quinta-feira, julho 27, 2006

e, se eu vos contasse? – 16.º programa – o hospital da estrela ou estrelinha

O Hospital da Estrela ou da Estrelinha, como também lhe chamavam, antes de se instalar no edifício onde ainda hoje se encontra, esteve sediado em vários locais de que não vos vou falar, pois para isso não chegariam dois programas. Resolvi, contudo, contar-vos antes a história do Hospital de São Bento da Saúde ou São Bento o Novo, porque este, de uma forma indirecta, se prende ao hospital da Estrela e eu já vos explico como. Este convento iniciou a sua construção em 1598 e só veio a ser terminada em 1615, para instalar parte dos frades beneditinos que viviam até aí no Convento Beneditino da Estrela, da Estrelinha, ou São Bento o Velho, e de onde precisavam de sair, por este passar a servir apenas para o noviciado. Por isso, os frades beneditinos mandaram construir este novo convento na Quinta da Saúde ou da Bem Ganhada, ou melhor dizendo, o construíram eles próprios, pois era obrigação desta ordem que os seus frades dedicassem sete horas por dia ao trabalho braçal e duas horas ao estudo. O tempo restante era para as missas, as orações, a alimentação e a dormida. No mês de Maio do ano de 1808, vários engenheiros e médicos militares visitaram o Convento de São Bento da Saúde, com vista a instalarem nele um hospital militar. Quando foram visitados pelos engenheiros e médicos militares, os frades não gostaram da graça e consideraram isso um abuso, uma vez que já tinham cedido parte do convento da Estrela. E diziam eles que, uma vez ainda vá, agora duas ...! Requereram, por isso, a Junot, no sentido de não serem ocupados e pediram a protecção do Conde da Ega. Como o convento não foi ocupados nessa altura, concluíram que isso se ficara a dever à à protecção do dito conde da Ega, facto que este não só nunca negou como logo aproveitou para pedir emprestadas 40 moedas de ouro ao Prior. Este deve ter-se arrependido mil vezes de as ter emprestado, pois logo no dia 22 de Agosto desse mesmo ano, o Intendente Geral da Polícia Francesa expediu um Aviso em que obrigava os frades a franquearem o convento, para ali se instalar um hospital, para receber os soldados franceses feridos na batalha do Vimeiro, que chegaram logo nos dias 23 e 24 de Agosto e passavam de setecentos. Depois disso, o convento serviu para instalar outros hospitais, nomeadamente o dos soldados ingleses, único que tinha a especial característica de dispor de enfermeiras inglesas, e que se supõe serem familiares das tropas estacionadas em Portugal. E, no que respeita à saúde acabou por ser Depósito de Convalescentes, o chamado Hospital dos Soldados Portugueses Convalescentes. Depois disso, este convento serviu para instalar as Cortes, em 1834, depois a Câmara dos Pares e dos Deputados, a Assembleia Nacional e a Câmara Corporativa, o Arquivo Nacional da Torre do Tombo e hoje a Assembleia da República. O Convento em que actualmente está instalado o Hospital da Estrela, foi construído pelos frades da Ordem de São Bento de Tibães, em 1572 ou 73 e é considerado pelos historiadores, o primeiro convento beneditino de Lisboa. Foi construído na chamada Quinta de Campolide, que pertencia ao Governador da Guiné, Luís Henriques que, por desmandos vários, seus e do seu genro Duarte Peixoto da Silva, a hipotecara a um negociante do Algarve, António Nunes, a quem estava devedor de uma grande soma de dinheiro e com quem andava em litígio. Teria sido o Cardeal D. Henrique a resolver o diferendo, mandando pagar a dívida e dando ainda uma indemnização ao capitalista algarvio, para que os frades construíssem ali o seu convento. Esta é uma versão, apenas uma versão, como sucede muitas vezes nestas coisas da História. Há quem diga que o que verdadeiramente se passou, foi que os frades beneditinos tinham ocupado a quinta do Governador da Guiné, sem permissão, e que quando este regressou e verificou tal facto, ficou furioso e explodindo de raiva. Mas quando viu a igreja que os frades tinham arranjado, a sua beleza e religiosidade, terá acalmado, felicitado os frades e deixando-os ficar. Tenha sido assim ou assado, há uma coisa em que a História concorda – é sabido que Luís Henriques ficou viúvo e logo de seguida se fez frade naquele convento e naquela Ordem. Quando morreu, os frades fizeram uma lápide em que escreveram «aqui jaz Paulo Henriques(ou Luís?), religioso de São Bento, o qual fez estas casas antes de monge, que depois foi neste mosteiro. Faleceu a 9 de Junho de 1575».
Há uma história que eu gostava de vos contar e que se prende com a razão do convento se situar aqui. História ou lenda, quem saberá? Diz-se, e vamos ficar por esta forma, que Frei Plácido de Vila Lobos, juntamente com Frei Pedro Chaves, teria vindo a Lisboa ver o que se passava com os frades da sua ordem, porque constava que algo de anormal se passava. Terá concluído que se tornava necessário encontrar instalações condignas e que seria útil para os frades trabalharem na construção do seu convento, pelo que se pôs à procura de um local que fosse indicado para o convento. E um dia, após o sermão que acabara de fazer na igreja do convento das Religiosas na Esperança, quando descia as escadas do púlpito, apareceu-lhe ao fundo delas, um homem idoso e de ar nobre, todo vestido de preto, que lhe terá dito que sabendo que ele procurava um local indicado para construir o convento dos beneditinos, ele sabia desse local ideal para o construir e estava disposto a mostrar-lho. E, logo de seguida, o terá levado à chamada Quinta de Campolide, que Frei Plácido Vila Lobos adorou. E quando se virou para lhe agradecer e manifestar o seu interesse naquele local, o homem tinha desaparecido, como por encanto, o que terá levado Frei Plácido a pensar que tinha sido o seu Santo Patriarca que, daquela forma, o viera ajudar.
Por Aviso de 21 de Novembro de 1817, da Secretaria de Estado dos Negócios da Guerra, foi decidida a ocupação e utilização de parte deste Convento, então com o nome de Colégio de Nossa Senhora da Estrela, desde que passara a ser exclusivo do noviciado, para ali se instalar a Repartição dos Hospitais Militares, ou 6ª. Repartição e no ano seguinte a Botica Geral do Exército, tendo esta ocupado o refeitório e servindo-lhe de armazéns, os corredores superior e inferior que correm ao lado da Igreja, do lado da porta do Evangelho.
No ano de 1834, foi transferido para este Convento, o Hospital Real Militar da Corte, que até então funcionara nas Janelas Verdes (Hospital de São João de Deus e que entretanto tomara a designação de Hospital Militar de Lisboa) e posteriormente em Xabregas.
Só em 1851, por Decreto de 6 de Outubro, se pode considerar como definitiva a sua instalação. Um Decreto de 2 de Dezembro desse mesmo ano, dá-lhe o nome de Hospital Militar Permanente de Lisboa. Já no século XX, passou a chamar-se Hospital Militar Principal, nome que ainda mantém.

