quarta-feira, janeiro 27, 2010

o vinho e o mosto - um exercício de intertextualidade 27


99.
Há momentos em que tudo cansa, até o que nos repousaria. O que nos cansa porque nos cansa; o que nos repousaria porque a ideia de o obter nos cansa. Há abatimentos da alma abaixo de toda a angústia e de toda a dor; creio que os não conhecem senão os que se furtam às angústias e às dores humanas, e têm diplomacia consigo mesmos para se esquivar ao próprio tédio. Reduzindo-se, assim, a seres couraçados contra o mundo, não admira que, em certa altura da sua consciência de si-mesmos, lhes pese de repente o vulto inteiro da couraça, e a vida lhes seja uma angústia às avessas, uma dor perdida. (…)
Bernardo Soares, Livro do Desassossego


Posso dizer que são frequentes, em mim, momentos em que tudo me cansa – estar onde estou, pensar no que precisava pensar naquele momento, fazer um telefonema, assentar uma nota, buscar um papel ou um livro, colocar o CD com a música que me apetecia ouvir, vestir um casaco porque sinto frio. Cansa-me o esforço físico tanto quanto o psíquico. Nesses momentos tudo me cansaria ou seria um sacrifício, se por qualquer factor impensável eu resolvesse passar à acção.
Contudo, é tal o treino de sair desses momentos frequentes, que - não sei com que esforço ou origem da força – me vejo rapidamente envolvido pelo meu escudo invisível e protector deste cansaço letal, que altera toda a minha maneira de ser.
Diria, contudo, que essa força e essa acção, me vêm paradoxalmente da minha preguiça. E será esta que, impedindo-me de me entregar ao cansaço, me liberta do seu peso e do seu jugo. Cansaço, angústia, dores, passam a um estado aparentemente inactivo (já que continuam lá, mas em estado de quase ausência), porque a minha preguiça terá ditado que naquele momento, não estou para isso, sendo o isso tudo que exigiria esforço, cansaço, decisão.
O pior é ter a consciência que esta aparente vitória, não é mais do que o seu contrário. É certo que consegui que o cansaço não me estragasse o dia, mas foi mais uma pedra posta no muro do adiar de problemas, de resoluções, do sentir as emoções, do inadiável e com ela afastar-me cada vez mais da resolução de problemas e aproximar-me cada vez mais desse muro que, um dia destes vai cair sobre mim.

CVR

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