A vossa atenção para este magnífico e recente post de Pacheco Pereira no seu blog «Abrupto». Leiam e deliciem-se com o saber, a crítica certeira e a acutilância habitual do autor.
«No início do século XIX apareceu em
Lyon um nova versão do teatro de marionetes com uma personagem central que deu
o nome à cena: Guignol. Muitas das suas personagens são idênticas às da
Commedia dell"Arte italiana e incluem variantes do Arlequim, do Polichinelo,
uns criados oportunistas, uns "burgueses", um militar façanhudo, um
polícia e vários ladrões, uns ingénuos e uns espertos, umas damas de virtude
assanhada e outras de costumes fáceis, etc., etc. A actividade mais popular no
Guignol é a pancadaria, sendo que a cabeça dos bonecos tem sempre que ser feita
de madeira dura para permitir a repetida cena de uma ou várias personagens
andarem com um pau a bater na cabeça uns dos outros. Se se quiser dizer em
português, o Guignol é uma fantochada.
A imagem do Guignol,
cujas variantes nacionais ainda estão nas minhas memórias de infância,
perseguiu-me toda a semana passada enquanto assistia ao espectáculo dado pelas
sucessivas declarações de Passos Coelho e Paulo Portas, os arrufos e as
declarações de amor perpétuo, os elogios da corte de servidores, a admiração
dos jornalistas e comentadores com a supina inteligência de um e a
incompetência "mediática" do outro, num jogo de cena penoso de se
ver, diante de milhões de pessoas a empobrecer, desempregadas, ameaçadas nos
seus direitos mais básicos, velhos sem qualquer alternativa atirados aos cães
da "convergência das pensões". Era Guignol do mais
perfeito: pauladas, tiradas retóricas, choros e arrependimentos, mentiras e
maldades.
A sequência rápida destas últimas
semanas diz tudo sobre como estamos. Comecemos pelo chumbo do Tribunal
Constitucional, seguida das declarações de fúria governamental, da cena de
silêncio e ida a Belém (porquê?), do despacho vingador de Vítor Gaspar, que
continua em vigor e ninguém aplica porque é impraticável; das fugas de
informação de que as reuniões do Conselho de Ministros são campos de batalha
entre facções do Governo, detalhadamente contadas ao Expresso, a
Marques Mendes, a Marcelo, a qualquer órgão de informação que queira saber; do
discurso autocastrador de Cavaco Silva no 25 de Abril; do plano abstracto de
"fomento industrial", anunciado com tanta pompa quanto o vazio de
concretização, por uma facção do Governo ligada ao "crescimento"; da
Assembleia informada de que terá direito a ver um documento essencial para o
futuro do país, "uns minutinhos antes" de Bruxelas; da Assembleia
informada de que pode discutir os créditos swap, mas que o acesso
ao relatório que iliba a secretária de Estado (e feito sob sua direcção) permanece
"confidencial"; do Documento de Estratégia Orçamental apresentado
pela outra facção do Governo, a do "rigor orçamental", da ordem do
imaginário (e aprovado por Portas que também o acha "irrealista"),
dos anúncios sobre anúncios que não anunciam nada, do "será para depois de
amanhã", "afinal os pormenores serão só para depois", etc., etc.
"Menus de propostas", uma ridícula denominação, de vários tipos:
anunciadas; anunciadas mas vetadas por outro ministro do mesmo Governo;
anunciadas mas "abertas" para se cumprir o ritual da concertação
social, e o novo ritual do "consenso"; propostas
"equacionadas"; propostas que quando dão torto passam a
"hipóteses" de trabalho (sendo que os números divulgados noutros
documentos de "poupanças" são as das "hipóteses" e não as
das propostas...), propostas em versão A e B e C, mudadas no espaço de uma
semana; propostas terroristas passadas em fugas à comunicação social para ver
no que dá e para depois vir o Governo congratular-se por afinal não ir fazer
tão mal aos cidadãos como tinha "soprado" a uma imprensa que publica
tudo; não-propostas e antipropostas da ordem da matéria negra e da antimatéria.