quarta-feira, julho 26, 2006

requiem por um amigo, elogio de um pintor

Quiseram os deuses marcar-te com a força da natureza. Nasceste selvagem e livre, como livre morreste. Indomável e louco. Saudavelmente louco, como todos deveríamos ser.
Nasceste, segundo me disseste, em família rude, mas honrada. Em que o trabalho era divisa e necessidade. Trabalho duro, regado a suor, mas nunca a lágrimas, porque havia orgulho e honra naquilo que faziam. Cara levantada, olhar directo, falar claro e certo. E cada pancada no ferro, domava este e a personalidade de quem o moldava.
Foi nesse meio que nasceste, cresceste e aprendeste a lei da casa, a lei das ruas, o trabalho duro, mas honrado. Os mesmos deuses que te fizeram nascer selvagem e livre, tinham-te destinado outro futuro, tinham determinado que tivesses asas e as soubesses usar e com elas ousasses chegar aonde a tua vontade, o teu destino, te levassem.

Os teus braços fortes que todos pensavam ser destinados a malhar o ferro, a serem peças fundamentais da engrenagem para a fabricação do que te exigiam, eram, quem diria, os transmissores da tua forte sensibilidade, segurando pincéis de fina marta, em vez do martelo e da tenaz. Esses braços fortes não tinham, afinal, sido feitos para malhar o ferro e metê-lo na caldeira, mas para empunhar suave e delicadamente as armas que os deuses te destinaram, os pincéis e a paleta. E que de uns e de outra fizesses a base onde prepararias aquilo que a tua mente passava desordenadamente, (ou seria organizadamente?) aos terminais últimos de teus neurónios, aquela trama de finos nervos que te faziam colocar o pincel na tela, não de qualquer modo, não com qualquer cor, mas como teu coração e sensibilidade mandavam.
E sentiste claramente que tinhas asas, que te tinham sido dadas para delas te servires. Não sei em que idade começaste a borrar a tela, o papel, ou a madeira, porque não deverias ter dinheiro para comprar o material devido, que nessa altura ainda devias considerar luxo de pintores. E o que tu precisavas era de pintar, de fabricar as cores e dares-lhe arrumo no espaço que para elas criaras. Imagino que a pouco e pouco, terás começado a usar melhor papel do que o dos blocos escolares e te tenhas aventurado um dia a comprar um caderno de bom papel para desenho, aguarela e óleo. Do que te terás privado nesse dia em que te deste a alegria de comprar tal bloco? Não saciaste a fome esse e outro dia, não mudaste os sapatos que ameaçavam ruína e te molhavam os pés como se estivesses descalço? Não sei do que te privaste, mas tenho a certeza que fizeste um sorriso lindo, deste uma das tuas gargalhadas inconfundíveis e pensaste, mais uma vez, que o teu destino estava traçado e seria feito de traços, de riscos, de manchas, de borrões, de jogos e subtilezas, de amor e de sarcasmo. E porque não de sofrimento?


Foi com esse destino assim traçado, que partiste, bolsos vazios, para Paris. Não conhecias a língua, não tinhas aquilo com que se compra o pão. Mas tinhas um tesouro enorme, do tamanho de um sonho que acreditavas poder realizar. Sabias, sem ninguém to ensinar, que tudo que tem a ver com o sonho, com os sentimentos, com a arte, tem a sua própria língua, o seu próprio entendimento. E sabias que só através da arte que sentias morar dentro de ti, havias de te realizar, de ser.
E um dia regressaste, com os mesmos bolsos vazios e a alma cheia, não do que te ensinaram, mas do que tu soubeste ler nas obras dos mestres. Aprendeste, sem mestre, onde ficava a barreira entre o génio e a banalidade. Aprendeste o que fazia a distinção entre umas cores e outras, aparentemente iguais, a diferença que havia na força imprimida aos pincéis, como aprendeste os claros e os escuros, o mapa da alma e dos sentimentos, vertido em cores e pinceladas. Percebeste que aprendias mais olhando demoradamente, horas a fio, dias incontáveis, para a tela de um mestre em um qualquer museu, do que no continuado Iinguajar daqueles que se intitulam professores e o são apenas da banalidade, nunca do génio. Aprendeste, sem saberes que o apreendias, aquilo que Picasso diria, e hoje qualquer um repete, que nada se procura e tudo se encontra, porque já lá está, na forma própria de ver, na luz irrepetível daquele fim de tarde, no sorriso ou na máscara com que se cruza na rua, no caos e na desordem, na beleza e no prazer.

