terça-feira, agosto 17, 2010

o grau zero da confiança na justiça



No Expresso do passado dia 14 de Agosto de 2010, Daniel Oliveira escreveu na sua coluna habitual um artigo que intitulou «A Justiça dos Mortos-Vivos», em que de uma forma simples, clara, sintética, mostra alguns dos caminhos que conduziram à actual situação da Justiça e ao grau zero da confiança que os cidadãos nela depositam. Mostra ainda a acção perniciosa do clubismo partidário que conduz os cidadãos, supostamente seres pensantes, a não quererem avaliar por si as situações, mas a analisá-las sempre com a cor partidária. Mostra ainda o caldeirão imenso em que se cozinham as ementas ao gosto das conveniências partidárias.
Por tudo isto e porque me parece ser um artigo que pode ajudar muitos daqueles que parecem ter abdicado de pensar por si a recuperarem o seu juízo crítico, independentemente de torcerem por uns ou por outros, é que resolvi transcrever aqui o referido artigo, com os meus agradecimentos e felicitações ao autor.


«Para quem esteja, como está a esmagadora maioria dos portugueses, distraído em relação às minudências do 'caso Freeport' há pelo menos uma coisa evidente: que o Ministério Público tem sido palco de confrontos políticos onde cada investigação que envolva pessoas com responsabilidades públicas é um novo round. E neste confronto a independência dos vários procuradores é tudo menos um dado seguro.
Uma parte do país está convencida de que José Sócrates é culpado. Não interessa culpado de quê. Acha que o homem não é sério e, por isso, qualquer acusação que lhe seja feita está provada à partida. Outra parte do país está convencida de que José Sócrates é inocente. Não interessa inocente de quê. Acha que o homem é líder do PS e, por isso, qualquer acusação que lhe seja feita não passa de uma cabala. E a maioria do país não faz a menor ideia de que estamos todos a falar. Perdeu-se há muito no labirinto da justiça portuguesa e tem, por agora, coisas mais importantes com que se preocupar.
Acontece que não é a primeira vez que cai sobre o Ministério Público a suspeita de manipulação política dos seus poderes de investigação. Quem esteve atento ao 'caso Casa Pia' percebeu que muito se jogava ali além da investigação de violações de menores. Nem os casos são semelhantes nem o desastre daquela investigação impede que outras se façam com eficácia. Mas o que ficámos a saber é que os poderes judiciários são terrivelmente permeáveis ao contexto político em que se movem.
Não é coisa de hoje. Na
Procuradoria sempre houve coutadas políticas. A diferença é que, no tempo de Cunha Rodrigues, a comunicação social era menos afoita e estes debates não se faziam à luz do dia. Agora fazem-se. A porcaria corre a céu aberto e não é bonita de se ver. E como tudo acontece aos olhos de todos, as investigações passaram a ter repercussões políticas desconhecidas até ao 'caso Casa Pia'. Como se viu, é possível usar a justiça para decapitar a liderança de um partido sem sequer ter de a levar até ao banco dos réus. E mesmo depois de se pôr de lado o envolvimento de alguém num crime, a suspeita anda por aí como um zombie, a atormentar para sempre aqueles com quem se cruzou em vida. Por isso, escaldados que estamos, não duvidamos de que é possível manipular a justiça para matar ou salvar um governante. E enquanto suspeitarmos de tal possibilidade teremos uma democracia coxa.
As minhas convicções sobre o 'caso Freeport' são poucas: que a aprovação daquele empreendimento tem contornos administrativos pouco claros; que não tenho nenhum facto indesmentível que me leve a pensar que a responsabilidade de Sócrates é mais do que política; que durante muito tempo a direita, como acusadora ad hoc, e Sócrates, como vítima empenhada, usaram o caso para não ter de discutir a situação do país; que não falta quem queira que as sentenças se lavrem nos jornais; e que os agentes de justiça foram incapazes de dar aos cidadãos qualquer sinal de confiança de que a verdade se viria a saber.
O 'caso Freeport' morreu como tantos outros: sem que a justiça conseguisse enterrar o corpo da suspeita. E mais uma vez a sua alma penada andará por aí, durante anos, mostrando que quando um processo judicial tem utilidade política ninguém tem o poder, a autoridade e a credibilidade para declarar o óbito. E é esta justiça de processos mortos-vivos que põe em perigo a democracia».

1 comentário:

msg disse...

Muito boa noite,CARO DOUTOR

O seu texto e o artigo lembram o que D.Pedro V escreveu numa das suas cartas:
"E no passado recente,quanto mal tem sido feito a Portugal pelo facto de os homens se preocuparem muito mais com as personalidades do que com as causas".

De Cartas de D.Pedro V

Muito boa noite,CARO DOUTOR