Uma escrita feita em sobressaltos, feita à medida que me sento e tenho papel ou tecla para premir. Uma escrita que é feita de vivências, factos, interrogações, alegrias, dores, obrigações, prazer. Uma escrita de necessidade. Uma escrita para respirar.
Recebi do meu colega e amigo José Dias Egipto esta magnífica Litania para este Natal. Porque gostava muito que ela chegasse a todos, aqui a deixo aos que habitualmente consultam este blog. Que este post seja o início de uma maior divulgação.
Litania para este Natal
A todas as vozes que se calam, mesmo por vergonha ou preconceito, das preces de Natal, mas sentem um impulso de compaixão,
porque vivem o essencial e desprezam a aparência …
A todas as novas e velhas solidões, encandeadas pelas luzes de um progresso que não tem vergonha de as cegar assim,
porque é das trevas que nascerá de novo a luz da solidariedade…
A todos os amordaçados por delitos de opinião, nas prisões deste “novo” mundo, para que as feridas dos seus silêncios sangrem nos sonhos de todos os poderosos,
porque o remorso pode dar frutos abrindo os corações…
A todos os que estenderam braços em abraços, sem preconceitos de raça ou condição social,
porque deles será o futuro, por mais longínquo que pareça…
A todos os que ousaram rir perante a hipocrisia reinante, dando a resposta mais subtil às índoles empedernidas dos donos dos “saberes” e das “verdades”,
porque a felicidade há-de vir vestida de palhaço pobre…
A todas os que nasceram neste ano e que vão sofrer as convulsões dos afectos e das novas desigualdades,
porque carregam em cima dos ombros a tarefa Hercúlea de construir um mundo novo…
A todas as expressões de arte que surgiram nestes tempos baços, frutos dos desalgemados do mundo,
porque só elas podem colorir as almas e os corações desencantados…
A todas as vítimas dos abutres de colarinho branco ou vermelho, que provocaram a crise financeira para poderem comer o resto da carne dos fracos, no banquete do liberalismo económico,
porque será do seu desnecessário sacrifício que poderá nascer uma nova ordem económica …
A todos aqueles que combateram e combatem os velhos preconceitos sem caírem no relativismo radical do laicismo,
porque será nesse meio-termo do bom senso que se poderão criar novos valores…,
A todos os que souberam dar Amor nestes tempos de guerra psicológica e desamparo afectivo,
porque será sempre esse o lugar do encontro fraterno e da salvação da própria Humanidade…
Hoje encontrei esta pérola visual e acústica, um refrescar de imagens e sons que guardo na minha memória, sem ter feito qualquer esforço para isso. Nasci a norte a meia dúzia de quilómetros da Galiza. Nasci numa cidade, mas o que mais ficou foram as raízes. Das referências que encontrei no Youtube, sei apenas que a 'canção' (oração, ritual, cântico, celebração?) se chama "Noite de Solsticio" e é gravada por Sangre Cavallum do álbum Veleno de Teixo. Fiquem com o canto, regalem o olho, soltem a memória e as emoções. Não resisto a deixar um curto texto (poema) que escrevi há muitos anos e que penso ter a ver com tudo isto:
Só as caras do povo me impressionam. Só nelas rugas e marcas são marcas e rugas. E a dor é dor. Cara do povo, cara de gente. Gosto de caras, a preto e branco. Preto no branco.
São 3 minutos e 12 segundos de alegria, prazer, divertimento, admiração, aqueles com que vos deixo nesta magnífica interpretação de Cecília Bartoli da área do fim do 2.º acto - Non piu mesta accanto al fuoco, da Cenerentola ou La bontá in trionfo (Cinderela ou o triunfo da bondade) de Gioachino Rossini , no MET (encenação de 1997). Esta mezzo-soprano não pára de nos cativar com a sua magnífica voz e interpretações singulares, pese embora não me agradar o posicionamento do corpo e as expressões faciais dispensáveis. Tirando isso, é uma grande voz em todo o mundo e o MET sabe disso. A Cinderela é uma ópera cómica (bufa) em 2 actos, com libreto de Jacopo Ferreti, sobre o conto de fadas homónimo de Charles Perrault e foi estreada em 1817. Consta que Rossini terá composto a ópera em apenas 24 dias e que Ferreti terá escrito o libreto em apenas 22 dias.
No passado dia 12 de Dezembro tive a sorte de ter assistido e participado (quase um happening) no magnífico e inesquecível concerto comemorativo dos 40 anos de música e palavras de Pedro Barroso que, naquele exacto dia, comemorava os 40 anos de sua estreia no Zip Zip de nossa memória. Durante este ano, Pedro Barroso apresentou este espectáculo em vários locais do país, desde o Minho aos Açores, terminando em Lisboa e guardou a comemoração exacta dos 40 anos para o Teatro Virgínia de Torres Novas, a escassos quilómetros de sua terra - Riachos. Espectáculo cuidado, com bom acompanhamento musical de Miguel Carreira (acordeão e viola), David Zagalo (teclados e piano), Luís Sá Pessoa (violoncelo), Luís Petisca (guitarra portuguesa e viola), Carlos Dâmaso (viola, bandolim, baixo, flauta e percussões) e as vozes de apoio de Teresa Santos e Marta Jacinta. O teatro estava cheio e participativo e foi bom de ver e ouvir a forma como o público colaborou com o homenageado trauteando as suas canções e as de todos aqueles cantores de Abril que ele quis homenagear, dizendo o nome de mortos e vivos e cantando pequenos trechos de cada um, pequenos na duração, longos nas emoções. Talvez tenha sido este o concerto em que mais me emcionei depois do último do Zeca. Pedro Barroso é uma personalidade, não é só um cantor. É uma personalidade multiforme, estendendo o seu génio pela palavra, pela música, pela pintura, pela intervenção cívica, pelo seu apego à terra e aos valores em que acredita. Pedro Barroso não é um cantor de plástico, formatado. É de carne e osso. Autêntico.