Nasceste cedo de mais neste País que só acordou para a Arte tarde de mais. No sentido, e apenas nesse, que a Arte, tal como a Poesia, é também para se comer. Por isso a vida não te foi fácil. Por isso, tiveste que viver muito abaixo do que merecias. E muito acima de quase todos, porque nasceste selvagem e livre. Indomável. Com sentimentos. Sempre te recusaste a pactuar com esquemas e arranjinhos comerciais, com beija mãos àqueles que constroem mitos e por vezes destroem génios. Sempre foste um marginal, por inteiro. E ao longo da tua vida a pintura foi nascendo, foi crescendo, sempre livre de correntes e de modas. Tu pintavas apenas o que vias, como vias, como sentias. E sempre expressaste em voz bem alta, sem qualquer receio de seres ouvido, aquilo que pensavas, da arte, dos artistas, da vida, dos amigos, das mulheres, da política. E sempre assim fizeste, mesmo quando dizias autênticas barbaridades, e te referias ao que não era verdadeiramente teu e não correspondia ao teu sentir, mas àquilo que tu tinhas aprendido apressadamente em leituras oblíquas, mal digeridas. Mas, mesmo nessas ocasiões todos te ouvíamos, porque sabias emprestar à tua fala uma vivacidade e uma sonoridade únicas. O teu riso era contagiante, sadio quase sempre, outras vezes sarcástico, muitas vezes destrutivo. Mas era sempre teu, com marca de origem. Quando tu rias ou falavas todos sabiam que era o Júlio Pereira quem tinha falado ou rido. E tu tinhas tanto de que rir ...
A tua presença impunha-se e ninguém ficava indiferente, mesmo que discordassem de ti, mesmo que dissessem que não eras um pintor a sério e eras apenas um marginal. Sentado numa das mesas da Brasileira, entre tantas cabeças pensantes, tantos artistas consagrados, a tua presença notava-se, mesmo que fossem os outros os detentores da fama, os auferidores das benesses e dos proventos. Quando gargalhavas, nessas alturas, aquilo que se ouvia nada era comparado com aquilo que calavas. E tu tinhas tanto de que te rir ...
Se os teus braços eram fortes, era maior ainda o teu coração e a tua generosidade. Se com os braços abraçavas sincera e fortemente os amigos, com o teu coração amava-los realmente. Para as mulheres tinhas um compartimento muito especial nesse teu coração grande e conseguias amar várias ao mesmo tempo, sem atraiçoar nenhuma. Nasceste selvagem e livre.
Talvez por isso, só agora os teus amigos tenham resolvido ou conseguido, fazer-te a justiça e a homenagem que sempre mereceste em vida. Não sei, nem sou habilitado para o saber e muito menos para o dizer, em que lugar do ranking dos pintores te situavas ou até se te encontravas fora ou dentro dele. Mas sei, isso eu sei, que eras um grande pintor, autêntico, palpável.

Sei que o que fazias não o fazias de qualquer modo. Sempre o fazias como achavas que tinha de ser, com a mesma verdade e entrega que punhas em tudo. Sei, isso eu sei, que poucas vezes ficaste satisfeito com aquilo que fizeste e que poucas vezes – nenhuma vez – consideraste a obra acabada. Sei, isso sei, que só te saía das mãos aquilo que sentias, e nunca um rodriguinho encomendado, por um qualquer comprador. Mas apreciavas os mecenas, porque sabias que os que o são verdadeiramente, amam a arte pela arte e respeitam o artista e o seu trabalho. Apreciava-los, mas nunca tiveste nenhum. Terá sido porque não havia nenhum ou porque lhes constava que tinhas mau feitio e eras um rebelde? Dos amigos, penso que não te podias queixar. Não sei quantos tinhas, nem isso me importa. Basta-me saber que tinhas amigos que nunca te faltaram.

Eras selvagem, sim. Selvagem e indomável. E algumas coisas não fizeste por seres assim. Lembras-te de um sonho comum que tiveste com o Alexandre O'Neill? Fazerem um livro, que chegou a ter forma, e que intitularam de «Capricórnio e o Amor»? Lembras-te de ambos terem destruído esse sonho à mesa da Brasileira e de assim nos terem privado do que teria sido uma boa obra? Lembras-te de teres chegado ao atelier, e com a raiva, teres destruído quase todas as telas que tinhas pintado para esse livro? Sabes que uma das que se salvaram, talvez mesmo a única, ma ofereceste um dia por pensares que ficava em boas mãos? E sabes Júlio, que ficou mesmo? Quando olho para ela é a nossa amizade que está ali, a memória daquelas vezes que telefonavas a dizer que ias jantar a nossa casa, ou tocavas à campainha, simplesmente, como se fosses o irmão que tinha chegado da província. Sempre disseste que a comida estava boa, o que significa que realmente sempre esteve, pois se assim não fosse, terias dito que não prestava. Bom vinho este, dizias ainda. E era quase certo que logo depois de jantar – normalmente só chegavas na altura de caíres no prato da sopa – ­entravas na sala, olhavas para as paredes e com um ar de amigo que aconselha e quer ajudar, dizias «Ainda aqui tens estas merdas? Desfaz-te delas, porque os teus netos nunca as verão porque tudo isto vai desaparecer, o que não deixa de ser uma sorte para eles. Isto não é pintura, é moda, é merda, e vocês como perfeitos ignorantes, vão atrás das modas e dos nomes, do canto de sereia dos marchands e depois é isto que se vê. Uma merda». Bom, é isto. Pintura, é isto. Dizias tu quando olhavas para um Escada, para um Sá Nogueira. Quantas vezes me terás dito isto, Júlio? E, sabes que só agora começo a acreditar em ti e a perceber que estavas certo?
Eram grandes os teus sonhos como eram grandes tuas fantasias.
Quantas coisas deixaste por fazer e que sempre sonhaste ou prometeste
fazer. Mas a realidade nem sempre acompanhava teus sonhos. Os ritmos eram diferentes, como diferentes eram teus hábitos de trabalho, teu ritmo circadiano.
Lembro-me bem de quando e onde nos conhecemos. Foi numa festa em casa de amiga rica, ali ao Campo Pequeno. Lembro-me de quando entrei e te vi, ter pensado que estavas ali deslocado, fora do teu habitat, do teu conceito de vida. Pensei que devias ser o marginal, o intelectual, o artista de estimação, que o dono da casa exibia como animal raro que se conhece. Não tinhas nada a ver com a maioria dos que ali se encontravam e percebi que talvez só te fosse possível falar comigo ou com a nossa comum amiga e dona da casa, da festa e centro das atenções de todos, pelo seu andar de tigre, a profundidade do olhar, a voz sussurrada e dolente, a promessa adivinhada (ou apenas desejada?). Rapidamente percebi que em vez de um já éramos dois os que estavam ali deslocados. E passado pouco tempo chegámos à fala. Lembro-me de me teres dito, sem o teres perguntado a alguém, « você é médico e quase de certeza cirurgião». Pouco tempo mais usaste o você. Conversámos longamente, tuteando, afinámos padrões, que nem tu ou eu queríamos, e encontrámos a dizer-nos «E se nos puséssemos a cavar? Gosto muito da Maria, mas não vale tal sacrifício». Foi pouco depois que disseste que querias fazer o meu retrato, não propriamente o meu, mas o do médico que eu simbolizava. E morreste sem o fazer, apesar de para ti eu ser o amigo e o médico. Mais o amigo que o médico.

