Esta carta toca-nos fundo, como normalmente sucede em cartas de filha para mãe. E mais fundo nos toca quando o tema que a motiva se prende tão intimamente com todos nós e não só com quem a escreveu e a mãe a quem é dirigida.
Merece leitura atenta, sobretudo vinda de quem vem.
Carta a minha mãe sobre o SNS e outras
coisas em Portugal
TERESA PIZARRO BELEZA
TERESA PIZARRO BELEZA
"Mãe, sabes que agora em Portugal mandam uns senhores que estão a dar cabodo Serviço Nacional de Saúde? E que dizem que é por causa de uma tal de troika, que agora manda neles? Lembras-te da "Lei Arnault", que, segundo ele mesmo diz, tu redigiste, depois de muito pensares e estudares sobre o assunto, com a seriedade e o empenho que punhas em tudo o que fazias?
Lembras-te
das nossas conversas sobre a necessidade de toda a gente em Portugal ter acesso
a cuidados de saúde básicos de boa qualidade e de como essa possibilidade fizera
em poucos anos baixar drasticamente a mortalidade materna e infantil, flagelos
nacionais antigos, como uma das coisas boas que se tornaram realidade depois de
1974 e com a restauração da democracia?
Lembras-te
de quando eu te dizia que eras tão mais socialista do que "eles", os
do Partido Socialista, e tu te zangavas porque não era essa a tua imagem e a
tua crença?
E
quando eu te dizia que o ministro António Arnault era maçon e tu não
acreditavas, porque ele era (e é) um homem bom - e para ti a Maçonaria era a
encarnação do Diabo...
Mãe,
tu, que te dizias e julgavas convictamente monárquica, católica, miguelista,
jurista cartesiana (isso era o que eu te dizia e que penso que eras, também),
que conhecias a Bíblia e Teilhard de Chardin como ninguém e me ensinaste que
Deus criara o homem e a mulher à Sua imagem, quando pronunciou o fiat, porque
assim se diz no Génesis...
Tu
que dizias que o problema dos economistas era que não tinham aprendido latim...
e me tiravas as dúvidas de português e outras coisas, quando me não mandavas ir
ao dicionário, como agora eu mando o meu Filho...
Tu
que foste o meu "Google", às vezes renitente, quando este ainda não
existia... Sabes que agora manda em Portugal gente ignorante e pacóvia, que nem
se lembra já de como se vivia na pobreza e na doença, que julga que o
Estado se deve retirar de tudo, incluindo da Saúde, e confunde a absoluta e
premente necessidade de controlar e conter o imenso desperdício com a ideia de
fechar portas, urgências claramente úteis social e geograficamente...
Sabes
que fecharam o Serviço de Urgência e o excelente Serviço de Cardiologia do
Hospital Curry Cabral
sem sequer prevenirem ou consultarem o seu chefe? Onde irão agora todas aquelas
pessoas tão claramente pobres, vulneráveis e humildes que tantas vezes lá
encontrei e que não pareciam capazes de aprenderem outro caminho, outro
destino, de encontrarem outros dedicados e pacientes "ouvidores"?
Sabes
que um ministro qualquer disse que o edifício da Maternidade Alfredo da Costa
não tinha qualquer interesse urbanístico ou arquitectónico, para além de
condenar ao abate essa unidade de saúde, com limitações já evidentes, mas que
tão importante foi para tanta gente humilde ter os seus filhos em segurança?
Será mesmo que não a poderiam "refundar", como agora se diz? Ou
quererão construir um condomínio fechado, luxuoso e kitsch, no meio de uma das
minhas, das nossas cidades?
Lembras-te
de me ires buscar à MAC quando nasceu o meu Filho e de como te contei da imensa
dedicação do pessoal médico e de enfermagem e da clara sobre-representação de
parturientes de origem social modesta, imigrantes, ciganas, ou simplesmente
pobres?
Sabes que há muita gente que pensa que a iniciativa privada, incontrolada e à solta, é que vai salvar Portugal da bancarrota, e que ignora o sentido das palavras solidariedade, justiça, igualdade, compaixão?
Sabes, Mãe, eu lembro-me de ver pessoas que partiram de Portugal para o mundo em busca de trabalho e rendimento a viver em "casas" feitas de bocados de camioneta, de restos de madeira, de cartão e outros improváveis e etéreos materiais, emigrantes portugueses que foram parar ao bidonville em St Denis, nos arredores de Paris, num Inverno em que a temperatura desceu a 20 graus Celsius abaixo de zero (1970).
Nas "paredes", havia toda a sorte de inscrições contra a guerra colonial e contra o regime que então reinava em Portugal.
Sabes que há muita gente que pensa que a iniciativa privada, incontrolada e à solta, é que vai salvar Portugal da bancarrota, e que ignora o sentido das palavras solidariedade, justiça, igualdade, compaixão?
Sabes, Mãe, eu lembro-me de ver pessoas que partiram de Portugal para o mundo em busca de trabalho e rendimento a viver em "casas" feitas de bocados de camioneta, de restos de madeira, de cartão e outros improváveis e etéreos materiais, emigrantes portugueses que foram parar ao bidonville em St Denis, nos arredores de Paris, num Inverno em que a temperatura desceu a 20 graus Celsius abaixo de zero (1970).