Em Outubro passado foi apresentado o novo CD de Cecilia Bartoli intitulado Sacrificium e que é uma homenagem aos famosos castrati, dezenas de milhares de jovens sacrificados pela castração a perderem algumas características de homem e adquirirem algumas de mulher, especialmente a sua capacidade de fonação que lhes permitia autênticas acrobacias vocais, com características de soprano, mezzo soprano ou contralto. Parece que a origem dos castrati terá estado na Igreja, para se obterem vozes com características únicas para enquadrarem os coros das igrejas. A beleza vocal era tal que o movimento se alargou às cortes e aos grandes teatros. Parece provado que os primeiros castrati terão aparecido ainda no século XV e, embora em 1870 a Itália tenha proibido tal prática, ainda há notícias de alguns no início do século XX. Em Itália o movimento teve um grande desenvolvimento, especialmente na região de Nápoles. Era frequente haver nas barbearias cartazes dizendo «Qui si castrano ragazzi», o que não nos espanta se nos lembrarmos que estávamos em tempos em que a cirurgia era feita por barbeiros cirurgiões. O mais famoso de todos os castrati foi Carlo Broschi, conhecido como Farinelli (representado ao centro do quadro pintado por Jacopo Amigoni que se representou a si próprio à esquerda de Farinelli, não esquecendo a Igreja e a aristocracia). Em Portugal também houve castrati, a partir do reinado de D. João V, italianos como Floriano Flori (que chegou a Lisboa em 1719), Giziello, Cafarelli ou Carlo Reina e portugueses oriundos de várias regiões do país, mas que nunca terão tido grande notoriedade. Deliciem-se com a magnífica voz de Cecilia Bartoli, cantando a ária «Cadró, ma qual si mira» de Francesco Araia, acompanhada pelo «Il Giardino Armonico» e ainda em uma curta mostra do Concerto em Caserta.
Ao ler há dias o editorial de André Macedo no jornal i, achei que ele tinha tocado bem no sismo que assola o país nesta legislatura, caracterizado por um acerto de contas entre partidos e figuras de proa, em que esta proa de alguns visa mais o afundamento do navio Portugal, do que ajudar a levá-lo (como se pede e devem fazer) a bom porto. Resolvi pois, transcrever aqui a parte final desse Editorial, por me parecer ser bem ilustrativo da situação. Só agora o transcrevo porque tive a esperança que nestes dias que passaram houvesse sinais de mudança. Enganei-me. Por isso, aqui vai hoje. «Forçar leis e modificações com impacto social e orçamental à margem do que pretende o primeiro-ministro é não apenas batota, é um risco enorme para o país. Se em Portugal os governos já são acometidos de vários ataques de esquizofrenia - defendem tudo e o seu contrário -, se lhe juntarmos o coro de vozes dos deputados e a suas influenciáveis e pueris vontades, não teremos governo nenhum, mas um desgoverno ainda mais perigoso, lunático e analfabeto. Chumbar as leis propostas pelo governo se forem consideradas negativas, sim, esse é um dever da oposição. Mas serão todas as leis más, como parece hoje? Todas erradas e estúpidas? Passámos de um país absolutamente centrado nos humores e vontades do ego do primeiro-ministro, para outro onde o centro do poder tresmalhou-se pelos corredores lustrosos da Assembleia da República. O poder não caiu na rua, caiu nas bancadas parlamentares, onde, apesar da aparência, a vontade de reformar o país passa demasiadas vezes para último plano, muito atrás das vinganças e das estratégias para substituir o poder logo ao virar da esquina. Há muitos anos que não se via tremenda irresponsabilidade política. Sócrates talvez mereça O país, não merece. Cavaco Silva, onde andas?»
Conheci Berlim em Outubro/Novembro de 1968. Encontrava-me em Hamburgo onde tinha ido acompanhar militares amputados na guerra colonial, para construção e adaptação de próteses e reeducação da funcionalidade, no Hospital Militar de Hamburgo. Já naquele tempo os alemães tinham tido a ideia sensata de construir hospitais militares unificados onde trabalhassem médicos dos três ramos das Forças Armadas e fossem tratados todos os militares, solução que qualquer pessoa sensata considerará a mais indicada, por permitir melhor atendimento, menores gastos e melhor aproveitamento do sofisticado e caríssimo equipamento hospitalar. No «rectângulo» e apesar da guerra colonial, continuávamos a dar-nos ao luxo de sustentar três hospitais, cada Ramo com sua quinta, o que só se podia compreender por sermos o país rico que sempre fomos e somos (!), pois ainda hoje e apesar de já ter sido aprovada pela Defesa, a unificação não passou ainda do papel e quando se fizer (veremos), vai começar apenas com o serviço de urgência. Mas é sobre Berlim que eu vou escrever, pelo que regresso rapidamente a Hamburgo para contar que após a entrega dos militares deficientes no Hospital devíamos apresentar-nos no Consulado de Portugal, entidade que providenciaria o nosso regresso. Este processava-se normalmente no primeiro avião Nord Atlas da Luftwaffe a voar com destino a Alverca, para aqui fazer a revisão ou manutenção. Era nesse tempo Cônsul em Hamburgo FGV, com quem fiz amizade e que, quase de forma natural, conseguia que eu regressasse apenas no segundo voo a haver o que, em termos práticos, se traduzia numa estadia de cerca de quinze dias em vez dos habituais cinco ou seis. Este natural atraso no regresso, permitiu-me viajar um pouco pela Alemanha, Dinamarca, França, Inglaterra e Suécia, que me lembre. Numa dessas minhas estadias prolongadas, conheci um funcionário (casado com uma alemã) do Consulado em Berlim, onde o cônsul era honorário e alemão. Durante a nossa conversa perguntou-me - conhece Berlim? Não, não conheço. Quer vir amanhã comigo e minha mulher? Vai connosco de carro, fica em nossa casa os dias que quiser e depois regressa a Hamburgo de avião. Respondi prontamente que sim, com a rapidez com que diria «arrematado» num leilão. Tão prontamente que, só depois do sim, proferi palavras de agradecimento e manifestei a vontade de não lhes causar trabalho nem transtorno. Era o fogo da ainda juventude a falar! E no dia 3 de Novembro de 1968 iniciamos a viagem a caminho de Berlim, atravessando parte da DDR (Deutsche Democratische Republik), com controlo em Marienborn. Este controlo era fortemente apertado e demorado, salvo para pessoal diplomático e estrangeiros, o que nos facilitaria, pensava eu, a passagem rápida. Puro engano. O facto do M. ser casado com uma alemã, atirou-nos inexoravelmente para as filas de grande fiscalização. Não me lembro a esta distância, mesmo com uma capacidade mnésica razoável, de quanto tempo – ia a escrever quantas horas – por ali permanecemos. Mas se não me lembro do tempo, lembro-me bem das torres de observação, dos cães, das armas, do ar sisudo, fechado e intimidativo dos guardas, sem qualquer sinal de simpatia ou compreensão pelos tristes seres que apenas queriam continuar viagem e nada mais. Esmiuçados (quais gato fedorento) os passaportes, fotografias, datas, viatura, criando a sensação de que iria aparecer qualquer impedimento de prosseguir ou de detenção para averiguações. A