De facto, o mundo está perigoso. Quando supomos que já vimos tudo, já assistimos a tudo e já mais nada pode acontecer que nos surpreenda, nos inquiete ou nos assuste, eis que logo algo sucede que nos põe a pensar, que nos obriga à convocação imediata de todo o nosso conhecimento, à consulta rápida dos nossos ficheiros mentais organizados, numa tentativa sincera e esperançada de assim podermos entender, compreender essa última coisa, esse último acontecimento que nos desinquietou.
Não estou a falar do Iraque e do muito que lá acontece todos os dias, nem sequer da primeira baixa de militares portugueses em missões internacionais. Estou apenas a querer referir-me e a tentar perceber o que se tem passado nas noites francesas das últimas semanas.
Tentar perceber, disse bem. Já que, cada vez mais, se mostra difícil chegarmos a certezas, tendo que nos ficar pelas maiores probabilidades, podendo estas, temos que o admitir, corresponderem realmente a certezas. Quero dizer – as certezas de hoje não se podem assumir ou afirmar como tais, mesmo quando chegamos a elas, mas lhes chamamos qualquer outra coisa. O mundo está, de facto, perigoso. Mesmo quando pensamos.
Se há coisas que nos parecem evidentes a todos nós, sobressaindo de entre elas o sentimento de exclusão social, ponto de partida e justificativo para as acções de violência a que assistimos todos os dias, outras há, ou haverá, que sendo menos aparentes, terão o mesmo peso determinante no passar à acção.
Há um outro factor que se impõe analisar que é a relatividade das coisas. Foi voz corrente na boca dos repórteres televisivos portugueses que têm acompanhado as notícias da violência nos subúrbios de Paris, o espanto por eles referido, deles e daqueles que entrevistavam, da aparente falta de razão dos revoltados (já que de revolta se trata) quando se queixam de exclusão e de viverem em guetos, quando é certo que eles vivem em bairros, qualquer deles melhor que o melhor bairro português existente nos subúrbios ou nos dormitórios, como lhe chamamos, melhores até que muitos bairros que albergam outras classes sociais.
Acompanha tudo isto, um cortejo infinito de outras razões, que passam pela falta de emprego, pela falta de motivação, pelo isolamento, pela ausência da ideia de futuro, pelas drogas, pela ausência da célula familiar, pela falta de referências, pela raiva contida, sob pressão, que espreita apenas o apitar da libertação, como a água fervente em panela de pressão. Tudo está aparentemente calmo e basta uma desastrada palavra de um desastrado ministro ambicioso e racista, para a pressão se soltar e a violência surgir.
Como se manifesta essa violência? Contra o ministro de palavra desastrada ou contra não se sabe o quê? Parece que, apenas, contra não se sabe o quê. Os milhares de carros incendiados eram propriedade de quem? As montras partidas a quem pertenciam? Quem eram os seus donos tão odiados? Os tiros disparados ao acaso, sem alvo determinado, até sobre pessoas em cadeira de rodas, foram disparados porquê e contra quem?
Parece poder concluir-se que não havia alvo definido. E razão definida, havia?
Também se percebeu que bastou a primeira noite de violência para esta alastrar a outros bairros, outros subúrbios, outros países, embora os noticiários tudo fizessem para que não se pudessem estabelecer associações ou ligações de umas a outras.
Pode perguntar-se porque é que a violência só se manifesta de noite. A violência, o ódio, são assim tão controláveis por quem o sente, por quem a pratica? Será que eles saem de casa e dizem uns para os outros – vamos a isto; ao amanhecer, tudo em casa …Mas se esta violência, esta revolta, tem ponto de partida na exclusão social, temo que um dia destes nova violência surja, não sei com que forma. Ela não virá de novas etnias, de outro sexo, mas com uma violência de sinal contrário, porque exercida sobre os já de si excluídos.
Refiro-me à exclusão social dos idosos, para não dizer dos velhos, como é de uso dizer-se.
Os primeiros estudos sobre este novo fenómeno (?) que dá pelo nome de «agism» nos países anglosaxónicos e que entre nós parece ter sido adaptado para «idadismo», foram realizados nos E.U.A.. Esses estudos incidem sobre pessoas a partir dos 70 anos de idade e demonstram que é bem real a discriminação de pessoas com base na idade e que sobre elas se emitem opiniões pouco abonatórias. Os idosos são definidos como «incompetentes e menos atractivos, menos inteligentes, menos sexuados e menos produtivos». Menos do que quem? Do que quem os investiga ou dos investigados enquanto jovens?
Os preconceitos e a discriminação são já de tal monta que de pouco serve haver quem, pelo contrário, os considera «sábios, calmos, maduros ou experientes».
Como se depreende de um estudo realizado em Portugal por Sibila Marques, o que prevalece é a ideia e a opinião de que os idosos são «esquecidos, doentes, chatos, incapazes, confusos, lentos e dependentes».
Não será esta discriminação ainda pior, uma vez que ninguém nasce velho e não estão em causa as clássicas fontes de discriminação – a raça e o sexo? Não se trata de saber se é pior ou não, pois qualquer delas é discriminação e como tal condenável e injusta.
Ah, jovens! Nem sabem em que caminhos se estão a meter. O caminho faz-se andando. O que vos esperará a vós depois dos 70 anos? E que violência vos estará reservada qualquer dia, antes de lá chegarem? Não será uma violência cega.
Mas poderá ser sábia, madura, experiente …
Publicado no n.º 173 da Revista do Auto Clube Médico Português (Outubro/Dezembro de 2005) e neste blog em 01 DEZ05, sem imagens.
Publicado no n.º 173 da Revista do Auto Clube Médico Português (Outubro/Dezembro de 2005) e neste blog em 01 DEZ05, sem imagens.
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