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Em Junho de 1853, podia ler-se no Escholiaste Médico, prestigiado Jornal de Medicina Militar, considerado por alguns a melhor publicação médica portuguesa da época, que «o Governo apresentou às Câmaras a proposta de lei, que de há muito se acha feita, para organizar a classe dos pharmacêuticos militares d’aquelle modo que a justiça pede, e que nós todos desejâmos». Eram redactores do Escholiaste médico, nessa época e entre outros, os médicos militares António Gomes do Valle e José António Marques, que se encontravam entre aqueles que tinham pelos farmacêuticos grande estima e consideração, ao contrário de outros que, por um estranho e incompreensível sentimento de superioridade, vindo não se sabe de onde, baseado não se sabe em quê, consideravam a classe farmacêutica uma classe inferior, tal como consideravam a dos cirurgiões e que não viam com bons olhos a integração dos farmacêuticos no Serviço de Saúde Militar.
Apesar de em 1853, ter sido apresentada uma proposta de lei que de há muito se achava feita, como diz o Escholiaste Médico, a verdade é que tiveram que se passar seis anos para que essa proposta de lei saltitasse de Câmara para Câmara e conseguisse finalmente transformar-se em lei, criando um «megaquadro» de cinco farmacêuticos, cinco.
Sendo de prever que a escolha deste número não tenha sido a gozar com farmacêuticos e médicos, ficamos sem razões para compreender tão desajustado número. E não é preciso comparar o número de farmacêuticos militares existentes nos outros Países da Europa e ver a imensa desproporção entre eles e os portugueses, para se poder concluir quanto era ridículo este total de cinco, sobretudo se tivermos em conta que muito antes da criação do Quadro dos Farmacêuticos Militares, já esta classe se encontrava ao serviço e a ser paga pelo Exército e pela Armada, e em número que nada tinha a ver com este famigerado número cinco que longos anos se iria manter até ser ligeiramente alterado.
Por exemplo, no ano de 1814, o Aviso de 29 de Janeiro do Secretário da Guerra Pereira Forjaz e dirigido ao Físico Mor do Exército, José Carlos Barreto, aprova a proposta feita por este em 8 de Dezembro de 1813, para empregar mais farmacêuticos ou Boticários no Exército.
Nesse mesmo despacho é colocado como 1º Boticário do Exército, José Pedro da Costa e Aço e nos diversos Hospitais Militares são colocados Bernardo Cardoso de Carvalho (Hospital do Beato António), Manoel Joaquim Ribeiro de Paiva (Hospital de Santa Clara), Manoel Alves da Mota Garcia (Hospital da Cordoaria), Luiz Roiz da Silva e Costa (Hospital de Mafra), Timóteo Nepomuceno Gomes de Sousa (Hospital de Abrantes), João Baptista Garcia (Hospital de Elvas), Joaquim Maria Torres (Hospital de Coimbra), António José Martins (Hospital do Porto), João Leite Ferreira (Hospital de Almeida), João António Coelho (Hospital de Chaves), José Xavier de Magalhães e Brito (Hospital de Santander), Álvaro Pimentel Teixeira (Hospital de Victória) e António da Costa Araújo (Hospital de Bilbao).
Não é preciso ser muito dotado para as matemáticas para se concluir que, em 1814, estavam ao serviço do Exército 14 Boticários, praticamente o triplo daqueles que o Poder, quarenta e cinco anos depois, considerou necessários e suficientes. Talvez não possamos concluir com ligeireza que o Poder é sistematicamente estúpido e de vistas curtas. O jogo de interesses e a sensibilidade dos políticos, porque mais dirigida para as influências do que para as verdadeiras necessidades, terá conduzido a essa infeliz decisão de 1859. Mas e há sempre um mas, se foi infeliz ao estabelecer o ridículo número de cinco farmacêuticos, foi por outro lado feliz ao decidir estabelecer um Quadro para os Farmacêuticos e a dar-lhes o posto militar correspondente às suas funções.
Boticários ao serviço do Exército e da Armada, sempre houve. Muitas e variadas são as referências que se podem encontrar em documentos existentes no Arquivo Histórico Militar, Torre do Tombo e Biblioteca Nacional.
Mas antes de entrarmos nos mais remotos tempos em que há notícia de Boticários, deixem-me referir-lhes um facto curioso passado com um dos Boticários do Exército que fez a campanha do Roussillon, João Nepomuceno Pinto, que em 1793 auferia como vencimento 60:000 réis por mês, quantia não desprezível, se comparada com a de outros militares e a quem, por bons serviços prestados, o General Forbes mandou dar em 13 de Abril de 1794, uma gratificação de 60:000 réis. Mas este mesmo General Forbes, tinha mandado descontar-lhe algum tempo antes, em 28 de Janeiro, a importância de 34:720 réis pelo extravio de uma cavalgadura que lhe estava distribuída.
