sábado, dezembro 03, 2005

médicos e escritores

Se há profissão que exija vocação e dedicação por inteiro, essa é, seguramente, a de médico. Um médico forma-se, ajudado por uma leitura cuidadosa e permanente dos Tratados, pelo conselho esclarecido dos Mestres, pelo contacto directo com os doentes. Exames feitos, testados os seus conhecimentos, adquiridos ao longo de seis anos, a Universidade passa-lhe o certificado que o autoriza ao exercício da Medicina. Nessa altura pode dizer-se, teoricamente, que se é médico.
Mas, em verdade, poderá dizer-se tal coisa?
Mais correcto será dizer-se que se é Licenciado em Medicina e apenas isso. Quando se é médico, então? Apenas, e só, depois de uma prática continuada e dedicada à profissão, de um contacto permanente e total com essa entidade que justifica a sua existência: o doente.
Posto o problema assim, ficaria pouco espaço de manobra para justificar os médicos escritores. Se a Medicina exige essa dedicação total, onde vai o médico escritor buscar o tempo e sossego para o exercício da escrita que não seja a de artigos científicos, pedras basilares da sua formação contínua e da transmissão a terceiros dos seus conhecimentos? Parece tal a incompatibilidade, que até pareceria lógico concluir que, médico que tem disponibilidade para a escrita não está a viver a sua profissão por inteiro, com o zelo e dedicação devidas.
Mas, os raciocínios simplistas e imediatos são, a maioria das vezes, pouco verdadeiros e correctos. Falta-lhes a avaliação com distância, a análise de todos os factores, o entendimento dos factos. E é exactamente o que sucede a quem, de uma forma leviana e menos pensada, tenha dos médicos escritores esse conceito.
O médico escritor é um médico duplamente interessado e duplamente dedicado à sua profissão e ao objecto dela – o doente. Interrogando-se continuamente, tentando entender os fenómenos sociológicos com que lida, tentando interpretar reacções e comportamentos, introduzindo humanidade onde ela está em falta, procurando encontrar o fio da meada com que parece estar a construir-se a teia avassaladora da desagregação das relações humanas.
Contrapondo actos e argumentos à tecnologia em desenvolvimento, perigosa arma de dois gumes que tem que ser usada com extrema cautela, já que as vantagens que claramente traz para um correcto diagnóstico e tratamento, se faz acompanhar, de uma forma quase liminar, qual líquen, de uma desumanização progressiva e cada vez mais irrecuperável, da praxis médica.
Espectador atento do teatro da dor humana, companheiro privilegiado de angústias, inquietações e sofrimento, o médico escritor vive os seus dias em estado de inquietação mental, envolvendo-se perigosamente nesse buraco escuro para onde a vivência do dia a dia médico o empurra.
Mas, não se pode exigir muito aos escritores médicos, para além dos seus limites e capacidades. É no exercício frequente de libertação do seu pensamento, no verter continuado, em palavra escrita, das ideias que nele fervilham e por vezes o sufocam, que o médico escritor vai encontrando forças para ir em frente e para se não deixar apanhar pelo comodismo da adaptação, pela mediocridade rotineira de uma vida vegetalmente apaziguada.
É ainda através desse continuado exercício que vai aprender a dominar cada vez mais ideias e palavras e se vai tornando, a pouco e pouco, verdadeiramente escritor. E é então, também, que alguns médicos escritores tomam consciência que se encontram num ponto de viragem obrigatória, em que o seu grau de utilidade pública deixa de estar centrado no exercício da sua profissão médica e passa a estar indissoluvelmente ligado à sua actividade como escritor que, desde aí, passa a ser a sua profissão principal.
São muitos os exemplos desse ponto de viragem. Recordemos apenas os mais recentes: Miguel Torga, Fernando Namora, Bernardo Santareno e António Lobo Antunes, todos eles sem cortarem totalmente com a Medicina, entenderam em que campo eram mais úteis, qual das duas profissões deveria ter a primazia em atenção e dedicação.
Mas, nunca nenhum deles recusou ou esqueceu o papel que a vivência médica representou para o desenvolvimento e enriquecimento das suas personalidades, para o correcto exercício da arte da escrita.
A par deles, umas dezenas de médicos sentem fortemente a necessidade da escrita e vão dando conta das suas inquietações e angústias. De uma forma infinitamente mais modesta. De uma forma mais limitada, algumas vezes com qualidade duvidosa, vão apesar de tudo mostrando que estão vivos e não acomodados. Não têm menos mérito por isso.
Pequenas chamas, que nunca atingirão o brilho dos mais dotados, mas que, embora dessa forma modesta, vão atravessando as escuridões profundas das dúvidas e vão iluminando e permitindo caminhos até aí desconhecidos.
É muito longa a lista dos médicos escritores, sobretudo nos séculos XIX e XX. São várias centenas de médicos que se interessaram pelos assuntos mais variados e pelos temas mais diversos.Notoriedade reconhecida para poucos; mas todos eles, cada qual à sua maneira e na escala do seu próprio valor, agitaram as águas pantanosas do silêncio, do medo e da subserviência. Honra lhes seja feita.

1 comentário:

Marcos Gimenes Salun disse...

Caro Dr. Carlos Vieira Reis,
Li com atenção seu texto sobre médicos escritores e quero parabenizá-lo pelo discernimento que dele se depreende e também por seu talento como escritor.
Não sou médico (formei-me jornalista), mas tenho a honra de ter sido aceito como membro colaborador da SOBRAMES-SP -Sociedade Brasileira de Médicos Escritores da regional do Estado de São Paulo (Brasil, pertencendo desde 1999 à sua diretoria. Também mantenho um pequeno BLOG onde me aventuro com algumas histórias e percepções da vida. Ficarei honrado se puder visitá-lo:
http://cadadiauma.blogspot.com
Um grande abraço
Marcos Gimenes Salun