Lembras-te do retrato do Camilo que eu encontrei inacabado num vão do teu atelier e que para ali tinhas atirado, pensando que definitivamente? E de te ter pedido que o acabasses porque o achava um quadro espantoso? Tu discordaste e deves ter dito que já era altura de perceber alguma coisa sobre o que era a arte. Eu insisti. Acaba-o, por favor. Passado muito tempo telefonaste-me uma noite, era já madrugada alta, a dizer que ias, nesse momento, levar-me o Camilo que tinhas acabado de pintar. Quando tocaste à porta acompanhado pela tua paixão do momento e o mostraste, ainda fora de casa, esse Camilo que acabaras, eu ia morrendo com o choque. Aquele Camilo não tinha nada a ver com o outro que te pedira para acabares. Era um quadro completamente diferente. Chocou-me sobretudo a cor verde batráquio com que lhe pintaras a cara, contrastando fortemente com um azul berrante e um castanho forte com que o vestiras. Do quadro anterior, por quem me tinha apaixonado, apenas restava, com uma imagem bastante próxima da que eu considerava original, uma Fanny Owen lindíssima e um perfil de um outro Camilo, como que saído de uma nota de Banco. Por cima da Fanny tinhas escrito – Fany. O sinal que distinguia aquilo que realmente sabias, daquilo que pensavas que sabias. Reagi mal e penso que te disse que tinhas estragado o meu Camilo. Logo me disseste que aquele não era o meu Camilo, mas o do Júlio Pereira, pintor. Num daqueles teus gestos teatrais disseste-me ainda que finalmente eu tinha em casa, uma autêntica obra de arte. Nem sei se dormi bem essa noite. O teu Camilo ficou no chão, encostado à parede. Por lá se manteve algum tempo e eu fui-o aceitando e admirando cada vez mais, até que resolvi dar-lhe destaque na parede. Tinhas mais uma vez razão, Júlio. Hoje, eu sei que o teu Camilo é uma grande pintura.
Que sempre foste um grande pintor nunca duvidei. Que sempre fomos amigos, nunca duvidámos. Que devias estar vivo, tenho a certeza.

Agradeço teres-me ensinado a pôr o tabaco no cachimbo. Como um pescador holandês te tinha ensinado a ti, dizias tu. A sabedoria das pressões, do calcar do tabaco. Como uma criança, como um adolescente, como um homem. Não sei se algum dia te perguntei quando tinhas estado na Holanda. Acrescentava alguma coisa à técnica que me ensinaste, saber se o Hans existiu?
Mas nunca conseguiste convencer-me a jogar xadrez contigo. Terá sido porque eras um grande jogador e eu não sei perder?
Por isso, para mim, tu não morreste, mesmo que todos digam que sim e que até fui ao teu funeral, onde não querias nem flores, nem chocolates, nem guarda-chuvas, nem espanhóis ... Mas, ninguém consegue fazer-me acreditar que morreste ..
Decididamente não sei perder, muito menos um amigo. Até breve, Júlio.
O teu amigo incondicional
Carlos Vieira Reis

E, se eu vos contasse? – 15.º programa – a fundação da cruz vermelha portuguesa

Nos tempos antigos, era regra que o vencedor matasse os inimigos feridos e, se alguma vez os poupava, era apenas para os exibir como trofeus e prisioneiros de guerra e depois utilizá-los como escravos. Mas, mesmo nesses tempos, havia excepções e sabe-se, por exemplo, que Cirus, rei dos persas, que dispunha de bons médicos no seu exército, ordenava-lhes que tratassem os caldeus feridos e feitos prisioneiros, de igual modo que tratavam os seus soldados. Os hindus tinham uma lei, chamada Manou, que já alguns séculos antes de Cristo, proibia a condenação à morte dos inimigos desarmados, adormecidos ou feridos.
Mas a primeira grande tentativa de modificar o que até aí era norma, veio da parte do sultão Saladino que, nos fins do século XII, tentou conseguir que os feridos de guerra fossem considerados neutrais; durante a guerra que nesse tempo mantinha contra os Cavaleiros da Ordem de São João Hospitaleiro, o inimigo da altura, acordou com eles a permissão de virem cuidar dos seus feridos no campo do inimigo.
Ao longo dos tempos foram aparecendo tentativas várias de resolver o problema. Jean-Jacques Rousseau, no seu «Contracto Social», escrevia em 1762 que a «guerra não é um conflito entre pessoas, mas entre estados; os combatentes só são inimigos na sua qualidade de soldados e não na de homens, pelo que desde que deponham as armas deixam de ser inimigos».
Mas, o grande passo iniciou-se apenas no século XIX, pela mão de Jean Henry Dunant, que nasceu em Genebra no dia 8 de Maio de 1828, nascido no seio de uma família próspera, respeitada e preocupada com os problemas sociais e o bem estar da comunidade.

