Por uma razão inadiável e muito a contra gosto, entrei hoje numa instituição bancária, para tratar de um assunto suficientemente importante para me obrigar a entrar. São locais que não gosto de frequentar, embora nos últimos tempos alguma coisa tenha melhorado, desde a introdução da figura do gestor de conta, às máquinas automáticas que executam algumas tarefas e até ao acesso ao Banco via Internet que nos permite no conforto dos nossos escritórios resolver algumas operações, obter algumas informações e dar algumas ordens. Mas, há sempre qualquer coisa que foge a esta significativa melhoria da actividade bancária e que um dia nos obriga a visitar as suas instalações, sobretudo, como no meu caso de hoje, quando não se trata do «nosso» banco.A Agência bancária a que hoje tive de ir não pertencia, de facto, ao «meu» Banco, razão porque não tinha o «meu» gestor de conta e me vi obrigado a recorrer ao balcão de atendimento público. Uma funcionária a atender e vários clientes em espera. Pensei – vou primeiro tomar uma bica e volto depois. Repensei – para quê, se a cena se vai repetir? Fiquei. E ainda bem que fiquei pois se o não tivesse feito não tinha seguramente assunto para esta crónica, tal o vazio que ultimamente se instalou na minha cabeça, numa tentativa subconsciente de não pensar, como quem faz que esquece, para não sofrer. Logo a seguir à parte do balcão de atendimento onde eu me estacionei o meu corpo para uma longa espera anunciada, existem duas pequenas secretárias, mal resguardadas por dois biombos, onde numa delas, um antipático, frio e soberbo funcionário bancário fingia exercer o seu papel, atendendo, ou não atendendo, um cliente sentado à sua frente.Este pequeno espaço onde a cena se vai passar, era encimado por uma tabuleta que dizia – Crédito Pessoal. O cliente aparentava uma idade próxima dos 70 anos, era aparentemente calmo, um ar quase domesticado. Apesar disso e talvez porque tenha sentido uma vez mais o aguilhão da injustiça e da discriminação, falava num tom um pouco acima daquele que seria de esperar do seu ar comportado. Foi por isso que eu pude ouvir parte da conversa que entre os dois se estabeleceu, a parte bastante para me permitir agora escrever sobre ela. Da troca de palavras que consegui ouvir, deu para perceber, claramente, que a «política» bancária impõe um limite temporal à concessão de crédito pessoal e impõe que este não possa ser concedido a quem tenha 70 anos ou mais, evidentemente. O cliente argumentava que a necessidade daquele crédito que reclamava era transitória, por muito pouco tempo e que, felizmente, tinha bens materiais suficientes para poder encarar o seu futuro com tranquilidade e ainda uma pensão de reforma que mais de 80% dos portugueses gostariam de ter. E afirmava ainda que podia, tranquilamente vender um dos seus vários apartamentos e realizar com essa venda uma importância quase obscena, absolutamente escandalosa e desajustada ao real valor, dada a especulação imobiliária da zona onde eles se situavam.De nada lhe serviu argumentar. De nada serviu tentar explicar que se estava ali a tentar um crédito pessoal de uma verba verdadeiramente modesta e insignificante, era apenas para não ter que optar por outras soluções mais drásticas, quando se tratava apenas de resolver um pequeno problema monetário ocasional. Toda a sua argumentação embatia contra a rocha firme e gélida do burocrata bancário que desconhecia totalmente o que era ser afável, atencioso, delicado, compreensivo e muito menos conhecia o valor das palavras quando elas podem ser salvadoras e tranquilizadoras de pessoas em crise. O cliente falou ainda na hipótese última de dar um dos seus imóveis como garantia bancária. O estúpido e inapto funcionário, que qualquer patrão atento desligaria rapidamente daquele tipo de trabalho, se não de todo, teve um instantâneo impulso humano e disse que essa solução poderia ser, mas que a sua concretização iria demorar pelo menos dois meses e seria concedido o crédito por escasso tempo, os meses que faltavam ao cliente para completar os 70 anos. Mas o cliente precisava de ajuda imediata e não passados dois meses. E como última esperança invocou ainda a sua condição de cliente antigo daquele banco e a excelente pensão de reforma que mensalmente era ali depositada na sua conta. O rochedo continuou imperturbável, ainda com maior enfado. Nem um sorriso, mas exibindo uma máscara afivelada que lhe dava uma expressão desagradável de soberba, de senhor de reinos inatingíveis por comuns mortais. Senhor do mundo, com todas as chaves na mão. Mas, curiosamente, um senhor do mundo que tinha sido ferido pela inveja, quando o cliente aflito lhe tinha atirado com o valor de um só dos seus apartamentos. Quando tal ouviu, o senhor do mundo baqueou um pouco, pensando que senhor era afinal ele, que nunca viria a ter tal importância?Não interessa o resto da conversa. Interessa apenas que o cliente já não tinha idade para ter direito a um crédito pessoal por parte do «seu» banco de toda a vida e que sendo assim, nem direito tinha, em boa verdade, a estar sentado naquela cadeira, daquele modesto espaço por cima do qual se lia numa tabuleta – crédito pessoal. Foi assim que tendo entrado eu a contra gosto naquela instituição bancária, me vi contra vontade a dar corda aos meus neurónios, subconscientemente parados por algum tempo, em tempo de defesa, para não sofrerem demasiado com os factos que todos os dias sem excepção tinha de encarar e tentar compreender.A última frase que eu ouvira ao aflito e desprotegido cliente e que agora dá título a esta crónica, trouxe-me rapidamente à memória outras situações igualmente indignas da espécie humana e do sentido da vida. Que dizer ou como classificar a política inglesa, da polida e fria Albion, que proíbe, ou não aconselha (o que é o mesmo), que se façam determinadas intervenções cirúrgicas em pessoas de idade por ser o mesmo que «deitar dinheiro à rua»? Que dificulta o acesso dos velhos a drogas dispendiosas, a tratamentos prolongados, até à fisioterapia? Já não se internam idosos com determinadas patologias nos Hospitais, pois estes devem estar reservados para as forças produtivas! Os velhos porque não morrem em casa? Ou nos Lares de Idosos, que é para isso que servem? perguntam muitas esclarecidas mentes, não muito esclarecidas contudo, ou tão tão esclarecidas, que ainda não perceberam que se estão a condenar, por antecipação, a si próprios. Maldito cifrão, maldito dinheiro, maldita economia, malditos senhores poderosos deste pobre mundo, tão tão pobre, que até se deixa governar por vós e à vossa ordem. Por mim, que me sinto jovem e por isso sou realmente jovem, associo-me com revolta ao sentir do aflito cliente desta crónica e grito como ele – desculpem se ainda estou vivo!
Publicado no n.º 163 da Revista do AutoClube Médico Português (Abril/Junho de 2003) e neste blog em 01NOV05.
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