bagagem era impiedosamente aberta e vistoriada. Quando finalmente nos foi ordenada a partida (mais do que permitida), só respirámos fundo e falámos quando já não se via o check point, nem nenhum carro militar, nem as imaginárias balas, atrás de nós. Posso ter sentido tudo isto de uma forma exagerada, mas é do que me lembro. Todo o percurso através da DDR, foi de grande tristeza, apesar da beleza da paisagem alemã. O que entristecia era o peso que se sentia duma mão invisível que nos rodeava, de um olho oculto que não deixava de nos vigiar. A sensação de tristeza era tal que quase nos embotava os sentidos e ficávamos incapazes de apreciar o belo. Não me lembro de termos falado muito nesse longo trajecto. E agora, não quero lembrar-me mais disso. Prossigo. Dizer-vos da alegria e espanto que senti quando entrámos em Berlim ocidental, é semelhante ao que provavelmente sentiria se me abrissem a porta da cadeia em que, sem saber porquê, tinha estado preso. O que via de belo pareceu-me várias vezes mais belo do que realmente seria. Descobri novamente a tranquilidade, o sorriso na cara das pessoas, as ruas cheias de gente apressada ou não, os miúdos a correr nos jardins, vigiados por mães felizes. E com grande espanto meu, via-se muita juventude. Juventude que vim a saber, tal como agora, ali acorre vindo de todas as partes da Alemanha e do mundo. Recordo com saudade os passeios na Kurfurstendamm, os longos e vários momentos passados na pista de patinagem no gelo do Europa Center, onde permanentemente entravam e saiam patinadores – solitários, casais, pais e filhos, namorados, idosos de ar tranquilo e sonhador (pensando, recordando, exorcizando o passado, festejando o presente, desejando ainda um futuro melhor). Recordo com saudade e ainda espanto, os Dan Club, frequentados por estudantes, de estrutura simples e um palco central. Ali, espontaneamente, em total liberdade, todo aquele que desejasse dizer poesia (na sua própria língua), cantar, tocar um instrumento ou integrando uma banda, montar uma cena de teatro ou magia, fosse o que fosse, limitava-se a subir ao palco depois do anterior sair e … «ouçam-me, vejam-me ou ignorem-me». Foi lá que eu ouvi (ou senti como tal) a canção mais linda que ouvi até hoje, na voz de uma universitária israelita. Naqueles clubes a gestão e serviços era feita por estudantes em regime de voluntariado. Não me perguntem como tudo batia certo numa organização assim. Só sei que fui lá várias vezes e nunca vi falhas ou desacatos. Não esqueci nunca a imagem de um casal já idoso a entrar numa sex shop a menos de trinta metros das ruínas da Gedächtniskirche (hoje, memorial), pegar numa cesta de compras e tranquilamente, sempre conversando, abastecerem-se daquilo que lhes interessava. Nunca assisti a melhor representação duma sexualidade assumida tão naturalmente, num tempo em que tudo era tão limitado e condicionado (apesar do Maio desse ano).
Assim estou eu agora, condicionado pela barreira dos cinco mil caracteres, que me impede de verter aqui outras recordações e outras particularidades da Berlim de então. Esta crónica foi escrita porque se comemoraram no passado dia 9 de Novembro os 20 anos da queda dessa vergonha que se chamava Muro de Berlim e os alemães chamavam de «mauer». Foram precisos 27 anos de vergonha, 200 mortes e muita mudança política, para o muro ser destruído. Em 1989, quando a notícia chegou a mim era já noite. Telefonei para Koblenz para o colega e amigo Bardua a dar-lhe o abraço que não podia, mas gostaria, de lhe dar pessoalmente. Apanhei-o de saída para se juntar aos amigos e à multidão junto à confluência dos rios, festejando e chorando de alegria. Telefonou-me muito tarde quando regressou a casa a contar-me da festa e durante algum tempo as nossas lágrimas de alegria e emoção encontraram-se. Do muro restam alguns blocos pintados, para que a memória se mantenha, o checkpoint Charlie e em Friedrichstrasse o Museum Haus am Checkpoint Charlie. A unificação da Alemanha ainda esperou quase um ano, mas fez-se. A liberdade mais uma vez venceu, apesar de alguns alemães ainda não se terem unificado totalmente nas suas cabeças. E chegou o dia de regressar a Hamburgo que era um dos terminais aéreos dos corredores que ligavam Berlim à Alemanha Ocidental. O aeroporto de Tempelhof (inaugurado em 1923) e que salvou Berlim de morrer à fome quando do bloqueio soviético, fez-me lembrar a arquitectura portuguesa dos anos 40. Funcionou quase até agora (Outubro de 2008) tendo sido desactivado. Mantêm-se o Tegel e o Schönefeld, que serão substituídos a partir de 2011 pelo moderníssimo Berlin-Brandenburg que aproveita as pistas do Schonefeld e que será suficiente para o tráfego aéreo de Berlim do futuro. Pode dizer-se que Tempelhof cumpriu a sua missão, como no dia em que nele embarquei me permitiu cumprir a minha de regressar a Hamburgo a tempo de apanhar o Nord Atlas para Alverca. Já não a cumpri agora, pois acabei por transgredir o limite imposto e quase nada disse sobre o «Mauer». Pode ser que volte a falar um dia da Alemanha desse tempo.
Crónica a publicar no próximo número da Revista do ACMP
Feliz Natal para todos. E o desejo que o espírito de Natal não se perca e comece a recuperar daquilo em que o consumismo o tem vindo a transformar. Agradeço aos alunos da cadeira de Projecto II, do curso de Design da Universidade de Aveiro o terem concebido este Postal electrónico de Natal e que tão bem atinge o objectivo pretendido.
(…) Nunca pretendi ser senão um sonhador. A quem me falou de viver nunca prestei atenção. Pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser. Tudo o que não é meu, por baixo que seja, teve sempre poesia para mim. Nunca amei senão coisa nenhuma. Nunca desejei senão o que nem podia imaginar. À vida nunca pedi senão que passasse por mim sem que eu a sentisse. Do amor apenas exigi que nunca deixasse de ser um sonho longínquo (…)
Bernardo Soares, Livro do Desassossego
Em muito deste texto me revejo ou me enquadro. Mas na parte dele em que mais sinto que eu estou descrito é em pedir à vida que passe sem eu a sentir. A diferença estará na interpretação que Bernardo Soares deu a este passar sem se sentir e aquela que eu realmente peço, que me parece ser distinta. O que eu peço para não sentir é o sofrimento que ela nos traz vezes a mais que as desejáveis, pelo menos por mim; mas a outra, aquela em que me creio ou tento crer feliz, essa quero senti-la bem, estar nela e não fora dela.
Contudo se prestar atenção e quiser ser sincero comigo próprio tenho que concordar que é tal a vontade de viver uma vida cheia que caio de uma forma quase natural na superficialidade dela que, por ser superficial é mais rápida e sendo mais rápida aleija menos.
Aleija menos, escrevi. Mas não é verdade porque embora ela passe, ficam os sinais dela, mordendo, desgastando, consumindo, apertando o cerco para a dor final.
Escrevi uma vez que me sinto um estrangeiro em qualquer lugar. Teria significado o mesmo se tivesse escrito – pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser, como escreveu Bernardo Soares.
