorge de Sena:
"Estão podres as palavras - de passarem/por
sórdidas mentiras de canalhas/que as usam revés como o carácter deles"./E
podres de sonâmbulos os povos/ante a maldade à solta de que vivem/a paz
quotidiana de injustiça.
Em
outras inclinei-me para a suavidade lírica de Camões:
"Oh como se me alonga de ano em ano/A peregrinação
cansada minha! /Como se encurta, e como ao fim caminha/Este meu breve e vão
discurso humano"!
Lembrei-me
até de repetir o grito flamejante do cantor brasileiro, Cazuza:
Meus heróis/Morreram de overdose/Meus inimigos/Estão no
poder
Mas
acabei por escolher a exaltação clarificadora de um poema de José Carlos Ary
dos Santos, a que apenas alterei uma palavra.
Por
isso, porque este tribunal é, hoje e agora, o sítio certo para se dizer estas
coisas, digo-vos que
Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.
Serei tudo o que disserem:
ADVOGADO
castrado não!
Muito
obrigado.
30
de Janeiro de 2013
António
Marinho e Pinto
(Bastonário
da Ordem dos Advogados)
Ler mais: http://expresso.sapo.pt/discurso-de-marinho-pinto-na-abertura-do-ano-judicial=f783489#ixzz2JXXVfzml
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