Dunant, desde tenra idade, foi imbuído pelo espírito caritativo dos seus progenitores. Iniciou, em 1853, a sua carreira profissional como banqueiro. Posteriormente, investe todos os seus bens na Argélia, colónia francesa, em moinhos de milho. Uma viagem de negócios, com vista a obter de Napoleão III, Imperador de França, autorização para a sua empresa explorar as quedas de água necessárias ao movimento dos seus moinhos, torna-o testemunha de uma sangrenta batalha entre os exércitos austríaco, francês e italiano.
A visão deste campo de batalha, conhecido por Batalha de Solferino, juncado de milhares de mortos sem sepultura e feridos padecendo de atrozes sofrimentos e entregues ao mais completo abandono, sensibilizou Dunant. Tocado por uma imensa piedade, organiza, de imediato, numa das Igrejas de Castiglione, um hospital prestando socorros voluntários com o apoio dos habitantes. «Como irmãos», dizia ele, é que se deviam tratar uns e outros.


Tão impressionado ficou que resolveu escrever um livro sobre essa experiência, que intitulou «Souvenir de Solferino». A divulgação deste livro foi importante pois deu a conhecer a muita gente a crueldade da guerra que até aí a desconhecia, levando assim essa gente a pensar nos pobres soldados feridos na guerra. Dunant nunca mais descansou até que em Fevereiro de 1863, quatro cidadãos se juntaram a Dunant para levar a cabo um projecto de constituição do "Comité Internacional de Socorro a Feridos", que, mais tarde, viria a ser designado "Comité Internacional da Cruz Vermelha". Em resposta ao convite do Comité, especialistas de 16 países reuniram-se em Genebra, em Outubro de 1863, para adoptar as 10 Resoluções que formaram a Carta da Cruz Vermelha. Estavam, pois, definidas as funções e os métodos de trabalho para socorro a feridos. A partir desse momento, a Cruz Vermelha tornou-se uma realidade.
A Conferência Diplomática de 1864, celebrada em Genebra, contando com a presença de 36 delegados de 16 países e a representação oficial de 14 governos, dá lugar ao nascimento do Direito Internacional Humanitário, com a assinatura da I Convenção de Genebra.

Esta Convenção supõe a materialização de um marco jurídico, dentro do qual se podia desenvolver uma acção efectiva de socorro aos feridos. As instalações médicas militares, os veículos e o pessoal sanitário, deviam ser considerados neutros e, deste modo, protegidos, embora com a relutância dos chefes militares que não viam com bons olhos, o importante papel desempenhado pelos civis na organização do serviço de saúde militar. Na primeira página da Convenção de Genebra de 22 de Agosto de 1864, entre outros reis de países europeus, figura o de Sua Majestade o Rei de Portugal e dos Algarves, como um dos fundadores da Convenção, para melhorar a sorte dos militares feridos em campanha. Foi criado o símbolo da Cruz Vermelha, invertendo a bandeira da Suíça, como homenagem ao país onde ela se fundou. Por outro lado e, de certo modo, era a representação do símbolo da caridade usado pelos Pais da Boa Cruz, de Santo Camilo de Lellis. Este símbolo passou também a significar, quando usado como braçadeira, que o portador era enfermeiro voluntário.
A Convenção tinha 10 artigos, que se podem resumir assim – neutralidade das enfermarias, hospitais, ambulâncias e seu pessoal, cuidados e protecção dos feridos de ambas as partes, a dar pelos habitantes da região onde a guerra se desenrolasse, reenvio para casa dos soldados feridos que ficassem inválidos após a sua cura, protecção dos hospitais, enfermarias, depósitos de material e pessoal de saúde, tudo sob a insígnia da Cruz Vermelha. O artigo 9º, destinava-se aos países que não tinham estado presentes, exortando-os a aderirem e a assinarem a Convenção.
A dedicação ao trabalho humanitário em que se envolvera fê-lo descuidar os seus negócios. Abre falência e perde a sua respeitável posição de cidadão de Genebra. Caído em desgraça na sua cidade natal, exila-se em Paris, onde, conservando a fé nos seus ideais, luta, com todas as suas forças, por causas nobres, muitas das quais vingarão anos após a sua morte.
Esquecido, pobre e enfermo é internado num hospital em Heiden, Suiça, onde permanece nos restantes dezoito anos da sua vida. A sua solidão só é quebrada, em 1895, com a visita, ocasional, de um jornalista – Baumberger que, emocionado com a sua história, publica um artigo que altera a atitude do mundo para com Dunant e lhe dá um novo alento, ajudando-o a esquecer a humilhação que sofrera.
Em 1901, reconhecendo-se o seu valor, é agraciado com o primeiro Prémio Nobel da Paz. À data da sua morte, 30 de Outubro de 1910, então com oitenta e dois anos de idade, o prémio estava intacto e destinado, por testamento, ao pagamento das suas dívidas e a obras filantrópicas.
A sangrenta batalha ocorrida, em 1859, em Solferino e o manuscrito de Jean Henry Dunant originaram o nascimento de um movimento humanitário que se estendeu a todos os cantos da terra - A Cruz Vermelha e o Crescente Vermelho.
Em sua homenagem, o dia do seu nascimento é comemorado em todo o mundo como o Dia Mundial da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho.


Ao congresso de 22 de Agosto de 1864, esteve presente, como representante de Portugal, o cirurgião militar José António Marques, que no seu regresso a Portugal, iniciou todas os contactos necessários à constituição em Portugal, da Comissão Portuguesa de Socorro a Feridos e Doentes Militares em Tempo de Guerra.