Ele sentia assim, sofria assim, mas tinha a grandeza da sua poesia, a imortalidade da sua obra.
Eu tenho o sofrimento que tento seja fugaz e aquilo que desejei, não alcancei.
Recebi hoje do meu amigo e colega Di Cavalcanti (grande poeta que Portugal merecia conhecer), o endereço de um vídeo em que o barítono José Vam Dam canta magistralmente esta belíssima canção de Gustav Mahler sobre poema de Friedrich Ruckert. Para além do endereço do vídeo, o Di faz o favor de mandar uma tradução livre da canção triste e bela que deixo aqui para vosso consolo.
Ich bin der Welt abhanden gekommen, Mit der ich sonst viele Zeit verdorben, Sie hat so lange nichts von mir vernommen, Sie mag wohl glauben, ich sei gestorben!
Es ist mir auch gar nichts daran gelegen, Ob sie mich für gestorben hält, Ich kann auch gar nichts sagen dagegen, Denn wirklich bin ich gestorben der Welt.
Ich bin gestorben dem Weltgetümmel, Und ruh' in einem stillen Gebiet! Ich leb' allein in meinem Himmel, In meinem Lieben, in meinem Lied!
Tradução livre:
Eu estou morto para o mundo com o qual eu costumava perder tanto tempo, Há muito ele nada ouve de mim podendo até pensar que eu esteja morto!
A mim não importa que ele me acredite morto; eu não o posso negar, pois estou realmente morto para o mundo.
Eu estou morto para o tumulto do mundo, e descanso num quieto refúgio! Eu vivo só em meu paraíso, em meu amor e em minha canção! __________________________________________________
A excelência mesmo que em cima de duas rodas é sempre excelência, mas nalguns casos, como este, serve para quê? Para satisfação e vaidade do próprio que lutou por ela, é evidente que o objectivo foi cumprido. A nós, satisfaz e causa espanto durante escassos minutos e talvez reste a memória do espectáculo, no sótão dos arrumos que ainda não se deitaram fora. E além disto, para que ou a quem serviu, tanto esforço, tanto treino, tanta excelência?
Mas escreveria eu o mesmo se falasse de algum poeta bissexto que tivesse escrito um poema de tal modo excelente que nos permitisse dizer que com ele se tinha cumprido?
É tão difícil saber o que é importante, o que conta, o que marca, o que resta!
Afinal a excelência sobre duas rodas serviu também para filosofar...
Bernardo Santareno, pseudónimo de António Martinho do Rosário (1920-1980), médico escritor, faria hoje 89 anos. Não poderia ter melhor prenda do que a forma como a Câmara Municipal de Santarém e o Instituto Bernardo Santareno têm homenageado aquele que é considerado o maior dramaturgo português do século XX. Entre representações de várias peças suas, por grupos de teatro diferentes, representou-se hoje (dia 19 de Novembro, dia do seu aniversário), no Teatro Sá da Bandeira em Santarém, a sua peça «O pecado de João Agonia», encenação de Pedro Oliveira e apresentada por um novo grupo criado em 2008 e que adoptou o nome de Teatro do Azeite. Composto por jovens, conta também com artistas mais experientes como Maria José e Paula Só (do Bando) que aqui representou um dos seus melhores papéis na figura de Rita Agonia, mãe de João. Este foi representado por Miguel Raposo, um promissor artista que aqui se estreou, filho de outros dois grandes artistas (José Raposo e Maria João Abreu). No dia 28 de Novembro vai representar-se «O Crime da Aldeia Velha», pelo Grupo Mérito Dramático Avintense, com encenação de Manuel Ramos Costa, vencedor absoluto do IV Festival de Teatro de Gaia (encenação,sonoplastia e desenho de luzes).
Agora, digam-me - haverá melhor forma de homenagear um dramaturgo que não seja representar as suas peças?
Eu estive lá e gostei do que vi e do que ouvi uma vez mais.
(….) Houve tempo em que me irritavam aquelas coisas que hoje me fazem sorrir. E uma delas, que quase todos os dias me lembram, é a insistência com que os homens quotidianos e activos na vida sorriem dos poetas e dos artistas. Nem sempre o fazem, como crêem os pensadores dos jornais, com um ar de superioridade. Muitas vezes o fazem com carinho. Mas é sempre como quem acarinha uma criança, alguém alheio à certeza e à exactidão da vida. (…) E se antigamente eu considerava esse sorriso como um insulto, porque implicasse uma superioridade, hoje considero-o como uma dúvida inconsciente; como os homens adultos muitas vezes reconhecem nas crianças uma agudeza de espírito superior à própria, assim nos reconhecem, a nós que sonhamos e o dizemos, uma qualquer coisa diferente de que eles desconfiam como estranha. Quero crer que, muitas vezes, os mais inteligentes deles entrevejam a nossa superioridade; e então sorriem superiormente para esconder que a entrevêem. (…)
Bernardo Soares, Livro do Desassossego
Se é verdade que também comigo se passa algo de semelhante, tenho desde já que dizer que as razões serão diversas e, sobretudo, grande parte delas ainda não me faz rir. O que fazia sorrir Bernardo Soares, em mim desperta sobretudo tristeza, já que tenho pena daqueles que querem ser superiores e estarão sempre muito longe de o virem a ser. Se nestes casos sorrisse só poderia ser por desprezo, pelo que, tendo em conta o eu ser fundamentalmente um conciliador (mas guerreiro quando no limite), me fico pela pena (que provavelmente, se bem analisada, acaba por ser pior que o desprezo e fará de mim um ser pior do que, ao ter apenas pena, aparento ser).
Sorrir, sorrir (por vezes gargalhar), é quando me deparo com aqueles «periquitos engravatados» (como diz o meu amigo APG), todos acelerativos, nariz arrebitado, cheios de aparente poder, cheios de falsa cultura e eficácia profissional, decisores de nada, convencidos que estão no centro das grandes decisões e que o mundo pára se eles pararem. Aqueles a quem nunca se deve falar de poesia ou de sonhos, porque não sabem o verdadeiro significado dessas duas palavras, Aqueles que nunca perceberão a importância de ser artista ou sonhar (em que é que isso me ajuda a chegar ao topo da carreira? perguntarão eles). A arte só lhes interessa enquanto negócio de grande rentabilidade. Por isso a compram como investimento, embora nunca saibam ou descubram a razão da sua rentabilidade.
E tenho que confessar que o bonzinho que pareço ser, sou muito mais drástico que o Bernardo era. Porque há situações em que não tenho pena, nem sorrio, nem sinto desprezo e, muito simplesmente me irritam e me deixam em transe. Mas não vou enumerá-las ou defini-las. Já fui muito longe no meu id.
Vejam atentamente o vídeo e reparem como uma ideia ou um sonho de alguém se pode transformar numa acção colectiva e voluntária. Penso que depois de o ver, ninguém fica indiferente. Divulgue aos seus amigos e participe se puder, evidentemente. Mas verá que há sempre uma forma de participar, desde que verdadeiramente o queira.