Nas "paredes", havia toda a sorte de inscrições contra a guerra colonial e contra o regime que então reinava em Portugal.
O
padre Zé, o nosso amigo da Mission Catholique Portugaise que me acompanhava e
me quis mostrar o bairro, proibiu-me de falar português e de sair do carro
enquanto ali passávamos... e aqui em Portugal eu vi tanta miséria envergonhada,
homens de chapéu na mão a pedir emprego, mulheres e crianças a pedir esmola,
apesar de todas as leis e medidas que o Estado Novo produziu para as esconder,
como já fizera a Primeira República.
A
pobreza e a vadiagem não se eliminam com Mitras e medidas de segurança, mas com
produção e distribuição de riqueza e de justiça social. Com a promoção da
igualdade e da solidariedade, como manda a Constituição.
E a Saúde, Mãe, que vão fazer dela? Da saúde dos pobres, dos velhos, das crianças, dos que não têm nem podem ter seguros de saúde de luxo, porque não têm dinheiro, porque já não têm idade, ou porque não têm saúde?
E as crianças, Mãe? Vão de novo morrer antes do tempo porque o parto foi solitário ou mal assistido, porque a saúde materno-infantil passou a ser de novo um bem reservado a alguns privilegiados, ou porque a "selecção natural" voltará a equilibrar a demografia em Portugal, recolhidas as mulheres a suas casas, desempregadas e de novo domesticadas, e perdida de novo a possibilidade de controlo sobre a sua própria fertilidade?
E a Saúde, Mãe, que vão fazer dela? Da saúde dos pobres, dos velhos, das crianças, dos que não têm nem podem ter seguros de saúde de luxo, porque não têm dinheiro, porque já não têm idade, ou porque não têm saúde?
E as crianças, Mãe? Vão de novo morrer antes do tempo porque o parto foi solitário ou mal assistido, porque a saúde materno-infantil passou a ser de novo um bem reservado a alguns privilegiados, ou porque a "selecção natural" voltará a equilibrar a demografia em Portugal, recolhidas as mulheres a suas casas, desempregadas e de novo domesticadas, e perdida de novo a possibilidade de controlo sobre a sua própria fertilidade?
O
planeamento familiar, que tu tão bem explicaste que deveria segundo a lei
seguir a autonomia que o Código Civil reconhece na capacidade natural dos
adolescentes - tu, católica, jurista, supostamente conservadora (assim te
pensavas, às vezes?)...
Sabes
que aqui há tempos ouvi uma jurista ignorante dizer em público que só aos 18
anos os jovens poderiam ir sozinhos a uma consulta de planeamento familiar,
quando atingissem a maioridade, sem autorização de pai ou mãe?
Ai,
minha Mãe, como a ignorância é perigosa... Será que nos espera um qualquer
Ceausescu ou equivalente, dado o progressivo estrangulamento político e social
a que a necessidade económica e a cegueira política nos estão levando?
Os
traços fascizantes que são visíveis na repressão da liberdade de expressão e de
manifestação, em tudo tão contrários à Constituição da República, serão só
impressão de uns "maníacos de esquerda", como dizem umas pessoas que
há tão pouco tempo garantiam que essa coisa de esquerda e direita era coisa
do passado?
Mas
as crianças são o futuro, Mãe, que será deste país sem elas, sem a sua saúde e
sem a sua educação, sem o seu bem-estar, sem a sua alegria?
Eu
lembro-me tão bem dos miúdos descalços e ranhosos nas ruas da minha infância...
e da luta legal, tão recente ainda, quem sabe se perdida, contra o trabalho
clandestino, ilegal e infame das crianças a coserem sapatos em casa, a faltarem
à escola, a ajudarem as famílias, ainda há tão pouco tempo, ou dos miuditos com
carregos e encargos maiores que eles, à semelhança das mulheres da carqueja a
subirem aquela rampa infame que Helder Pacheco, o poeta-guia do nosso Porto, tão
bem descreve...
"Que quem já é pecador sofra tormentos, enfim! Mas as crianças, Senhor, porque lhes dais tanta dor?!... Porque padecem assim?!..."
Mãe, se agora cá voltasses, ao mundo dos vivos, acho que terias uma desilusão terrível.
"Que quem já é pecador sofra tormentos, enfim! Mas as crianças, Senhor, porque lhes dais tanta dor?!... Porque padecem assim?!..."
Mãe, se agora cá voltasses, ao mundo dos vivos, acho que terias uma desilusão terrível.
Melhor
que não vejas o que estão fazendo do nosso pobre país.
Da tua Filha, com muita saudade,
Maria Teresa"
Ericeira, Portugal, Europa, dia 31 de Dezembro de 2012. 10/01/2013 - 00:00
* Professora de Direito Penal, directora da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. tpb@fd.unl.p
Da tua Filha, com muita saudade,
Maria Teresa"
Ericeira, Portugal, Europa, dia 31 de Dezembro de 2012. 10/01/2013 - 00:00
* Professora de Direito Penal, directora da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. tpb@fd.unl.p
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