Formou uma comissão organizadora, que reuniu logo em 11 de Fevereiro de 1865, para discussão dos estatutos. Estes só viriam a ser aprovados, por decreto, em 26 de Maio de 1868. Para além de José António Marques, constituíam essa comissão, mais dois médicos militares, João José de Simas e Bernardino António Gomes e vários civis como o Barão de Wiederhold, Augusto Xavier Palmeirim, António Maria Barbosa e Carlos Cyrilo Machado.
Em 1877, esta comissão foi reformulada, dando lugar à Sociedade Portuguesa da Cruz Vermelha, com estatutos aprovados em 4 de Maio desse ano. Entraram mais sete médicos militares, de que destaco Guilherme José Enes e António da Cunha Belém, dois prestigiados médicos daquele tempo. Foi seu primeiro secretário geral, José António Marques, sendo presidente o General Augusto Xavier Palmeirim. Como protectores o rei D. Luís I, a rainha D. Maria Pia e o rei D. Fernando e vários presidentes honorários, quase todos fidalgos da melhor estirpe.
Para além da sua acção na guerra, a Cruz Vermelha alargou a sua actividade ao tempo de paz, nomeadamente nas reformas higiénicas, na acção social e nas catástrofes naturais, correio, serviço de desaparecidos, campos de prisioneiros, etc...
Nos estatutos da Cruz Vermelha portuguesa, pode ler-se que é sua missão «vulgarizar por meio do ensino e do exercício, o conhecimento dos socorros ministrantes a prestar no caso de todos os desastres, de maneira que esse ensino aproveite, não só ao pessoal de enfermeiros para o serviço de campanha, como também aos agentes de polícia, bombeiros, marítimos, etc...»
Hoje, a Cruz Vermelha está em todo o mundo. Para além do seu símbolo inicial, adoptou outros em função dos credos religiosos e das etnias, como o crescente vermelho, a estrela de David ou o novo cristal Cristal Vermelho.
São regras básicas da Cruz Vermelha:

Os ataques têm de ser limitados aos combatentes
e aos objectivos militares.
Os
civis não podem ser alvo de ataques;
As estruturas civis não podem ser atacadas (casas, escolas, hospitais, igrejas, monumentos históricos);
É proibido utilizar civis para proteger
objectivos militares;
É proibido aos
combatentes disfarçarem-se de civis;
É proibido utilizar a fome nos civis como método de combate;
É proibido atacar os objectos indispensáveis à sobrevivência da população civil (alimentos, terrenos para cultivo, água potável);
É proibido atacar barragens, centrais nucleares e diques se tais ataques causarem baixas entre a população civil.
São proibidos ataques ou armas que atinjam indiscriminadamente pessoas e
objectos civis e militares causando sofrimento excessivo.
São proibidas armas específicas - químicas, biológicas, laser e anti-pessoais que causem cegueira, feridas por fragmentos não detectáveis a raios X, envenenamentos, etc;
É proibido ameaçar a sobrevivência das populações.
Civis, combatentes, feridos e presos têm de ser poupados e tratados humanamente.
Ninguém pode ser sujeito a tortura física ou mental, punição corporal ou tratamento cruel ou degradante;
É proibida a violência sexual;
As partes do conflito têm que assistir e tratar os inimigos feridos e doentes que estão em seu poder;
É proibido matar ou ferir um inimigo que se esteja a render ou
fora de combate;
Os presos têm direito ao respeito e têm que ser tratados de maneira humana;
É proibido fazer reféns;
É proibido obrigar a população civil a deslocar-se;
A chamada "limpeza étnica" está proibida;
As pessoas nas mãos do inimigo têm a possibilidade de trocar mensagens com as suas famílias e de receber assistência humanitária (alimentos, cuidados médicos, assistência psicológica, etc.);
Grupos vulneráveis, como mulheres grávidas e mães que amamentam, crianças não acompanhadas, velhos, etc., têm que receber uma protecção especial;
As crianças com menos de 15 anos não podem ser recrutadas como
combatentes;
Todos têm direito a um processo justo (tribunal imparcial, procedimento regular, etc.). A punição colectiva está proibida.
O pessoal médico e as estruturas sanitárias (hospitais, clínicas, ambulâncias, etc.) têm que ser respeitadas e protegidas, recebendo toda a ajuda possível para a realização das suas missões.
O emblema da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho simboliza a protecção do pessoal médico e das instalações. Ataques a pessoas ou objectos mostrando o emblema são proibidos.
É também proibido utilizar o emblema indevidamente; unidades médicas e transportes não podem ser utilizados para perpetrar actos ofensivos contra o inimigo.
A prioridade no tratamento do ferido ou do doente obedece unicamente a regras médicas.