Agora em Portugal foi lançado o mesmo desafio: "Limpar Portugal" no dia 20 de Março de 2010.
Inscrevam-se e divulguem por favor: http://limparportugal.ning.com
Para ter um país mas limpo, organizado e com menos incêndios!
Terminou ontem a Feira de São Martinho e a XXXIV Feira Nacional do Cavalo, na Golegã. Desde há vários anos que a Feira é um acontecimento nacional e internacional e, segundo o que leio, passam por ali mais de um milhão de pessoas. Pensando nas centenas de cavaleiros e de atrelagens que permanentemente desfilam no Largo do Arneiro, à volta, à volta, à volta, uns sabendo o que fazem, outros apenas mostrando-se (qual feira de vaidades), uns mostrando o amor ao cavalo, outros apenas mostrando-se (repito), levou-me a recuperar um vídeo que tinha visto há muito tempo e que mostra a íntima ligação de cavaleira e cavalo levada ao seu limite, em que o entendimento entre o binómio parece total. Penso que vale a pena dedicarem escassos minutos para verem este espectáculo com que Stacy Westfall, com o número 3353, nos delicia no «All American Quarter Horse Congress de 2006». A arte de montar no seu melhor, sem sela, rédeas ou pingalim e em que consegue todos os passos possíveis e 3 espantosas travagens a galope, no mínimo inesquecíveis.
Nunca me tinha lembrado que um blog também deve ter esta preocupação - facilitar a vida das pessoas, através de gestos simples que outros tenham descoberto. Que sirva a alguns, a muitos se for caso disso.
Vi ontem o filme «This is it», que mais não é que o making of do que seria o último concerto de Michael Jackson em Londres se, entretanto, não tivesse ocorrido a sua morte. Admitindo que possa haver quem não goste, confesso que gostei e muito. Vi uma personalidade muito diferente daquela que imaginava e com a convicção de que seria esta a autêntica. O rigor, a entrega, a dedicação à sua causa, a educação e correcção com as pessoas que conjuntamente construíam o espectáculo, mostraram-me um outro MJ. Hoje enviaram-me o vídeo que aqui vos deixo «Earth Song» que, pelo que me dizem foi censurado e nunca foi passado nos EUA. Numa altura em que vamos ter a Cimeira de Copenhaga e é cada vez mais evidente a necessidade de curar o planeta (palavras com que termina «This is it»), pareceu-me importante divulgar o vídeo e mostrar a faceta ecológica de MJ, por uma questão de justiça.
Um dos maiores poetas brasileiros e um dos mais mal tratados pelas instâncias da cultura. Mas um dos mais amados pelos leitores e pelo povo em geral, como poeta e como homem. Duas vezes ultrapassado por outros na Academia Brasileira de Letras, escreveu um dos seus pequenos poemas satíricos que analisando a situação terminava assim - «eles passarão // eu passarinho». Foi assim que atravessou a vida. Solitário e passarinhando. Ainda pôde ver antes de morrer a homenagem que a cidade de Porto Alegre lhe fez, transformando o velho Hotel Majestic em que viveu longos anos, na Casa da Cultura Mário Quintana. A justiça acaba por se fazer, mesmo que tarde.
O vídeo que aqui quis deixar é muito longo e pesado e o sistema não conseguiu carregá-lo durante uma noite inteira. Mais uma vez alguma coisa impediu o reconhecimento do verdadeiro Mário Quintana. Aqui deixo um pequeno vídeo que apenas dá uma pálida ideia da sua poesia e da sua grandeza.
Penso que uma das melhores frases publicitárias que alguma vez li, dizia assim - «compre terra, já não se fabrica mais». Hoje foi a ocasião em que vi um dos mais eficazes e bonitos vídeos em defesa desse bem escasso que é a água. Não hesitei em colocá-lo aqui para todos vós. E poupem água, por favor. Pensem nos que ainda não nasceram.
Recebi hoje este magnífico vídeo que quero partilhar. Gravado em 10 de Junho 2007 no Auditório Nacional de Música, em Madrid, durante o Concerto Vozes para a Paz. Dirigiu a orquestra Enrique García Asensio. Ouçam «La boda de Luís Alonso». de J. Gimenez e prestem especial atenção a essa grande artista das castanholas, chamada Lucero Tena. Atentem na qualidade, musicalidade, postura, na paixão, na idade.
Evangelos Odyssey Papathanassiou, mais conhecido como Vangelis, musicou prodigiosamente o significado profundo que representou para a Humanidade a descoberta de outros mundos, pelos navegadores de Portugal, Espanha, Inglaterra, França e Holanda que juntos tomaram conta do mundo então desconhecido - África, Ásia e América.
Em 12 de Outubro de 1492, Cristóvão Colombo chegou a uma pequena ilha do Caribe pensando que tinha chegado à Índia. Era a América. Em 20 de Maio de 1498, seria Vasco da Gama a chegar a Calecute, por uma rota muito diferente - pelo Atlântico e o Índico.
VANGELIS no seu álbum "A conquista do Paraiso" 1492, faz referência a esta descoberta casual da América. Tendo em conta a data de hoje e a qualidade da música, aqui vos deixo este magnífico vídeo, no meu regresso a Portugal.
