O filme "Being there" (1979), traduzido entre nós por "Bem-Vindo Mr. Chance", baseado numa novela de Jerzy Kosinski conta-nos a história de um jardineiro que até à morte de seu patrão apenas conhecia o seu pequeno mundo limitado ao jardim da mansão, de onde nunca saíu. Só se afasta do seu trabalho e conhece a realidade quando é posto na rua após a morte do seu patrão. Tudo que conhecia até então era o que via e ouvia na televisão. Sucedeu então que após um pequeno acidente é levado para casa de um importante lobbista político (Melvin Douglas) pela sua mulher, responsável pelo acidente (Shirley MacLaine). A partir daí tudo que ele dizia, embora realmente fosse de um vazio total, dito de forma tão desgarrada, parecia a outros corresponder a uma grande capacidade de raciocínio, a um pensamento filosófico e cultural espantosos e de uma grande profundidade. Daí até presidente dos EUA foi um pulo. Peter Sellers, Shirley MacLaine e Melvin Douglas assinaram grandes interpretações e contribuíram muito para o êxito do filme de Hal Ashby. Em 1994, Robert Zemeckis realizou Forrest Gump, com uma brilhante interpretação de Tom Hanks que nos mostra um personagem que apesar das diferenças nos faz lembrar Mr. Chance.
Mas, por estranho que pareça, não estou a escrever sobre cinema e muito menos sobre estes filmes em especial. Estou a fazê-lo porque a crónica escrita por António Guerreiro na sua coluna «Aopédaletra» no Atual (Expresso de 18 de Junho) me trouxe à memória esse filme de Ashby que me fez rir com gosto no final da década de 70. Mas, a crónica era tudo quanto aqui queria deixar.
«Uma metáfora da doença marcou este ano o discurso do Presidente da República, no 10 de junho, quando disse que acreditava que os portugueses queriam ser curados da doença que afeta Portugal. As suas palavras inscrevem-se numa história das metáforas de má memória. A um Presidente da República não se exige conhecimentos de metaforologia, ainda que neste caso bastasse a intuição para perceber que estava a entrar num terreno perigoso. Mas essa metáfora joga com outra dimensão semântica: ela atribui a Portugal qualidade de um ser biológico. Se quiséssemos procurar um antepassado ilustre para este pensamento (chamemos-lhe assim), poderíamos citar Oswald Spengler, que em 1918 publicou "O Declínio do Ocidente", onde defendia que a civilização ocidental, na sua história, cumpria um ciclo semelhante ao de um organismo: um ciclo "natural" de nascimento, crescimento e morte. Spengler imaginava-se assim a fazer um diagnóstico da civilização ocidental e a detetar os sintomas da sua decrepitude. Semelhante tropismo biológico está presente na metáfora do Presidente. Vendo o país como um organismo vivo, Cavaco Silva vai ao encontro do pensamento mais reacionário do século XX (não apenas representado por Spengler). Faz mais do que isso: imagina-se como um pastor cheio de solicitude e preocupação pelo seu rebanho, vê o exercício da presidência como uma pastorícia e os seus discursos como pastorais. Ele quer a saúde e a salvação do rebanho, quer que a criação do parque aceite voluntariamente tratar-se. A isto poderia chamar-se "biopolítica" em estado bucólico. Mas talvez lhe possamos chamar a "síndrome de Mr. Chance", em homenagem à personagem do filme de Hal Ashby, que chegou a Presidente dos Estados Unidos por fazer metáforas que ninguém entendia».
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