domingo, julho 23, 2006

E, se eu vos contasse? – 14.º programa – as misericórdias

A saúde em Portugal esteve sempre condicionada por dois factores crónicos – a falta de dinheiro e a má organização ou, melhor dizendo, o mau planeamento. Contudo, ao longo dos tempos, sempre houve gestos correctivos e inovadores que, pelo menos durante algum tempo, ajudaram a uma melhor assistência e a maiores benefícios para a população doente. No fundo, isso sucedeu sempre que alguém parou para pensar ou sempre que se colocou a inteligência ao serviço da saúde. Todo este intróito para lembrar que até ao século XVI, melhor dizendo até aos últimos anos do século XV, continuava a ter-se a noção de que tudo servia para hospital desde que houvesse onde deitar os doentes e eles estivessem protegidos das intempéries. Chamava-se hospital a qualquer local que recolhesse doentes e nunca se cuidava de procurar que esses hospitais tivessem as características próprias dos verdadeiros hospitais desse tempo. Como é bom de ver, estes hospitais desenvolviam-se como cogumelos e bons ou maus tinham sempre uma característica comum que era terem despesas constantes e pesarem no orçamento de quem os sustentava. Foi preciso que alguém fizesse o raciocínio simples, e repleto de senso económico, de concluir que se se juntassem os doentes em verdadeiros e poucos hospitais, se podiam prestar melhores serviços e gastar menos dinheiro. Num outro programa falei-vos disto por alto, quando vos expliquei as razões que levaram à fundação do Hospital Real de Todos os Santos. Como então expliquei, esta concentração de hospitais ridículos num verdadeiro hospital, mostrou-se a medida indicada mas levantou imediatamente um novo problema que era saber quem e como se administravam. Estamos agora a aproximar-nos do tema do programa de hoje, em que tenciono contar-vos como foram criadas as misericórdias, para que serviam e quem teve a boa ideia da sua criação. Costuma afirmar-se e ter-se como certo que a criação das Misericórdias se deve à rainha D. Leonor, viúva de D. João II e irmã de D. Manuel I.E, se é verdade que foi ela a criá-las com o seu poder e despacho régio, não é menos certo que a ideia, e esta é que conta, se deve não a ela, mas a alguém mais versado na arte de pensar e mais virtuoso de sentimentos, por profissão. Não por nacionalismo irracional, mas porque lamento que assim tenha sucedido e não tenha aparecido um português com essa ideia, tenho que confessar que se deve a um espanhol a ideia e o empenho da criação das misericórdias. Chamava-se esse espanhol de nação, como então se dizia, Frei Miguel de Contreiras, nascido em Valência ou em Segóvia, não se sabe ao certo, religioso trinitário, quer dizer da Ordem da Santíssima Trindade, que em 1481 veio viver para Portugal, onde começou a pregar o socorro à pobreza e o alívio e tratamento dos doentes, como as manifestações mais «levantadas» da piedade. A sua palavra e a sua acção depressa se fizeram notar. Corria a cidade de Lisboa sempre acompanhado de um anão que conduzia um burro, com grandes alforges para recolher as dádivas em géneros que a população lhe oferecia por ele ser para eles o pai dos pobres, como lhe chamavam. Depois quando chegava ao largo da Sé, procedia à distribuição dos géneros recebidos por todos os necessitados que ali recorriam. E guardava alguns géneros para, pessoalmente, os ir levar aos presos das cadeias e a doentes acamados nas suas casas. Passado pouco tempo passou a ser o confessor da rainha e, como tal, a ter um acesso fácil à pessoa real e a possibilidade, se bem trabalhada, de influenciar o pensamento da rainha e levá-la a pensar nos problemas que ao frei Miguel Contreiras pareciam inadiáveis. E de tal maneira sensibilizou a rainha para a necessidade de se fazer algo que, em 1498, foi criada com solenidade, no claustro da Sé de Lisboa, mais propriamente na Capela de Nossa Senhora da Piedade, também conhecida por Capela da Terra Solta, porque o pavimento era em terra, a Confraria de Nossa Senhora da Misericórdia. Mas, além do papel da rainha e de Frei Miguel Contreiras há que destacar a acção do Cardeal de Alpedrinha, D. Jorge da Costa que vivia em Roma e era pessoa de grande entendimento e que esteve várias vezes para ser Papa. Quando da eleição de Júlio II este ter-lhe-á dito que só era Papa em nome porque na realidade era ele o verdadeiro Papa. Já tinha sido conselheiro da rainha quando esta quis fazer o Hospital Termal das Caldas da Rainha e mais uma vez foi a pessoa a quem a rainha pediu ajuda e opinião antes de criar a Misericórdia. Terá sido por sua opinião que se seguiria o modelo de Florença no futuro Compromisso da Misericórdia de Lisboa. O Cardeal de Alpedrinha devia ser muito bom homem e na graça de Deus, pois sendo muito baixa a longevidade daquele tempo, ele conseguiu viver até aos 102 anos, devendo ser uma verdadeira excepção só explicável por graça divina. E, desde então, foram os enfermos, até aí, sem amparo recolhidos numas casas provisórias, no Largo de Santo António, concedidas pelo Senado. Esta Confraria teria a sua sede nesta Capela até ao ano de 1534, ano em que foi transferida para um sumptuoso templo mandado construir por D. Manuel I, no local onde hoje se encontra a Igreja da Conceição Velha, na Rua da Alfândega e que já foi inaugurada por D. João III. Era uma igreja em estilo manuelino, sendo seus arquitectos Diogo Boytac e João de Castilho e que rivalizava com o Mosteiro dos Jerónimos e foi completamente destruída no terramoto de 1755. Da sua beleza ainda hoje se pode ajuizar pois a única parte que não foi destruída pelo terramoto, foi uma porta lateral virada a sul e que hoje representa a porta frontal da actual Igreja da Conceição Velha. Ocupava uma grande área e além da grandiosa Igreja da Misericórdia de Lisboa que tinha de largura o actual comprimento da Igreja da Conceição Velha, tinha edifícios destinados a dois recolhimentos, secretaria, cartório e serviços administrativos. Nessa cerimónia foi estabelecido um Compromisso ou um regulamento como hoje dizemos, baseado no existente em Florença numa organização análoga e já existente desde 1350. O compromisso estabelecia que a Misericórdia não se destinava só a ter e gerir hospitais mas a cumprir as 14 obras de misericórdia, as sete do corpo e as sete do espírito. Que tudo se fizesse para tornar iguais os desgraçados aos afortunados. Auxiliavam-se as donzelas pobres a casar, as viúvas pobres com alimentos e dinheiro, os peregrinos com pousada e ajuda, os presos com advogados que os defendessem, os mortos com a possibilidade de enterros dignos e sobretudo os doentes com agasalho e curativo. Quando tudo isto se passou estava D. Manuel em Espanha, mas quando regressou, apoiou a acção da irmã e logo que pôde promoveu todos os meios possíveis para o desenvolvimento da Misericórdia, pelo que em 1516 criou uma dotação especial a que chamou a obra pia e mandou erigir um templo digno para aquela Confraria que acabou por ficar digna como ele pretendia, mas que infelizmente não chegou a ver. Após a destruição pelo terramoto de 1755 da Misericórdia da Rua da Alfândega, foram os seus serviços espalhados por vários edifícios alugados ou cedidos. E só no tempo de D. José e do Marquês de Pombal se resolveu esta situação insustentável, quando por Carta Régia de 6 de Fevereiro de 1768 foi entregue à Irmandade os edifícios que constituíam a Casa Professa dos Jesuítas e a magnífica Igreja de São Roque com os seus tesouros de arte sacra e que se encontravam devolutos havia meses por expulsão da Companhia de Jesus. E, hoje continua a ser a sede da Misericórdia de Lisboa. Com o passar dos anos as Misericórdias foram espalhando-se por todo o país. Logo em 1498, Lagos, Tavira, Montemor-o-Velho, Angra do Heroísmo e Vila Praia da Vitória. No ano seguinte, Porto, Évora e mais umas tantas. Em 1500, Coimbra; Beja, Ponta Delgada e outras. Em 1501 apenas a de Setúbal e em 1502 a de Santarém e Olivença e quase todos os anos se foram fundando outras de que destaco a da minha terra natal, Chaves que data de 1516. No século XV fundaram-se 23 e 139 no século XVI. Todos os séculos se foram fundando Misericórdias e já no século XX ainda se fundaram 107. Com os descobrimentos portugueses as Misericórdias foram sendo criadas pelo mundo fora, existindo já em 1504 a de S. Tomé, a de Ponta Delgada em 1500 e a de Goa em 1511. Passou a ser normal que por cada Misericórdia que se fundasse se constituísse um hospital sob administração daquela Confraria. E a administração mostrou ser eficaz de tal modo que esta situação se manteve por vários séculos e ainda hoje vamos encontrar a vocação hospitalar das nossas Misericórdias, que tendo perdido alguns dos seus hospitais na sequência do 25 de Abril de 1974, têm vindo a recuperar essa função, dando provas de eficácia e qualidade de serviços. Nunca a Igreja e o seu poder estabelecido estiveram ausentes do processo de transformação dos cuidados hospitalares. Quando D. João II pensou em reunir as dezenas de pequenos hospitais de Lisboa num só, o de Todos os Santos pediu a devida autorização papal que lhe foi concedida por Bula papal de Sixto IV, em 13 de Agosto de 1479, mas apenas para ter efeito em Lisboa. Apenas em 21 de Fevereiro de 1485 o Papa Inocêncio VIII, através de Bula estendeu essa autorização a todo o país. O Hospital de Todos os Santos foi um dos que esteve sob administração da Misericórdia por alvará de D. Sebastião em que diz que faz essa entrega porque « por se ter visto, por experiência de muitos anos a fidelidade e zelo, fervor e caridade, com que os irmãos servem os cargos da dita irmandade e aceitam e sofrem os trabalhos dela, pelo que se deve com razão esperar redução de gastos e de muitos ordenados... por isso em todas as cidades e vilas do Reino se entregava às Misericórdias a administração e governança dos seus hospitais».