Mais uma vez interrompo os posts de minha autoria, para colocar aqui um texto de Miguel Sousa Tavares, publicado no Expresso de ontem, que merece ser lido por todos que não o puderam ler. Aqui vai -
Pus-me a pensar o que poderia Cavaco Silva dizer na sua "comunicação à imprensa" (em que à imprensa não eram admitidas perguntas) que pudesse justificar a surpresa de ter visto um Presidente envolver-se numa campanha eleitoral e contra o partido do Governo. Não apenas pelo caso das escutas, mas também pelo seu comentário, cirúrgico e cínico, à suspensão do Jornal de Sexta, da TVI. Pus-me a pensar e não vi grande saída presidencial, na matéria das escutas. Porque os factos, já provados ou não desmentidos, falavam por si: primeiro, há um ano e meio atrás, e depois, a um mês e meio das eleições, o assessor de confiança de Cavaco, dizendo falar em seu nome, foi transmitir ao jornal "Público" que a Presidência suspeitava estar a ser escutada e espiada pelo Governo. Isto, na exacta altura em que a campanha do PSD só tinha um tema: a "asfixia" das liberdades e da sociedade pelo Governo controleiro do PS. Que nem sopa no mel! E mudo e quedo, sem desmentir as suspeitas assim lançadas pública e escandalosamente, ficou o Presidente, lá, na sua casa do Algarve, entretido a ver diplomas. E assim ficaria, não tivesse o "Diário de Notícias" desvendado os contornos da trama e obrigado Cavaco ao gesto dúbio de "fazer alterações na sua Casa Civil". Foi então que o PSD se pôs a gritar em surdina que o PR estava a lançar sinais equívocos que poderiam, afinal, beneficiar o PS em vez de prejudicá-lo, e que o melhor era dizer logo tudo, antes mesmo que o povo fosse às umas. Mas, justamente, aí é que estava o problema, como bem se percebeu pela sua comunicação ao país: o que tinha ele para dizer? Nada. Assim, e excluindo desde logo a hipótese de ver o Presidente pedir desculpas pelo sarilho que engendrara ou consentira planeadamente, só vi uma maneira de ele se pôr a salvo: sacrificar em praça pública o amigo Fernando Lima (e é isso que se espera dos amigos dos príncipes, nas horas de aperto). Mas não: talvez tolhido pelo pudor e enraivecido pelo descalabro da sua conduta, vimos um Presidente fora de si, com cara de ódio e pose de majestade ofendida, a quem tinham ousado incomodar ("na minha casa no Algarve, quando dedicava boa parte do meu tempo a ver diplomas ... exigindo que interrompesse as férias .. .). E, de suspeito, Sua Excelência passou a acusador, com uma leviandade que, vinda de um Presidente da República, arrepia. Sim ele é que desconfia que "altos dirigentes do partido do Governo" se interroguem sobre o facto (aliás público e não desmentido) de membros do seu stafe participarem na elaboração do programa eleitoral do PSD; ele é que desconfia do timing da notícia do "Diário de Notícias", e não da do "Público", saída um mês antes e que deu início a toda a história; ele é que não percebe que alguém possa pôr em causa o legítimo direito de um seu assessor acusar o Governo de espiar o Presidente, sem ter de o provar; ele é que julga que o quiseram empurrar para a campanha eleitoral, e não que se empurrou a si mesmo; ele é que desconfia da veracidade do mail trocado entre dois jornalistas do "Público", apenas com a autoridade que lhe dá o facto de ser quem é; e, enfim, num despropósito final e patético, ele é que se lembrou, no próprio dia em que se ia explicar ao país, de subitamente desconfiar da vulnerabilidade do seu computador pessoal, para assim justificar as "questões de segurança" sobre as quais tinham anunciado que iria falar. Enfim, para tudo resumir, não fossem "os superiores interesses nacionais", que, por vezes, obrigam um Presidente da República a "ser capaz de resistir a graves manipulações", que ultrapassam "os limites do tolerável e da decência", e Sua Ofendida Excelência diria aos portugueses, olhos nos olhos, o que verdadeiramente lhe vai na alma: que eles acabaram de reconduzir um governo de bandidos, que lhe interrompem as férias, espiam as comunicações, controlam a liberdade de opinião dos seus assessores e que ele, a bem da nação, terá de suportar enquanto não vir saída. Como comentava um amigo meu, todavia longe do universo PS, "será que ele nos toma a todos por mentecaptos?". Quando Cavaco Silva foi eleito; eu escrevi aqui que nunca tinha sido devoto do culto. Nunca lhe reconheci crédito de estadista nem mérito como governante. Nunca lhe conheci um pensamento político que não fosse estratégico apenas para si próprio nem agenda política que não fosse a do seu interesse pessoal. Nunca o vi gostar de correr riscos nem ter coragem nos momentos difíceis - quer em relação ao país quer em relação ao próprio PSD, que, em grande parte, ainda vive na ilusão de que Cavaco pertence à sua família política, como se ele tivesse alguma família política que não a sua própria. Mas escrevi também que, uma vez eleito, ele passava a ser o Presidente de todos os portugueses e também o meu. Isso acabou terça-feira passada. O homem que se dirigiu ao país como Presidente de todos os portugueses já não o é mais. Colocou-se a si mesmo como Presidente de uma facção – dos devotos que lhe restam ou da maioria silenciosa e ignorante que não segue ou não entende a gravidade do que se passou. Por decisão própria, o Presidente da República tornou-se neste momento o principal factor de instabilidade, o principal obstáculo ao regular funcionamento das instituições democráticas que jurou defender. Nada mais será como dantes. E não apenas entre o Presidente e o futuro governo: entre o Presidente e o país.
85. Reparando, às vezes, no trabalho literário abundante ou, pelo menos, feito de coisas extensas e completas de tantas criaturas que ou conheço ou de quem sei, sinto em mim uma inveja incerta, uma admiração desprezante, um misto incoerente de sentimentos mistos. Fazer qualquer coisa completa, inteira, seja boa ou má – e, se nunca é inteiramente boa, muitas vezes não é inteiramente má -, sim, fazer uma coisa completa causa-me, talvez, mais inveja do que outro qualquer sentimento. É como um filho: é imperfeita como todo o ente humano, mas é nossa como os filhos são. E eu, cujo espírito de crítica própria me não permite senão que veja os defeitos, as falhas, eu, que não ouso escrever mais que trechos, bocados, excertos do inexistente, eu mesmo, no pouco que escrevo, sou imperfeito também. Mais valera, pois, ou a obra completa, ainda que má, que em todo o caso é obra; ou a ausência de palavras, o silêncio inteiro da alma que se reconhece incapaz de agir.
Bernardo Soares, Livro do Desassossego
Sem ter pensado alguma vez nisso, dei comigo nos últimos anos a fazer obra completa ou a tentar fazê-la. Desviei-me do caminho que estava a percorrer, no que respeita à escrita, e atirei-me, é o termo justo, à obra, melhor dizendo – às obras completas. Imaginei-as, preparei-as, investigando e escrevi-as o que melhor que sabia ou pude. Estão feitas e publicadas. E, agora? Que penso eu delas? São o que queria? São completas? Posso orgulhar-me delas? Sei que não são inteiramente boas, mas também sei que, realmente, não são inteiramente más. Mas para que serve uma obra que não é inteiramente má? A quem, se nem a mim? O que poderia ter feito de bom com o tempo, o esforço que nelas investi? Teria conseguido outra coisa completa? Inteiramente boa? Não o problema não está no tamanho do que se faz, no tipo de coisa que se faz. O problema está na verdade, na autenticidade com que se faz, na autenticidade do que se faz. Não, também não seria pelo silêncio que eu iria ou poderia ir. Porque não tendo como tu, Bernardo, um sentido crítico que me deixe ver apenas os defeitos, as falhas, dou comigo a achar, vezes de mais, que o que escrevo, breve ou extenso, ligeiro ou profundo, não só não é inteiramente mau, como, por vezes me parece quase bom, com a lucidez suficiente para saber que bom, com a força dessas três letras, não o é. Raras vezes o é, mesmo quando a escrita é de outros. Costumo pensar que a leviandade com que às vezes escrevo é fruto da imperiosa necessidade de o fazer. Como então respeitar o silêncio inteiro da alma, para que apontas?
