Conheci Berlim em Outubro/Novembro de 1968. Encontrava-me em Hamburgo onde tinha ido acompanhar militares amputados na guerra colonial, para construção e adaptação de próteses e reeducação da funcionalidade, no Hospital Militar de Hamburgo.
Já naquele tempo os alemães tinham tido a ideia sensata de construir hospitais militares unificados onde trabalhassem médicos dos três ramos das Forças Armadas e fossem tratados todos os militares, solução que qualquer pessoa sensata considerará a mais indicada, por permitir melhor atendimento, menores gastos e melhor aproveitamento do sofisticado e caríssimo equipamento hospitalar. No «rectângulo» e apesar da guerra colonial, continuávamos a dar-nos ao luxo de sustentar três hospitais, cada Ramo com sua quinta, o que só se podia compreender por sermos o país rico que sempre fomos e somos (!), pois ainda hoje e apesar de já ter sido aprovada pela Defesa, a unificação não passou ainda do papel e quando se fizer (veremos), vai começar apenas com o serviço de urgência.
Mas é sobre Berlim que eu vou escrever, pelo que regresso rapidamente a Hamburgo para contar que após a entrega dos militares deficientes no Hospital devíamos apresentar-nos no Consulado de Portugal, entidade que providenciaria o nosso regresso.
Este processava-se normalmente no primeiro avião Nord Atlas da Luftwaffe a voar com destino a Alverca, para aqui fazer a revisão ou manutenção.
Era nesse tempo Cônsul em Hamburgo FGV, com quem fiz amizade e que, quase de forma natural, conseguia que eu regressasse apenas no segundo voo a haver o que, em termos práticos, se traduzia numa estadia de cerca de quinze dias em vez dos habituais cinco ou seis. Este natural atraso no regresso, permitiu-me viajar um pouco pela Alemanha, Dinamarca, França, Inglaterra e Suécia, que me lembre.
Numa dessas minhas estadias prolongadas, conheci um funcionário (casado com uma alemã) do Consulado em Berlim, onde o cônsul era honorário e alemão. Durante a nossa conversa perguntou-me - conhece Berlim? Não, não conheço. Quer vir amanhã comigo e minha mulher? Vai connosco de carro, fica em nossa casa os dias que quiser e depois regressa a Hamburgo de avião. Respondi prontamente que sim, com a rapidez com que diria «arrematado» num leilão. Tão prontamente que, só depois do sim, proferi palavras de agradecimento e manifestei a vontade de não lhes causar trabalho nem transtorno. Era o fogo da ainda juventude a falar!
E no dia 3 de Novembro de 1968 iniciamos a viagem a caminho de Berlim, atravessando parte da DDR (Deutsche Democratische Republik), com controlo em Marienborn. Este controlo era fortemente apertado e demorado, salvo para pessoal diplomático e estrangeiros, o que nos facilitaria, pensava eu, a passagem rápida. Puro engano. O facto do M. ser casado com uma alemã, atirou-nos inexoravelmente para as filas de grande fiscalização.
Não me lembro a esta distância, mesmo com uma capacidade mnésica razoável, de quanto tempo – ia a escrever quantas horas – por ali permanecemos. Mas se não me lembro do tempo, lembro-me bem das torres de observação, dos cães, das armas, do ar sisudo, fechado e intimidativo dos guardas, sem qualquer sinal de simpatia ou compreensão pelos tristes seres que apenas queriam continuar viagem e nada mais. Esmiuçados (quais gato fedorento) os passaportes, fotografias, datas, viatura, criando a sensação de que iria aparecer qualquer impedimento de prosseguir ou de detenção para averiguações. A bagagem era impiedosamente aberta e vistoriada. Quando finalmente nos foi ordenada a partida (mais do que permitida), só respirámos fundo e falámos quando já não se via o check point, nem nenhum carro militar, nem as imaginárias balas, atrás de nós. Posso ter sentido tudo isto de uma forma exagerada, mas é do que me lembro.
Todo o percurso através da DDR, foi de grande tristeza, apesar da beleza da paisagem alemã. O que entristecia era o peso que se sentia duma mão invisível que nos rodeava, de um olho oculto que não deixava de nos vigiar. A sensação de tristeza era tal que quase nos embotava os sentidos e ficávamos incapazes de apreciar o belo. Não me lembro de termos falado muito nesse longo trajecto. E agora, não quero lembrar-me mais disso. Prossigo.
Dizer-vos da alegria e espanto que senti quando entrámos em Berlim ocidental, é semelhante ao que provavelmente sentiria se me abrissem a porta da cadeia em que, sem saber porquê, tinha estado preso. O que via de belo pareceu-me várias vezes mais belo do que realmente seria.