Se fosse hoje, seria que alguém a pagava? Quantos pagam hoje os estragos nos muitos cavalos das viaturas acidentadas e que lhes estão entregues?
Este farmacêutico apenas recebia 40:000 réis, sendo os restantes 20:000 réis levantados pela família na Tesouraria Geral das Tropas, tal como quase 200 anos depois, viria a suceder com a maioria dos militares que faziam a guerra do Ultramar e deixavam na Agência Militar parte dos seus vencimentos.
As Ordens de Serviço 41 e 55 deste ano traziam as instruções sobre os Corpos que iam ser destacados para o Ultramar e diziam que o Batalhão de Infantaria devia ter um Cirurgião Mor, um Cirurgião Ajudante e um Boticário e que este usaria a farda como a dos cirurgiões, mas com a gola verde.
Mas em 17 de Janeiro de 1806, já Sua Alteza Real tinha nomeado Joseph Pedro da Costa e Aço, 1º Boticário dos Hospitais Militares das Províncias do Norte, com um vencimento de 30:000 réis mensais, o que foi comunicado à Tesouraria Geral das Tropas do Norte. Em 1807, já era 1º Boticário do Exército, como se pode ler num ofício do Inspector do Hospital da Estrela dirigido ao Oficial Maior da Secretaria da Guerra, sobre drogas medicinais e num outro dirigido pelo Conde da Barca ao Marquês de Abrantes e em que se ordena que José Pedro da Costa e Aço marche para Elvas, para conferenciarem sobre a Botica do Hospital.
Atente-se neste último ofício que referi, para que sirva como exemplo do cínico paradoxo que sempre foi a relação do Poder com os subordinados. Quando estes fazem falta convocam-se e pergunta-se-lhes como, porquê e quando, mas se não lhes sentem a falta a memória encurta e o esquecimento instala-se.
A primeira notícia que se encontra de um Boticário ao serviço do Exército, data de 16 de Fevereiro de 1644, quando El-Rei D. João IV nomeia Luiz Gomes da Costa, Boticário da Gente da Guerra do Castelo de São Filipe da Ilha Terceira.
Mas esta nomeação cheira mais ao nosso 10 de Junho actual e à Chancelaria das Ordens, do que a uma decisão pensada e resultante da necessidade de criar esse lugar.
Sou levado a pensar isso, porque o Alvará que o nomeia refere que durante a guerra e até à restauração do Castelo, sempre Luiz Gomes da Costa forneceu todos os medicamentos necessários à conservação da saúde da Tropa, sem qualquer dispêndio da Tesouraria da mesma e à exclusiva conta e despesa daquele Boticário, do mesmo modo que sempre prestou serviço sem receber qualquer soldo.
E assim continuou, sempre sem soldo e apenas com a honra de ser Boticário da Gente da Guerra. Sempre sucedeu que aqueles para quem o dinheiro abunda, pensem que os outros possam viver só de honrarias. Felizmente que Luiz Gomes da Costa acumulava, dinheiro, honrarias e parece que honra, que seria o seu maior valor.
Poucos anos mais tarde, talvez porque os Boticários continuavam a fazer falta e não tinham o espírito generoso e desinteressado de Luiz Gomes da Costa, o Poder sentiu a necessidade de normalizar a situação, o que tentou fazer com a publicação da Lei de 11 de Abril de 1661, que se intitulava «Regimento porque se hão-de cobrar os novos direitos que se pagam nas Chancelarias» e em que se pode ler que médicos, cirurgiões e boticários dos Exércitos, ficavam isentos de pagar direitos, porque recebiam ordenados nas Vedorias Gerais do Exército, o que em meu entendimento significa claramente que estes eram considerados ao serviço do Exército e como tal terão sido os primeiros de que há notícia, pese embora eu ter encontrado uma referência respeitante a um António Alves de Vasconcellos, que teria sido também Boticário das Gentes da Guerra, mas que me deixa sérias dúvidas sobre a data em que desempenhou tal cargo, que poderá ter sido 1459 ou 1659, sendo impossível distinguir com segurança se se trata de um 4 ou de um 6, no documento que dele dá notícia.