sábado, julho 22, 2006

e, seu eu vos contasse? – 13.º programa – o hospital real de todos os santos

Este hospital resultou da necessidade sentida de concentrar num só hospital as dezenas que havia em Lisboa dos finais do século XV e princípio do XVI. Havia nesse tempo mais de cinquenta hospitais em Lisboa, todos pequenos e sem condições e destinados a determinadas profissões ou doenças. Havia o dos tanoeiros, o dos sapateiros, o dos carpinteiros da Ribeira, o dos pescadores, dos alfaiates, dos marítimos, dos escolares, dos hortelãos e mais um sem número de profissões e dezenas de outros com nome de santos ou com nomes estranhíssimos, como o de Cata-que-farás ali para Santa Justa. Para acabar com esta situação e por entender que Lisboa necessitava de um grande hospital, moderno e eficaz, D. João II resolveu mandar construir um dos mais modernos e grandes hospitais de toda a Europa, no dizer dos eruditos daquele tempo. Seria chamado de Todos os Santos exactamente porque nele se juntaram todos os doentes vindos daquelas dezenas de hospitais com nome de santos.
Viria a ser concluído no ano de 1501, sendo já rei D. Manuel I. Situava-se entre o Rossio e a Praça da Figueira e junto da igreja de S. Domingos. Era um edifício de grande beleza, de que ressaltavam a escadaria e a porta da igreja toda em jaspe. A construção base do hospital desenvolvia-se em cruz, em que um dos braços era a igreja e os outros três braços correspondiam às três grandes enfermarias, que se chamavam de Santa Clara, para as mulheres, a de São Cosme para os feridos e a de São Vicente para os febricitantes, para os que tinham febre. Esta disposição em cruz permitia que os doentes pudessem assistir à missa das suas próprias camas. No côncavo de cada dois braços havia um claustro com jardim e horta e uma fonte central, que davam bom ar para as enfermarias e os géneros vegetais para a alimentação dos doentes. Havia ainda da parte de trás o criandário ou a chamada casa dos enjeitados e mais duas pequenas salas reservadas para as doenças contagiosas. A capacidade inicial deste hospital era de 98 camas, o que se mostrou rapidamente insuficiente dada a grande procura por parte dos doentes. Começaram a deitar dois doentes por cama, como naquela época sucedia em vários hospitais da Europa e às vezes mesmo três. Por baixo destas enfermarias havia várias salas onde se acolhiam os peregrinos e os pobres que pediam esmola pela cidade. O pessoal médico era constituído inicialmente por um médico e dois cirurgiões, um dos quais dormia no hospital, mas passado pouco tempo eram já dois médicos e três cirurgiões e mais um mestre que curava o morbo serpentino. A arquitectura deste hospital era extremamente moderna e funcional, Para além daquele pormenor já referido de os doentes poderem assistir à missa das suas camas, causava admiração a quem visitava o hospital a forma como as camas estavam construídas, tendo todas um cacifo superior onde se guardava a roupa do doente e havia um sistema de porta falsa que permitia retirar os cadáveres dos doentes quando estes morriam, sem que os outros doentes disso se apercebessem. Havia também enfermeiros e enfermeiras para tratarem exclusivamente doentes do mesmo sexo.
(Copia de azulejo do hospital com o O e o S de Omnie Sanctorum)
Com o tempo foram-se construindo mais enfermarias e a capacidade de internamento do hospital foi aumentando para os 600 doentes e mesmo para os 700 doentes que era quantos tinha internados aquando da sua destruição durante o terramoto de 1755.