Descobri novamente a tranquilidade, o sorriso na cara das pessoas, as ruas cheias de gente apressada ou não, os miúdos a correr nos jardins, vigiados por mães felizes. E com grande espanto meu, via-se muita juventude. Juventude que vim a saber, tal como agora, ali acorre vindo de todas as partes da Alemanha e do mundo.
Recordo com saudade os passeios na Kurfurstendamm, os longos e vários momentos passados na pista de patinagem no gelo do Europa Center, onde permanentemente entravam e saiam patinadores – solitários, casais, pais e filhos, namorados, idosos de ar tranquilo e sonhador (pensando, recordando, exorcizando o passado, festejando o presente, desejando ainda um futuro melhor).
Recordo com saudade e ainda espanto, os Dan Club, frequentados por estudantes, de estrutura simples e um palco central. Ali, espontaneamente, em total liberdade, todo aquele que desejasse dizer poesia (na sua própria língua), cantar, tocar um instrumento ou integrando uma banda, montar uma cena de teatro ou magia, fosse o que fosse, limitava-se a subir ao palco depois do anterior sair e … «ouçam-me, vejam-me ou ignorem-me». Foi lá que eu ouvi (ou senti como tal) a canção mais linda que ouvi até hoje, na voz de uma universitária israelita. Naqueles clubes a gestão e serviços era feita por estudantes em regime de voluntariado. Não me perguntem como tudo batia certo numa organização assim. Só sei que fui lá várias vezes e nunca vi falhas ou desacatos.
Não esqueci nunca a imagem de um casal já idoso a entrar numa sex shop a menos de trinta metros das ruínas da Gedächtniskirche (hoje, memorial), pegar numa cesta de compras e tranquilamente, sempre conversando, abastecerem-se daquilo que lhes interessava. Nunca assisti a melhor representação duma sexualidade assumida tão naturalmente, num tempo em que tudo era tão limitado e condicionado (apesar do Maio desse ano).
Assim estou eu agora, condicionado pela barreira dos cinco mil caracteres, que me impede de verter aqui outras recordações e outras particularidades da Berlim de então.
Esta crónica foi escrita porque se comemoraram no passado dia 9 de Novembro os 20 anos da queda dessa vergonha que se chamava Muro de Berlim e os alemães chamavam de «mauer». Foram precisos 27 anos de vergonha, 200 mortes e muita mudança política, para o muro ser destruído. Em 1989, quando a notícia chegou a mim era já noite. Telefonei para Koblenz para o colega e amigo Bardua a dar-lhe o abraço que não podia, mas gostaria, de lhe dar pessoalmente. Apanhei-o de saída para se juntar aos amigos e à multidão junto à confluência dos rios, festejando e chorando de alegria. Telefonou-me muito tarde quando regressou a casa a contar-me da festa e durante algum tempo as nossas lágrimas de alegria e emoção encontraram-se.
Do muro restam alguns blocos pintados, para que a memória se mantenha, o checkpoint Charlie e em Friedrichstrasse o Museum Haus am Checkpoint Charlie.
A unificação da Alemanha ainda esperou quase um ano, mas fez-se. A liberdade mais uma vez venceu, apesar de alguns alemães ainda não se terem unificado totalmente nas suas cabeças.
E chegou o dia de regressar a Hamburgo que era um dos terminais aéreos dos corredores que ligavam Berlim à Alemanha Ocidental. O aeroporto de Tempelhof (inaugurado em 1923) e que salvou Berlim de morrer à fome quando do bloqueio soviético, fez-me lembrar a arquitectura portuguesa dos anos 40. Funcionou quase até agora (Outubro de 2008) tendo sido desactivado. Mantêm-se o Tegel e o Schönefeld, que serão substituídos a partir de 2011 pelo moderníssimo Berlin-Brandenburg que aproveita as pistas do Schonefeld e que será suficiente para o tráfego aéreo de Berlim do futuro.
Pode dizer-se que Tempelhof cumpriu a sua missão, como no dia em que nele embarquei me permitiu cumprir a minha de regressar a Hamburgo a tempo de apanhar o Nord Atlas para Alverca.
Já não a cumpri agora, pois acabei por transgredir o limite imposto e quase nada disse sobre o «Mauer».
Pode ser que volte a falar um dia da Alemanha desse tempo.
