quinta-feira, julho 30, 2009

a gaveta dos manguitos


A qualidade da vida faz-se de coisas essenciais e de pequenos truques e estratagemas que, de uma forma simples e por vezes inocente, nos permitem libertar do peso dos dias, do magma negro da vida citadina.

Isto faz-me lembrar a sabedoria popular, os gestos e atitudes simples, de gente também simples que aposta na simplicidade o pleno do seu dia a dia. Mas também as atitudes mais elaboradas, de gente mais esclarecida, que aproveita a inteligência e o humor como escudo protector contra os misseis homem-homem que o fluir dos dias contra eles insistentemente disparam.

E, de uma forma natural, vem-me ao pensamento a gaveta dos manguitos de Vasco Santana. Homem de humor e do humor, por excelência, beneficiando ainda da carga divertida de seu peso, de seus cento e cem quilos bem medidos, soube aprender por si, que só se pode ser e viver feliz, quando se está livre do efeito desgastante das conversas que se não desejam, das companhias que se não pretendem ou reclamam, das palavras que não afinam pelo diapasão da nossa maneira de ser.

Por isso, ele percebeu que tinha que inventar a sua gaveta dos manguitos. E que gaveta era essa? Apenas uma gaveta vazia da sua secretária atafulhada, mas organizada, no seu camarim de teatro. Era a superior esquerda. Para que servia e qual era o seu truque, o seu estratagema? Quando chegava ao camarim, abria a gaveta, fazia vários manguitos e deixava-os entrar para dentro da gaveta vazia. Depois, fechava-a.

Quando, após o espectáculo, começavam a chegar as pessoas incómodas que o vinham martelar com perguntas e questões idiotas, a que ele não podia escapar, ele fazia um sorriso de beatitude, abria ligeiramente a gaveta e, enquanto conversava afavelmente, olhava para a gaveta e libertava-se a ver saírem disciplinadamente os manguitos que lá metera.

Com este pequeno truque, Vasco Santana conseguia sobreviver às conversas desinteressantes a que era forçado e sentia-se liberto do stress, podendo manter um sorriso que doutro modo, mesmo sendo actor, lhe seria impossível.

Quantos de nós terão a sua gaveta dos manguitos e a usarão para a sua sobrevivência emocional e física? Quantos de nós terão a capacidade de intuir a sua necessidade?

Já um dia escrevi sobre as gavetas da nossa vida, as gavetas da nossa alma. Compartimentar conhecimentos e emoções, vivências e mortes, alegrias e tristezas, parece ser uma posição radical de estreiteza mental, de empobrecimento determinado, de um viver baço e frio. Parece ser. Disse bem. Mas, não é. Porque ter gavetas, não significa que estejam fechadas, com segurança e código. Ter gavetas, é apenas ter gavetas.

Depois, se dirá ou discutirá como elas devem ser. Invioláveis? Estanques? Incomunicáveis? Ou, pelo contrário, abertas, semiabertas, entreabertas ou escancaradas? Com capacidade definida ou expansíveis e de capacidade inesgotável? A gaveta das emoções, a gaveta das recordações, a gaveta da ciência, a gaveta do amor ou dos amores, a gaveta dos nossos manguitos, a gaveta da estratégia, a gaveta da nossa defesa ou das nossas defesas, a gaveta da amizade, a gaveta do ódio ou da sua ausência, um sem fim de gavetas, que fazem da nossa mente um verdadeiro contador, a que só o próprio tem acesso.

Onde vou meter o pôr do sol que acabo de ver? Que foi e já não é? Em que gaveta? Naquela em que já vários sóis se estão a pôr ou numa outra em que fica apenas este que agora vi e que tenho que guardar para que não se perca, porque o vi agora enquanto escrevia o que estou a escrever, enquanto abri e fechei gavetas à velocidade dos meus pensamentos e de seu registo em memória e suas ligações?

Contudo, pensar em tal não me equipa com o poder de criar a minha gaveta dos manguitos. Uma coisa é saber da sua necessidade e de a saber minha e outra bem diferente é a capacidade de a construir, como quem abre uma nova file no computador. Não se trata só de criar a gaveta, mas de saber o que lá meter e de qual será o seu efeito.

O que é que mais alivia o meu espírito? Seja o que for, será isso o manguito da minha gaveta. E para mim será sempre a gaveta dos manguitos, porque foi esta que deu a partida para as outras.

É complicada a vida.

É complicado viver.

Simplicidade. Precisa-se.

1 comentário:

msg disse...

Muito boa noite,DOUTOR

Acabei de reler "a gaveta...",e estou aqui muito atrapalhado sem saber o que dizer.
Olhe,DOUTOR,começo por lhe "tirar o meu chapéu" não sei quantas vezes,até me cansar.
Um rico texto,um texto conseguido,como se costuma dizer. Simples,mas integral.
Mas é a vida,DOUTOR,é a vida com os seus "actores",sempre em cena,procurando representar o melhor possível. De resto,o Vasco Santana,que era um homem bom,havia,ao fim e ao cabo,de desculpar,porque eles "não sabiam o que faziam". E o DOUTOR,também. Quem não faz "jogo limpo" é digno de pena. Consumir uma vida a esconder-se em palavras para ir entretendo,quantas veses enganando,é coisa triste. Mas paciência,que eles "não sabem o que fazem".
Muito boa noite,DOUTOR,e muito boa saúde.