Numa breve consulta no YouTube encontrei esta surpreendente Lengalonga, com letra de Regina Guimarães e voz de Ana Deus, que nos transmite uma visão ou um retrato bem cinzento deste Portugal em que vivemos. Penso que esta Lengalonga merece ser escutada, concorde-se ou não com ela. Prevejo que haja quem se arrepie e possa não chegar ao fim. Também prevejo que haja quem a ouça mais do que uma vez. Por isso a coloco aqui. Nada mais salutar do que reflectir sobre as coisas, entender os vários sentidos, estar atento a tudo. São palavras, texto e forma de o apresentar, a que não se pode ficar indiferente. Eu, gostei muito.
Ouvi há dias uma entrevista no Rádio Clube, com Valter Hugo Mãe. Sabia-o escritor de mérito reconhecido, vencedor do Prémio José Saramago, com o romance «O Apocalipse dos Trabalhadores». Não sabia, contudo, que acumulava a escrita com a música. Ouvi-o contar com grande modéstia e aparente verdade a forma como entrara no mundo da música, como vocalista da nova banda Governo. Ele acha que não tem voz. Mas a mãe pensava o contrário. Foi necessário que um dos elementos dos Mão Morta tivesse a mesma opinião da mãe para ele se aventurar, com timidez e alguma vergonha, a dar o salto definitivo para esta nova existência cultural. Confesso que ainda não tive ocasião de ler o Apocalipse, mas já ouvi várias vezes «Meio Bicho e Fogo». Se resolvi deixar aqui este apontamento foi porque gostei do que ouvi e por isso o quero partilhar. O mesmo espero fazer quando ler o Apocalipse.
Foram duas canções muito importantes para mim, há mais de 40 anos. Sobretudo Ma Liberté que cantei centenas de vezes e que, por estranho que pareça, cheguei a pensar que a cantava como se tivesse voz para o fazer. Não teria voz, mas tinha alma.
Estive hoje a rever vários vídeos de cantores que me fizeram vibrar há algumas décadas. Era minha intenção mostrá-los a cantar enquanto novos e depois já perto do fim. Embora me comovessem e ainda mostrassem o seu talento, definitivamente, não eram os mesmos. Não consigo fazer-lhes a maldade de aqui os expor quando perderam qualidade. Quero sim, homenageá-los tal como os conheci, tal como os conservo na minha memória. Convosco, Juliette Greco cantando Feuilles Mortes e Serge Reggiani cantando Le petit garçon.
Penso que um blog também deve ter preocupações educativas. Este vídeo da Polícia de Gales, com as suas chocantes imagens, parece ser um bom exemplo de prevenção rodoviária, já que pode levar a pensar todos aqueles que não respeitam as regras da condução segura e pensam que os acidentes só acontecem aos outros.
A ganância mata, mesmo que demore a matar. Umas vezes de forma fulminante, outras progressivamente, outras de forma tão lenta que o ganancioso não se apercebe para onde caminha. O ganancioso é diferente do ambicioso. Este último, embora por vezes criticável, tem na maioria das vezes mérito e qualidades pessoais. O ganancioso é apenas um ganancioso. Merece ser engolido pela sua ganância. Será que o vídeo é crítica ou apenas diversão?
Um gravíssimo ataque viral impossibilitou-me de durante sete dias colocar novos posts neste meu blog. Felizmente quem sofreu este ataque não fui eu, mas o meu computador que se encontra permanentemente sujeito a ataques, uma vez que todos os dias são fabricados 35.000 novos virus ou maliciosos que se estão nas tintas para a bateria de antivirus que normalmente os esperam. Não quero deixar de retomar já hoje a respiração normal deste blog que se faz de vida e não de silêncios. Mas hoje só aqui colocarei um vídeo de que gostei muito, de origem russa, uma animação sobre desenhos e sonhos de Marc Chagall. Quis contudo deixar antes desse vídeo, um slideshow sobre a obra deste magnífico pintor, para que quem não conheça a sua pintura, possa entender melhor a animação.
Vi há dois dias um filme sobre a vida de Maria Callas. Sempre tive uma paixão por ela, pela sua voz, pelo seu temperamento, pelo vulcão das suas emoções. Sempre me entristeceu a forma como se subjugou ao amor sem sentido que a levou não à felicidade que alvejava e merecia, mas à sua destruição. Há puristas que dizem que a sua voz não era perfeita. É por isso que gosto de não ser purista e apreciar as coisas pelo que elas me fazem sentir e vibrar. Digam o que disserem, Callas foi única. Para mim, que gostava também da Joan Sutterland, da Renata Tebaldi, como gosto agora da Anna Netrebko, todas cantaram a Norma e todas foram (e esta última ainda é), divinas. Mas hoje desencantei no YouTube esta preciosidade gravada há décadas pela RAI - que apesar da falta de meios da altura ainda hoje nos permite vibrar com esta voz e com a música de Vincenzo Bellini - e não quis deixar de a partilhar convosco.
Este vídeo é um verdadeiro achado. Filmado há décadas, na televisão brasileira, com um cenário e orquestra condizentes com a época e com uma dupla que para mim era completamente improvável. Apenas ignorância e preconceito meu. Afinal maneiras de ser, preferências políticas, gostos musicais diferentes não impediram que a dupla se entendesse. Duas grandes vozes para dois públicos aparentemente diferentes. No fundo, a vitória da música.
Raul Solnado morreu, mas eu não sou obrigado a acreditar. Eu sei que ouvi as notícias, vi as reportagens e o crematório. Mas também ouvi as pessoas - os amigos, os que disseram sê-lo, os admiradores, a gente humilde que lidou com ele, e reparei que nenhum deles acreditou que Raul Solnado tivesse morrido. Mudou apenas de residência. A memória da sua arte, a sua maneira de ser, a generosidade de que todos falaram, essa permanece e nem sequer mudou de residência. Devo-lhe o ter-me ajudado a passar muito tempo feliz, da gargalhada à lágrima sensível. Por tudo isso, obrigado Raul e até sempre. E tem a certeza de que farei por ser feliz, já que assim queres...
Num Portugal de ais, de cada vez mais ais, justifica-se que junte aqui a Cantiga dos Ais de Armindo Mendes de Carvalho, na voz do talentoso Mário Viegas que tão cedo nos deixou.
Cercado por netos e amor há quase um mês, não me tem sobrado tempo para nada além deles, muito menos ir escrevendo no blog. Aproveito para postar alguns vídeos que se vêem com agrado, fazem pensar ou rir ou ambas as coisas e me roubam pouco tempo. Desculpem qualquer coisinha ...