Crónica a publicar no próximo número da Revista do ACMP
Já naquele tempo os alemães tinham tido a ideia sensata de construir hospitais militares unificados onde trabalhassem médicos dos três ramos das Forças Armadas e fossem tratados todos os militares, solução que qualquer pessoa sensata considerará a mais indicada, por permitir melhor atendimento, menores gastos e melhor aproveitamento do sofisticado e caríssimo equipamento hospitalar. No «rectângulo» e apesar da guerra colonial, continuávamos a dar-nos ao luxo de sustentar três hospitais, cada Ramo com sua quinta, o que só se podia compreender por sermos o país rico que sempre fomos e somos (!), pois ainda hoje e apesar de já ter sido aprovada pela Defesa, a unificação não passou ainda do papel e quando se fizer (veremos), vai começar apenas com o serviço de urgência.
Mas é sobre Berlim que eu vou escrever, pelo que regresso rapidamente a Hamburgo para contar que após a entrega dos militares deficientes no Hospital devíamos apresentar-nos no Consulado de Portugal, entidade que providenciaria o nosso regresso.
Este processava-se normalmente no primeiro avião Nord Atlas da Luftwaffe a voar com destino a Alverca, para aqui fazer a revisão ou manutenção.
Era nesse tempo Cônsul em Hamburgo FGV, com quem fiz amizade e que, quase de forma natural, conseguia que eu regressasse apenas no segundo voo a haver o que, em termos práticos, se traduzia numa estadia de cerca de quinze dias em vez dos habituais cinco ou seis. Este natural atraso no regresso, permitiu-me viajar um pouco pela Alemanha, Dinamarca, França, Inglaterra e Suécia, que me lembre.
Numa dessas minhas estadias prolongadas, conheci um funcionário (casado com uma alemã) do Consulado em Berlim, onde o cônsul era honorário e alemão. Durante a nossa conversa perguntou-me - conhece Berlim? Não, não conheço. Quer vir amanhã comigo e minha mulher? Vai connosco de carro, fica em nossa casa os dias que quiser e depois regressa a Hamburgo de avião. Respondi prontamente que sim, com a rapidez com que diria «arrematado» num leilão. Tão prontamente que, só depois do sim, proferi palavras de agradecimento e manifestei a vontade de não lhes causar trabalho nem transtorno. Era o fogo da ainda juventude a falar!
E no dia 3 de Novembro de 1968 iniciamos a viagem a caminho de Berlim, atravessando parte da DDR (Deutsche Democratische Republik), com controlo em Marienborn. Este controlo era fortemente apertado e demorado, salvo para pessoal diplomático e estrangeiros, o que nos facilitaria, pensava eu, a passagem rápida. Puro engano. O facto do M. ser casado com uma alemã, atirou-nos inexoravelmente para as filas de grande fiscalização.
Não me lembro a esta distância, mesmo com uma capacidade mnésica razoável, de quanto tempo – ia a escrever quantas horas – por ali permanecemos. Mas se não me lembro do tempo, lembro-me bem das torres de observação, dos cães, das armas, do ar sisudo, fechado e intimidativo dos guardas, sem qualquer sinal de simpatia ou compreensão pelos tristes seres que apenas queriam continuar viagem e nada mais. Esmiuçados (quais gato fedorento) os passaportes, fotografias, datas, viatura, criando a sensação de que iria aparecer qualquer impedimento de prosseguir ou de detenção para averiguações. A bagagem era impiedosamente aberta e vistoriada. Quando finalmente nos foi ordenada a partida (mais do que permitida), só respirámos fundo e falámos quando já não se via o check point, nem nenhum carro militar, nem as imaginárias balas, atrás de nós. Posso ter sentido tudo isto de uma forma exagerada, mas é do que me lembro.
Todo o percurso através da DDR, foi de grande tristeza, apesar da beleza da paisagem alemã. O que entristecia era o peso que se sentia duma mão invisível que nos rodeava, de um olho oculto que não deixava de nos vigiar. A sensação de tristeza era tal que quase nos embotava os sentidos e ficávamos incapazes de apreciar o belo. Não me lembro de termos falado muito nesse longo trajecto. E agora, não quero lembrar-me mais disso. Prossigo.
Dizer-vos da alegria e espanto que senti quando entrámos em Berlim ocidental, é semelhante ao que provavelmente sentiria se me abrissem a porta da cadeia em que, sem saber porquê, tinha estado preso. O que via de belo pareceu-me várias vezes mais belo do que realmente seria.
Descobri novamente a tranquilidade, o sorriso na cara das pessoas, as ruas cheias de gente apressada ou não, os miúdos a correr nos jardins, vigiados por mães felizes. E com grande espanto meu, via-se muita juventude. Juventude que vim a saber, tal como agora, ali acorre vindo de todas as partes da Alemanha e do mundo.
