Li há dias um trabalho de divulgação, da autoria de um amigo meu (Amândio Madeira Lopes), intitulado «O que é a vida? O que vemos e pensamos dela», que me deixou a pensar (exactamente o que o autor pretendia de quem o lesse), muito especialmente sobre algumas partes dele.Ali se lê, a certa altura, que «A evolução, teoria assente em fortes apoios experimentais – mas teoria, não facto – seria uma característica da vida, no seu tema de ordem a partir da ordem. As reformulações que tem sofrido ultimamente – por via de sequência genómica (DNA) e proteómica (proteínas) em centena e meia de organismos, e sua generalização a outros – conduziram a uma teia filogenética, em vez de árvore. Além de mutação e de duplicação (na evolução vertical, de pais para filhos, com geração de espécies novas), parece ter cabimento pensarmos ainda em variadas transferências génicas horizontais (entre indivíduos de espécies diferentes). Deste modo, todos os seres vivos actualmente conhecidos seriam quimeras. É que, mesmo nos seres arrumados em cada um dos dois domínios considerados menos complexos – arquebactérias e eubactérias – encontraram-se porções significativas de DNA, geralmente consideradas como características do outro domínio. Os eucariontes (animais, plantas, fungos, algas, protozoários) teriam genomas provenientes de até nove bactérias, ou talvez mesmo mais».
E mais à frente «Habituámo-nos a pensar na vida como propriedade exclusiva dos humanos. Com algum esforço, alargámos o conceito a outros animais e, depois, às plantas. Mais dificilmente, fomos levados a considerar os microrganismos: mas é entre eles que se tem encontrado a maior diversidade de vida. Será que também devemos considerar como vida cada uma das diversas fases do ciclo de vida dum organismo? Por exemplo, será mais vivo o basideocarpo dum cogumelo do género Agaricus do que cada um dos basideósporos gerados, por meiose, num basídeo do seu chapéu? Se desse basideósporo se não construísse uma hifa monocariótica que fundindo-se com outra desse uma hifa dicariótica, nunca esta chegaria a sofrer diferenciação e compactação, reconstituindo o basideocarpo. De todas estas fases, qual é o organismo? Talvez o que gostamos de ter no prato: o basideocarpo! …».
Sucedeu que li este artigo no comboio que me trazia de volta ao meu paraíso terráqueo de todos os dias e, enquanto passeava no jardim e meditava sobre o que lera, me encontrei a olhar fixamente para uma estranha planta, um estranho ser vivo, que vive há vários anos no meu jardim, dependurado numa corda que o suspende do ramo de uma romãzeira. Este estranho ser, dá pelo nome de aranto, do latim Aranthus, palavra que nenhum dos dicionários que possuo contempla. A estranheza de tal ser, de tal planta, está em ter raízes aéreas, isto é, ter raízes e não estar ligada a nada. Dela se pode dizer que vive do ar.
E é exactamente daí que ela vive, não do ar, em sentido geral, mas daquilo que por lá existe, melhor dizendo daquelas coisas essenciais à vida, de que o ar está cheio. Falo, evidentemente do oxigénio, do carbono (vindo do dióxido de carbono ou de compostos orgânicos), do azoto, do hidrogénio, de alguns sais minerais. Disto, viverá o aranto. Do ar.
Foi aí que me ocorreu que nas teorias evolutivas actuais, os cientistas terão que se debruçar sobre estes novos fenómenos da vida e reparar que os humanos, pelo menos a maioria dos portugueses, se estão a transformar em arantos, pois à imagem deles, estão, cada vez mais, a viver do ar. E há muito tempo já, grande parte deles, sem viverem do ar, viviam já no ar, de cabeça no ar, como o povo diz.Em todo o lado, se ouve perguntar – mas, de que é que ele vive, afinal? Do ar, penso eu – é a resposta habitual.
E, do mesmo modo, à semelhança dos arantos, os homens (e, neste caso, não só os portugueses) apesar de terem raízes, parece não se servirem delas e encontram-se desligados de tudo aquilo a que as raízes antigamente os ligavam.
Mas, enquanto os arantos, tal como os conhecemos, sempre foram assim, plantas desligadas, vivendo do que cai do céu, os homens só agora iniciam esta mudança radical de comportamento face à vida.
E tal como escreve o meu amigo, temos que ter cuidado com a forma como escrevemos, com as palavras que empregámos para tratar de assuntos de tanta importância. Como ele diz «somos, muitas vezes, tentados a pensar que já sabemos tudo o que há para saber, sendo disto exemplo a expressão corrente – dantes pensava-se … mas sabe-se agora. Em 25 de Abril de 2003, comemorou-se o cinquentenário da formulação da hipótese da hélice dupla para a estrutura do DNA e hoje temos já formuladas hipóteses, apoiadas experimentalmente, para mais de 600 estruturas de DNA. No entanto, a informação observacional relativa ao modelo da estrutura do DNA em hélice dupla está ainda limitada a sequências ricas em citosina e guanina, e a muito poucas sequências (apenas duas) com pares de adenina e timina». É por isto tudo que eu me interrogo, para além do humor crítico que pretendi, sem sucesso, certamente, introduzir neste texto. Será que o nosso conceito de vida vai mudar? O que é a vida, afinal? O que pensamos dela ou o que pensamos nós que seja viver? Que olhar temos para ela? Preferimo-nos com raízes, bem ligados ao passado, à família, à estrutura moral, aos costumes, à verdade, ao bem, à beleza, ao conhecimento ou, pelo contrário, o que pretendemos da vida é que ela seja fácil, ligeira, sem preconceitos nem ditames, livre, guiando-se apenas pelo conceito de liberdade de cada um, desligada de raízes e grilhetas morais?
Não cometerei o erro de que meu amigo fala no seu artigo. Não direi «dantes pensava-se», nem tão pouco «mas sabe-se agora», pois quero crer que sei que o mundo é feito de mudanças e a investigação em geral, apesar dos avanços tecnológicos quase inacreditáveis que possui, está ainda longe de chegar à verdade, de chegar ao fim de tudo, que é forma de dizer, ao princípio de tudo.
Não é verdade que continuamos a descobrir planetas?
Mas, eu queria ter ficado apenas pela tentativa de humor fácil, brincando com o natural viver do ar dos arantos e o viver forçado dos portugueses, que em vez do bitoque com ovo a cavalo, se vê forçado a viver do ar do tempo …, menos aqueles, evidentemente, que continuam teimosamente a poder ter e comer o basideocarpo, no prato!
O que é estranho, nisto tudo, é que as praias estão cheias, os aviões e hoteis overbooking e cresceu exponencialmente a venda de roadsters descapotáveis vendidos como cerejas a preços exorbitantes. Não é estranho?
Será que é para estar mais perto do ar de que os portugueses vivem?Publicado no n.º 172 da Revista do Auto Clube Médico Português (Julho/Setembro de 2005) e neste blog em 05NOV05, sem imgens.
Sem comentários:
Enviar um comentário