Alguém me sabe ou pode dizer, a uma semana do seu anúncio, que medidas estão
efectivamente decididas? Ninguém.
O "menu de propostas"
parece aqueles menus desleixados em que uma cruz significa que o prato já não
há, e depois, quando se pede outro, já não há os ingredientes e é melhor
escolher o que não se tinha escolhido; ou aqueles menus dos restaurantes de
luxo em que um palavreado destinado a épater le bourgeois, como
"emulsão de chouriço", "vinagrete de citrinos" ou
"sardinha em seu suco", ocultam pouco mais do que uma folha de alface
com Aceto Balsamico de Modena feito na Bairrada. E quanto aos
preços do "menu" não há um único que bata certo. Os do Documento de
Estratégia Orçamental não são os mesmos dos de Passos Coelho, nem os de Portas,
nem os da contabilidade do "menu de medidas", nem os do secretário de
Estado Rosalino, nem os que são dados nas reuniões de concertação social. São
todos em milhares de milhões de euros, mas nada bate certo e não é só nas
previsões, é nos números com que se parte para as previsões.
Depois há o uso cada vez mais
ofensivo da instabilidade, da chantagem e do medo para pôr as pessoas na ordem.
Veja-se o que se passa com os despedimentos da função pública, que, se o
Governo pudesse sem violação da lei e da Constituição, seriam às dezenas de
milhares, amanhã mesmo. Mas como não pode, usa-se uma combinação de chantagem -
as rescisões "por mútuo acordo" - com a colocação de milhares de
trabalhadores na absurda (e ilegal) situação de manterem um vínculo ao Estado
sem receberem um tostão de salário. E como o Governo percebeu que talvez, mesmo
apesar dos inconvenientes pessoais da chamada "mobilidade especial",
pudesse haver um número significativo de funcionários que a pudessem aceitar em
desespero de causa, e como o objectivo, por detrás dessa tralha verbal
tecnocrática, é só despedir, vem agora dizer que "precisamos de
transformar o Sistema de Mobilidade Especial num novo Sistema de
Requalificação da Administração Pública, com o objectivo de promover a
requalificação dos trabalhadores em funções públicas, através de ações de
formação". Poderíamos dizer que teria havido um progresso, visto que
se pretendia apenas "requalificar" os trabalhadores.
Mas se é assim por que é que a frase seguinte é "... e da
introdução de um período máximo de 18 meses de permanência nessa condição, pois
não é justo para a pessoa, nem é boa administração do Estado, perpetuar uma
situação remuneratória que já não tem justificação laboral", ou
seja "requalificar" significa despedir? Estes jogos
de palavras orwellianos são tão habituais neste Governo como respirar. E eles
estão ofegantes.
É uma descrição dura e desapiedada
a que faço? Ainda me parece mole e meiga, porque a dimensão de Guignol,
de engano, de dolo, de nos querer tomar por tolos, é compulsiva. Não é para
levar a sério, mas é muito sério. É muito sério porque disto tudo fica um
resíduo, um rasto, uma saliva marcando as paredes, uma babugem qualquer, de
medidas, ordens avulsas, leis e directivas, despachos que destroem sem sentido
a vida a muitas pessoas que estão a pagar um tributo demasiado caro à vaidade
do dr. Portas, ao profetismo ignorante de Passos Coelho, à obstinação
tecnocrática de Gaspar, ao servilismo dos deputados do PSD e do CDS, e à
cumplicidade de muitos interesses. Esse tributo, que vai ser inútil porque dele
não virá qualquer adquirido para os problemas do país, torna este Guignol criminoso.
E não me venham com desculpas, nada
disto tem a ver com o facto de haver uma coligação, nada disto mostra
inteligência, mas apenas esperteza, nada disto mostra qualquer preocupação com
o país, mas apenas instinto de sobrevivência eleitoral, nada disto mostra
qualquer sentido de Estado mas apenas truques de imagem mediáticos, nada disto
tem a ver com Portugal nem com os portugueses, mas com um sistema político
corrompido pela sua ruptura com o povo e a nação. Guignol por Guignol prefiro
o verdadeiro».
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