Recordo com saudade os passeios na Kurfurstendamm, os longos e vários momentos passados na pista de patinagem no gelo do Europa Center, onde permanentemente entravam e saiam patinadores – solitários, casais, pais e filhos, namorados, idosos de ar tranquilo e sonhador (pensando, recordando, exorcizando o passado, festejando o presente, desejando ainda um futuro melhor).
Recordo com saudade e ainda espanto, os Dan Club, frequentados por estudantes, de estrutura simples e um palco central. Ali, espontaneamente, em total liberdade, todo aquele que desejasse dizer poesia (na sua própria língua), cantar, tocar um instrumento ou integrando uma banda, montar uma cena de teatro ou magia, fosse o que fosse, limitava-se a subir ao palco depois do anterior sair e … «ouçam-me, vejam-me ou ignorem-me». Foi lá que eu ouvi (ou senti como tal) a canção mais linda que ouvi até hoje, na voz de uma universitária israelita. Naqueles clubes a gestão e serviços era feita por estudantes em regime de voluntariado. Não me perguntem como tudo batia certo numa organização assim. Só sei que fui lá várias vezes e nunca vi falhas ou desacatos.
Não esqueci nunca a imagem de um casal já idoso a entrar numa sex shop a menos de trinta metros das ruínas da Gedächtniskirche (hoje, memorial), pegar numa cesta de compras e tranquilamente, sempre conversando, abastecerem-se daquilo que lhes interessava. Nunca assisti a melhor representação duma sexualidade assumida tão naturalmente, num tempo em que tudo era tão limitado e condicionado (apesar do Maio desse ano).
Assim estou eu agora, condicionado pela barreira dos cinco mil caracteres, que me impede de verter aqui outras recordações e outras particularidades da Berlim de então.
Esta crónica foi escrita porque se comemoraram no passado dia 9 de Novembro os 20 anos da queda dessa vergonha que se chamava Muro de Berlim e os alemães chamavam de «mauer». Foram precisos 27 anos de vergonha, 200 mortes e muita mudança política, para o muro ser destruído. Em 1989, quando a notícia chegou a mim era já noite. Telefonei para Koblenz para o colega e amigo Bardua a dar-lhe o abraço que não podia, mas gostaria, de lhe dar pessoalmente. Apanhei-o de saída para se juntar aos amigos e à multidão junto à confluência dos rios, festejando e chorando de alegria. Telefonou-me muito tarde quando regressou a casa a contar-me da festa e durante algum tempo as nossas lágrimas de alegria e emoção encontraram-se.
Do muro restam alguns blocos pintados, para que a memória se mantenha, o checkpoint Charlie e em Friedrichstrasse o Museum Haus am Checkpoint Charlie.
A unificação da Alemanha ainda esperou quase um ano, mas fez-se. A liberdade mais uma vez venceu, apesar de alguns alemães ainda não se terem unificado totalmente nas suas cabeças.
E chegou o dia de regressar a Hamburgo que era um dos terminais aéreos dos corredores que ligavam Berlim à Alemanha Ocidental. O aeroporto de Tempelhof (inaugurado em 1923) e que salvou Berlim de morrer à fome quando do bloqueio soviético, fez-me lembrar a arquitectura portuguesa dos anos 40. Funcionou quase até agora (Outubro de 2008) tendo sido desactivado. Mantêm-se o Tegel e o Schönefeld, que serão substituídos a partir de 2011 pelo moderníssimo Berlin-Brandenburg que aproveita as pistas do Schonefeld e que será suficiente para o tráfego aéreo de Berlim do futuro.
Pode dizer-se que Tempelhof cumpriu a sua missão, como no dia em que nele embarquei me permitiu cumprir a minha de regressar a Hamburgo a tempo de apanhar o Nord Atlas para Alverca.
Já não a cumpri agora, pois acabei por transgredir o limite imposto e quase nada disse sobre o «Mauer».
Pode ser que volte a falar um dia da Alemanha desse tempo.
Crónica a publicar no próximo número da Revista do ACMP
1 comentário:
Muito bom dia,CARO DOUTOR
Encantado,e admirado,com o seu poder narrativo.Tinha 33 anos.
Bem cedo começou a conhecer mundo,demoradamente,por dentro.
Quanto a esse Muro,ainda bem que ele desabou. Poderia ter servido de exemplo para mais desabamentos. Infelizmente,outros se levantaram,e outros se mantêm,não se sabe até quando.
Estou quase em crer que gostamos deles.Começaram bem cedo,com as fronteiras,que tantas são,e não só entre países.
Enfim,DOUTOR,temos de ter paciência,e esperança em dias melhores.
Muito boa saúde,e muito obrigado pela bela narração.
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