domingo, dezembro 06, 2009

o vinho e o mosto - um exercício de intertextualidade 26


92.
(…) Nunca pretendi ser senão um sonhador. A quem me falou de viver nunca prestei atenção. Pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser. Tudo o que não é meu, por baixo que seja, teve sempre poesia para mim. Nunca amei senão coisa nenhuma. Nunca desejei senão o que nem podia imaginar. À vida nunca pedi senão que passasse por mim sem que eu a sentisse. Do amor apenas exigi que nunca deixasse de ser um sonho longínquo (…)

Bernardo Soares, Livro do Desassossego



Em muito deste texto me revejo ou me enquadro. Mas na parte dele em que mais sinto que eu estou descrito é em pedir à vida que passe sem eu a sentir. A diferença estará na interpretação que Bernardo Soares deu a este passar sem se sentir e aquela que eu realmente peço, que me parece ser distinta. O que eu peço para não sentir é o sofrimento que ela nos traz vezes a mais que as desejáveis, pelo menos por mim; mas a outra, aquela em que me creio ou tento crer feliz, essa quero senti-la bem, estar nela e não fora dela.
Contudo se prestar atenção e quiser ser sincero comigo próprio tenho que concordar que é tal a vontade de viver uma vida cheia que caio de uma forma quase natural na superficialidade dela que, por ser superficial é mais rápida e sendo mais rápida aleija menos.
Aleija menos, escrevi. Mas não é verdade porque embora ela passe, ficam os sinais dela, mordendo, desgastando, consumindo, apertando o cerco para a dor final.
Escrevi uma vez que me sinto um estrangeiro em qualquer lugar. Teria significado o mesmo se tivesse escrito – pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser, como escreveu Bernardo Soares.
Ele sentia assim, sofria assim, mas tinha a grandeza da sua poesia, a imortalidade da sua obra.
Eu tenho o sofrimento que tento seja fugaz e aquilo que desejei, não alcancei.

CVR

1 comentário:

msg disse...

Muito boa noite,CARO DOUTOR

A leitura deste seu texto fez-me lembrar o que li,suponho eu,em
Raul Brandão. Muito sofreste? Pois muito viveste.

Muito boa saúde,CARO DOUTOR.