Por Alvará de 10 de Junho de 1712, é nomeado Ambrósio Rosado, Boticário do Exército, enquanto durar a guerra, com a obrigação de «examinar os medicamentos que da Corte se remeterem e, sendo capazes, com eles andar na Campanha». Este Alvará encontra-se na Biblioteca da Exército, volume 2039 e também na Colecção Pombalina.
E em 1713, foi nomeado Boticário do Hospital do Castelo de S. Jorge, Leonardo da Costa Almeida, o que parece ter coincidido com a separação da Botica deste Hospital, da Botica da Corte, até aí juntas.
Conhecem-se os nomes de mais alguns Boticários que ali trabalharam, como Luiz da Maia Pinto e José Francisco Borralho, este último senhor de grande nomeada e muito respeitado pela sua preparação profissional, mas principalmente por ter introduzido em Portugal o uso da chamada Água de Inglaterra (que outros dizem ter sido introduzida por Fernão Mendes e o inglês Talbot) e que outra coisa não era que um preparado de casca de quina, conhecido também como vinho de quina.
Tenha sido ele o introdutor ou os outros dois já referidos, o certo é que foi José Francisco Borralho quem recebeu as honrarias, tendo sido louvado, recebido uma gratificação de 100:000 réis, que era bastante dinheiro e ainda conseguiu a aprovação da Junta do ProtoMedicato para o uso desse produto.
Sabe-se que a casca de quina já era conhecida desde 1632, em Espanha, para onde os jesuítas a levaram, razão porque passou a ser conhecida como pós dos jesuítas ou pós do Cardeal, referência ao Cardeal de Lugo, chefe dos jesuítas.
E em 1797, foi publicado um Regulamento do Serviço de Saúde que, embora não fale em qualquer quadro de boticários, se refere a eles e pela primeira vez como farmacêuticos e consigna a obrigação do farmacêutico escolher o local para a instalação da botica, o que sem sombra de qualquer dúvida e também sem sombra de pecado, significa que ali se mostrava consideração por uma profissão até aí muito desvalorizada, graças ao choque de duas classes que, não sendo concorrentes, se combatiam e em que uma se deixava subjugar por outra. Ficava assim a que subjugava com todos os louros e todo o poder consequente.
Os médicos desse tempo não tiveram a clarividência de verem que as classes se completavam. Apenas conseguiam pensar que não subjugar, era perder dinheiro e poder.
E se eu posso nesta altura e a esta distância, pedir desculpa por esses colegas, aqui as apresento com toda a sinceridade e não porque esteja na moda fazê-lo, como quando Helmut Kohl pede desculpa aos judeus por ter havido um Hitler e Goerings vários ou o Governo português pede desculpa da Inquisição e dos torresmos que fez.
Não, nada disso. Nós, médicos, fomos estúpidos e há que admiti-lo. E há que lembrar que o dinheiro, nesse tempo e hoje, conferia poder e que foi por isso que tudo isto sucedeu. Colocar o boticário na dependência total do médico, era um acto de poder e de poder ser mais rico. Não sei se me fiz entender.
Nada diferente do que se passa hoje quando assistimos à apresentação de notas de honorários impensáveis, para pagamento de actos médicos que se fazem pelo espelho, mas que, assim engrandecidos por tais números e cifrões, valorizam um acto insignificante e o transformam num grande acto salvador.
E sobre isto mais não digo, não vão alguns colegas, dos tais que assim fazem e que uns séculos antes desprezavam farmacêuticos e cirurgiões, criar uma nova Inquisição. E se outras razões não houvesse, bastava-me odiar e não suportar o calor, sobretudo quando é seco e crepitante. Sou decididamente da geração do ar condicionado, mas não das pessoas condicionadas a ideologias, crenças ou poderes.
O Regulamento de que falámos criou o chamado Dispensatório Geral do Exército, em substituição do Depósito Geral de Medicamentos do Exército. E alguns anos mais tarde, em 1805, novo Alvará manda estabelecer em Lisboa e em Coimbra, Dispensatórios Gerais dos Hospitais Militares, funcionando como depósitos de medicamentos simples e com laboratório próprio para a preparação dos medicamentos compostos.
Mas, mais importante do que isso, era o que lá se determinava sobre as obrigações do farmacêutico do hospital que «deveria fazer digressões botânicas nas estações próprias devendo colher as plantas medicinais conhecidas e que se desenvolvessem à volta do hospital, devendo fazer-se acompanhar dos ajudantes e praticantes que tivesse para assim, e de uma forma prática, os tornar capazes de conhecer as plantas medicinais. E, estabelecia que para além dessa aprendizagem fossem esclarecidos na forma de as colher, secar e conservar».