Mais uma vez transcrevo um magnífico e esclarecido texto do filósofo José Gil, publicado na Visão desta semana e que intitulou «A morte do espírito». Também, mais uma vez, não teço comentários por me parecerem desnecessários dada a qualidade do texto e do pensador.
A morte do espírito
«Agora sim, temos a certeza. É a destruição total do
País que resultará do programa apresentado pelo primeiro-ministro. Não só do
País material, mas do Portugal imaterial, da tradição cultural e do futuro
espiritual que sairia do nosso cérebro e das nossas mãos.
A «Reforma do Estado» anunciada é a derradeira e
decisiva machadada no que ainda nos restava (irracionalmente) de esperança.
«Abandonai toda a esperança, vós que entrais»: não será no Inferno que
entraremos - porque do nosso país estamos a ser expulsos -, mas todo o ânimo
nos abandonará. O discurso de Passos Coelho marca o fim da esperança e da
confiança dos portugueses.
Esgotaram-se os argumentos a favor e contra a política
de austeridade. Paradoxalmente, deles ressaltam a incompetência, a ausência de
visão do Governo, o automatismo tecnicista da política financeira, a incultura
dos governantes, a sua falta de coragem em combater as desigualdades e a
corrupção, em reformar sem medo e com imaginação e inteligência, sem falar na
injustiça mesquinha dos cortes e dos impostos, e na governação errática,
incoerente e submissa. Não se estabeleceram prioridades, tratou-se mal a
educação e a economia, não percebendo que eram elas os fatores primeiros de
qualificação e produção de riqueza. Liquida-se agora a nossa escola, preparando
para futuro os mais desqualificados licenciados e trabalhadores da Europa.
Fazendo hoje fugir ou despedir os melhores. A isto se pode chamar uma política
do não-espírito.
Sabemos que a austeridade
teve já resultados
catastróficos na vida material (e na saúde e na morte) dos portugueses. Sabemos
menos como ela afeta a prática da democracia. Muito pouco conhecemos dos seus
efeitos na vida psíquica e espiritual e no nosso ânimo vital. A verdade é que se
criou uma atmosfera com a ditadura das finanças que contamina e envenena a
vida. Como no reino do Rei Ubu, «mestre das Phynanças».
O discurso incessantemente matraqueado sobre as «metas orça mentais», as
percentagens das taxas de desemprego, de pauperização, da fome, os mil gráficos
sobre toda a espécie de fenómenos sociais, fazem tudo passar pelos números.
Estes rebatem-se sobre as coisas, sobre os pensamentos, os afetos, as relações
entre os seres, sobre o prazer e a dor, sobre as ambições e os sonhos.
Rebatem-se e absorvem-nos. O prazer deixa de existir em si, é condicionado e
avaliado pelo seu custo, tornando-se mesmo o prazer do preço.
Não só se contêm os gestos, se reduzem os possíveis de uma vida, se
encolhe a existência, se abafa ainda mais, mas é a própria textura dos sonhos
que adoece, se limita e petrifica. Deixou-se de sonhar. É um assassínio do
espírito.
Quando se diz, protestando, «os homens não são números!», é isso que se
quer significar. Porque essa política pressupõe uma não-metafísica rasteira da
vida social que a funda, um positivismo grosseiro que vê numa coisa e num ser
apenas a sua materialidade física, com contornos estritamente definidos em
função das Phynanças: um professor são 40 horas de trabalho escolar que
equivalem a uma percentagem de poupança orçamental, são 40 horas, são 40 horas
- e 204 milhões de euros
para o Estado, em 2014. E o que é um pensionista? É um pensionista, um
pensionista, um pensionista - e 1468 milhões a mais para o orçamento, em 2015.
E o que é um filho? É quanto ele me custa, no que pago ao Estado em dinheiro, isto
é, em vida.
Como diria Fernando Pessoa, as coisas ficaram sem um
«além».
E o que é o pensamento? E a educação? E a cultura dos
afetos na aprendizagem da matemática (como o via Mélanie Klein)? E de quantos
números é feito o amor? Infinitos? Não, impossível: decididamente, para este
Governo, uma rosa não é uma rosa, não é uma rosa, não é uma rosa».
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