Aproveito o magnífico texto publicado no Jornal de Letras de 19 de Setembro de 2012, pelo escritor e músico de igual qualidade Valter Hugo Mãe, para desejar a todos os professores um Bom e Feliz Natal. Já não posso ser tão afirmativo no meu desejo de um feliz ano de 2013, pois nada aponta nesse sentido e o Gaspar seguramente não vai deixar. A menos que, como escreveu José Gil, seja tempo de tomarmos em mãos o nosso destino e a nossa felicidade.
Os professores
«Achei por muito tempo que
ia ser professor. Tinha pensado em livros a vida inteira, era-me imperiosa a
dedicação a aprender e não guardava dúvidas acerca da importância de ensinar.
Lembrava-me de alguns professores como se fossem família ou amores proibidos.
Tive uma professora tão bonita e simpática que me serviu de padrão de
felicidade absoluta ao menos entre os meus treze e os quinze anos de idade. A
escola, como mundo completo, podia ser esse lugar perfeito.
Ver mais de liberdade
intelectual, de liberdade superior, onde cada indivíduo se vota a encontrar o
seu mais genuíno, honesto, caminho. Os professores são quem ainda pode, por
delicado e precioso ofício, tornar-se o caminho das pedras na porcaria de mundo
em que o mundo se tem vindo a tornar. Nunca tive exatamente de ensinar ninguém.
Orientei uns cursos breves, a muito custo, e tento explicar umas clarividências
ao cão que tenho há umas semanas. Sinto-me sempre mais afetivo do que efetivo
na passagem do testemunho. Quero muito que o Freud, o meu cão, entenda que
estabeleço regras para que tenhamos uma vida melhor, mas não suporto a tristeza
dele quando lhe ralho ou o fecho meia hora na marquise. Sei perfeitamente que
não tenho pedagogia, não estudei didática, não sou senão um tipo intuitivo e
atabalhoado. Mas sei, e disso não tenho dúvida, que há quem saiba transmitir
conhecimentos e que transmitir conhecimentos é como criar de novo aquele que os
recebe. Os alunos nascem diante dos professores, uma e outra vez. Surgem de
dentro de si mesmos a partir do entusiasmo e das palavras dos professores que
os transformam em melhores versões. Quantas vezes me senti outro depois de uma
aula brilhante. Punha-me a caminho de casa como se tivesse crescido um palmo
inteiro durante cinquenta minutos. Como se fosse muito mais gente. Cheio de um
orgulho comovido por haver tantos assuntos incríveis para se discutir e por
merecer que alguém os discutisse comigo. Houve um dia, numa aula de história do
sétimo ano, em que falámos das estátuas da Roma antiga. Respondi à professora,
uma gorduchinha toda contente e que me deixava contente também, que eram os
olhos que induziam a sensação de vida às figuras de pedra. A senhora regozijou.
Disse que eu estava muito certo. Iluminei-me todo, não por ter sido o mais
rápido a descortinar aquela solução, mas porque tínhamos visto imagens das
estátuas mais deslumbrantes do mundo e eu estava esmagado de beleza. Quando me
elogiou a resposta, a minha professora contente apenas me premiou a maravilha que
era, na verdade, a capacidade de induzir maravilha que ela própria tinha.
Estávamos, naquela sala de aula, ao menos nós os dois, felizes. Profundamente
felizes. Talvez estas coisas só tenham uma importância nostálgica do tempo da
meninice, mas é verdade que quando estive em Florença me doíam os olhos diante
das estátuas que vira em reproduções no sétimo ano da escola. E o meu coração
galopava como se estivesse a cumprir uma sedução antiga, um amor que começara
muito antigamente, se não inteiramente criado por uma professora, sem dúvida
que potenciado e acarinhado por uma professora. Todo o amor que nos oferecem ou
potenciam é a mais preciosa dádiva possível. Dá -me isto agora porque me ando a
convencer de que temos um governo que odeia o seu próprio povo. E porque me
parece que perseguir e tomar os professores como má gente é destruir a nossa
própria casa. Os professores são extensões óbvias dos pais, dos encarregados
pela educação de algum miúdo, e massacrá-los é como pedir que não sejam capazes
de cuidar da maravilha que é a meninice dos nossos miúdos. É como pedir que
abdiquem de melhorar os nossos miúdos, que é pior do que nos arrancarem telhas
da casa, é pior do que perder a casa, é pior do que comer apenas sopa todos os
dias. Estragar os nossos miúdos é o fim do mundo. Estragar os professores, e as
escolas, que são fundamentais para melhorarem os nossos miúdos, é o fim do
mundo. Nas escolas reside a esperança toda de que, um dia, o mundo seja um
condomínio de gente bem formada, apaziguada com a sua condição mortal mas
esforçada para se transcender no alcance da felicidade. E a felicidade, disso
já sabemos todos, não é individual. É obrigatoriamente uma conquista para um
coletivo. Porque sozinhos por natureza andam os destituídos de afeto. As
escolas não podem ser transformadas em lugares de guerra. Os professores não
podem ser reduzidos a burocratas e não são elásticos. Não é indiferente ensinar
vinte ou trinta pessoas ao mesmo tempo. Os alunos não podem abdicar da
maravilha nem do entusiasmo do conhecimento. E um país que forma os seus
cidadãos e depois os exporta sem piedade e por qualquer preço é um país que
enlouqueceu. Um país que não se ocupa com a delicada tarefa de educar, não
serve para nada. Está a suicidar-se. Odeia e odeia-se».
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