Hoje em dia dar uma entrevista para um jornal, revista ou televisão, é acto de grande risco. Nunca se sabe no que vai dar. O melhor que pode suceder é que a entrevista não chegue a ser publicada, porque se o for e mesmo que se tenha exigido ou manifestado o desejo de ler antecipadamente aquilo que vai aparecer estampado em letra de imprensa,corre-se um risco sério de que aquilo que se vai ler, não corresponda minimamente àquilo que se disse e muito menos à forma como se disse. Porque Luís Fernando Veríssimo escreveu numa das suas últimas crónicas no Actual uma magnífica sátira sobre este novo risco, achei importante trazê-la ao conhecimento de quem não lê aquele suplemento do Expresso. Leiam, divirtam-se e sintam-se felizes por não correrem tais riscos.
A qualidade da vida faz-se de coisas essenciais e de pequenos truques e estratagemas que, de uma forma simples e por vezes inocente, nos permitem libertar do peso dos dias, do magma negro da vida citadina.
Isto faz-me lembrar a sabedoria popular, os gestos e atitudes simples, de gente também simples que aposta na simplicidade o pleno do seu dia a dia. Mas também as atitudes mais elaboradas, de gente mais esclarecida, que aproveita a inteligência e o humor como escudo protector contra os misseis homem-homem que o fluir dos dias contra eles insistentemente disparam.
E, de uma forma natural, vem-me ao pensamento a gaveta dos manguitos de Vasco Santana. Homem de humor e do humor, por excelência, beneficiando ainda da carga divertida de seu peso, de seus cento e cem quilos bem medidos, soube aprender por si, que só se pode ser e viver feliz, quando se está livre do efeito desgastante das conversas que se não desejam, das companhias que se não pretendem ou reclamam, das palavras que não afinam pelo diapasão da nossa maneira de ser.
Por isso, ele percebeu que tinha que inventar a sua gaveta dos manguitos. E que gaveta era essa? Apenas uma gaveta vazia da sua secretária atafulhada, mas organizada, no seu camarim de teatro. Era a superior esquerda. Para que servia e qual era o seu truque, o seu estratagema? Quando chegava ao camarim, abria a gaveta, fazia vários manguitos e deixava-os entrar para dentro da gaveta vazia. Depois, fechava-a.
Quando, após o espectáculo, começavam a chegar as pessoas incómodas que o vinham martelar com perguntas e questões idiotas, a que ele não podia escapar, ele fazia um sorriso de beatitude, abria ligeiramente a gaveta e, enquanto conversava afavelmente, olhava para a gaveta e libertava-se a ver saírem disciplinadamente os manguitos que lá metera.
Com este pequeno truque, Vasco Santana conseguia sobreviver às conversas desinteressantes a que era forçado e sentia-se liberto do stress, podendo manter um sorriso que doutro modo, mesmo sendo actor, lhe seria impossível.
Quantos de nós terão a sua gaveta dos manguitos e a usarão para a sua sobrevivência emocional e física? Quantos de nós terão a capacidade de intuir a sua necessidade?
Já um dia escrevi sobre as gavetas da nossa vida, as gavetas da nossa alma. Compartimentar conhecimentos e emoções, vivências e mortes, alegrias e tristezas, parece ser uma posição radical de estreiteza mental, de empobrecimento determinado, de um viver baço e frio. Parece ser. Disse bem. Mas, não é. Porque ter gavetas, não significa que estejam fechadas, com segurança e código. Ter gavetas, é apenas ter gavetas.
Depois, se dirá ou discutirá como elas devem ser. Invioláveis? Estanques? Incomunicáveis? Ou, pelo contrário, abertas, semiabertas, entreabertas ou escancaradas? Com capacidade definida ou expansíveis e de capacidade inesgotável? A gaveta das emoções, a gaveta das recordações, a gaveta da ciência, a gaveta do amor ou dos amores, a gaveta dos nossos manguitos, a gaveta da estratégia, a gaveta da nossa defesa ou das nossas defesas, a gaveta da amizade, a gaveta do ódio ou da sua ausência, um sem fim de gavetas, que fazem da nossa mente um verdadeiro contador, a que só o próprio tem acesso.
Onde vou meter o pôr do sol que acabo de ver? Que foi e já não é? Em que gaveta? Naquela em que já vários sóis se estão a pôr ou numa outra em que fica apenas este que agora vi e que tenho que guardar para que não se perca, porque o vi agora enquanto escrevia o que estou a escrever, enquanto abri e fechei gavetas à velocidade dos meus pensamentos e de seu registo em memória e suas ligações?
Contudo, pensar em tal não me equipa com o poder de criar a minha gaveta dos manguitos. Uma coisa é saber da sua necessidade e de a saber minha e outra bem diferente é a capacidade de a construir, como quem abre uma nova file no computador. Não se trata só de criar a gaveta, mas de saber o que lá meter e de qual será o seu efeito.
O que é que mais alivia o meu espírito? Seja o que for, será isso o manguito da minha gaveta. E para mim será sempre a gaveta dos manguitos, porque foi esta que deu a partida para as outras.
De pequenino se torce o pepino. Diz o provérbio antigo. Se já o esqueceu, fixe este - children see, children do. A outra face da moeda, a mesma finalidade.
Estive fora esta semana. Tive vários contactos, em vários ambientes. Vi coisas novas e revi outras. Pensei na nossa situação de portugueses e nos nossos problemas. De regresso a casa e já fim de semana, pensei que devia publicar estas duas imagens que encerram em si um verdadeiro tratado de sabedoria. Saibamos todos dar um passo para que a nossa bandeira possa estar associada à sabedoria da primeira.
Morreu há dias, subitamente, com um enfarto do miocárdio, Rodrigo de Souza Leão, natural e residente no Rio de Janeiro. Tinha 44 anos e uma extensa obra literária, em prosa e poesia. O seu último livre, intitulado «Todos os cachorros são azuis» está em análise, entre 49 obras, pelo júri de um concurso literário português. Dizem os seus amigos, meus amigos brasileiros , que era um excelente amigo e uma personalidade ímpar. Grande escritor. Esquizofrénico.
Escreveu até morrer. Aqui deixo alguns poemas que retirei do seu blog Lowcura-
Cor azul
A mente esquizofrênica não funciona bem e boicota, sem os remédios, o tempo todo. Com remédios ficamos bem. Leves e tranqüilos para o mundo, que é muito bom. Fora as pessoas que não valem à pena, estas manter distância torna-se necessário. Positive Vibrations.
Thursday, June 25, 2009
TUDO É PEQUENO
Tudo é pequeno A fama A lama O lince hipnotizando a iguana
O que é grande É a arte Há vida em marte
Sem título
Entendi o funcionamento do cérebro humano. Um duplo sem fim Algo diz sim e algo diz não E vence sempre o sim Se a mente for um cetim
MELHORA
Tudo é uma criação da mente Um poema ou um poente
Tudo tem um forte sentido Quando não se oprime o indivíduo
Alguém soletra uma distância A distância separa os fatos A verdade não é tão necessária
LOUCO
Já fui gordo. Já fui magro. Já fui ego. Já fui id.