terça-feira, novembro 29, 2005

o motor da história

Numa dia de festa, como é hoje, pode parecer estranho e, no mínimo, inconveniente, que eu venha quebrar a alegria desta celebração com palavras, que por serem de História, podem sugerir, ou ser mesmo, palavras com sabor a mofo.
Mais deslocadas poderão ser, se pensarmos que o que mais interessa nesta celebração não é falar do passado, mas sobretudo do futuro desta antena do Serviço de Saúde Militar e por arrasto deste Serviço no seu todo.
Se, de facto, assim fosse, teria sido eu o primeiro a escusar-me ao convite que muito gentil e benevolentemente o Senhor Director me fez. Sobretudo, tendo em conta que só uma forte relação de amizade justificaria tal convite, mal pareceria que eu viesse aqui colocar uma nódoa negra e bafienta num dia que se quer festivo, estando-me nas tintas para a amizade. E, evidentemente, colocando mal o meu amigo, perante vós.
Mas, não é do bolor da História que eu vos quero falar, mas do motor que ela pode ser para o progresso das Instituições, para o engrandecimento das mentalidades e para o desenvolvimento da ciência médica.
Vejo já, entre vós, quem me queira interromper e argumentar, contrapondo que nunca se ouviu tamanha barbaridade. Onde se viu a História fazer progredir e avançar fosse o que fosse?
Mas, como a delicadeza e educação de quem me ouve não vai, por certo, levar a essa pronta intervenção contraditória, eu fico com a vantagem de poder prosseguir, e tentar demonstrar, o que até aqui parece indemonstrável.
Como avança o mundo? Com progressos por um lado e retrocessos pelo outro. Se agarrarmos no dia de hoje, que só é presente até amanhã, vemos logo que a noção de passado é de uma grande relatividade e é um engano profundo pensarmos que, para ser passado, tem que ter distância. Se cometermos esse erro, podemos cair naturalmente na conclusão simples e óbvia que o passado pouco nos deixou de positivo e, por exagero manifesto, pode até pensar-se que tínhamos passado bem sem ele. Mas, este é um raciocínio muito simplista e niilista.
O passado, e a História que é o seu registo, foram sempre fonte de progresso. Ou porque o houve, realmente, ou pela afirmação dos erros cometidos, como exemplos a não seguir.
Quem não olhar para isso, está pronto a persistir no erro. E, então, vai seguramente haver retrocesso. É por isso que a lição da História é importante. Pela positiva, quando o foi, e pela negativa, permitindo tirar lições e ensinamentos para o futuro, que, relembro, é já amanhã.
Mas, não queria persistir muito tempo nesta faceta filosófica da História e preferia antes passar a olhar a História no seu capítulo restrito da Medicina e ainda mais especificamente na sua secção de Medicina Militar.
Queria apenas referir alguns factos que me parecem muito importantes e que a maioria das vezes estão afastados do pensamento imediato de quem nesta agitada vida que vivemos ainda encontra algum tempo para pensar.
História da Medicina Militar. Que raio de coisa é essa? Então ela não é igual à História da Medicina? O que é que a distingue? Talvez fosse atrevimento a mais, e verdade a menos, dizer que, absolutamente tudo. Como seria ignorância a mais e verdade a menos, dizer que nada as distingue.
Tenho a tarefa facilitada, porque falando para uma assembleia de militares, é garantia quase absoluta que fazer referência às guerras é falar de qualquer coisa com sentido real e quase palpável. Sendo assim, poderia desde já avançar com a primeira afirmação a ter em conta, e dizer que a Medicina Militar tem a sua própria História e que contribuiu, e continua a contribuir, para o progresso da Medicina em latu sensu.
No tempo em que a Cirurgia era uma parente pobre da Medicina e era considerada uma mera arte que podia ser exercida por todos que para isso mostrassem aptidão manual, já que de estudos não careciam, foi a cirurgia militar a mostrar como se tratavam as feridas de armas brancas e posteriormente após a introdução da pólvora, como se tratavam as feridas por arma de fogo. As amputações e o desenvolvimento das várias técnicas têm raízes profundas nos campos de batalha e na cirurgia militar. Se a isto acrescentarmos que o pai da Cirurgia mundial foi Ambroise Paré, esse ilustre cirurgião militar dos Exércitos franceses que serviu vários reis e que para além de ser um exímio cirurgião era uma grande figura de homem, penso esclarecer de vez que o desenvolvimento da Cirurgia está indissoluvelmente ligado à cirurgia militar. Embora fugindo um pouco ao tema, não resisto a referir uma célebre frase de Paré, quando foi nomeado médico do Rei de França. Quando este lhe disse que, a partir desse momento, esperava que o tratasse ainda melhor, Paré respondeu-lhe, simplesmente, que tal não faria, pela simples razão que, a todos, sem excepção, tratava como se fossem reis. Uma boa resposta e uma boa lição de moral e ética médicas.
Tudo isto passava até ao século XVI. E, depois disso? Quem vemos nós tratando os feridos nas frentes de batalha? Simplesmente os melhores cirurgiões que a Europa tinha, muitos dos quais se notabilizaram, de tal modo, que ainda hoje são padrões respeitados da Cirurgia.
Não é por acaso que tenho falado, só de Cirurgia. È que, embora tendo em conta, que a Cirurgia era uma actividade médica desconsiderada, por parte dos médicos que faziam os seus cursos nas Universidades, o facto é que os maiores progressos se verificaram na cirurgia e o exercício da Medicina encontrou-se até ao século XX num estado de adormecimento e de apatia, e não se pode dizer que a forma de tratar as doenças tenha sofrido alterações que mereçam registo. Se disser que os Aforismos de Hipócrates ainda se ensinavam, e eram seguidos, em finais do século XIX podemos entender bem o estado da Medicina daquele tempo. Há que ressalvar, no entanto, esporádicos avanços, nomeadamente na Anatomia (que em verdade vinha ajudar a cirurgia) e no uso de alguns medicamentos.
Mas, voltemos à Medicina Militar. Quando é que verdadeiramente se pode dizer que a Medicina se desenvolveu e se transformou no que é hoje ? A resposta é chocante, mas é verdadeira. Nos últimos 40 anos. E, se se perguntar agora o que é que fez com que a Medicina evoluísse desta maneira, em tão escasso espaço de tempo? A resposta é igualmente chocante e verdadeira. As guerras. Não tivesse havido a guerra da Coreia e posteriormente a do Vietname e seguramente estaríamos ainda mais atrasados. A necessidade de tratar feridos em massa, ajudada pelo desenvolvimento de novas tecnologias de guerra, que culminou com a aventura do espaço, permitiu os pulos, cada vez mais longos e cada vez mais altos, que a Medicina tem dado.
Como é que nasce a ideia de cuidados intensivos, senão daquelas duas guerras? Como se desenvolve a neurocirurgia, a ortopedia, a cirurgia de queimados, as próteses, a autotransfusão, um sem número de técnicas, senão por necessidade de dar resposta aos doentes, feridos e deficientes de guerra?
A própria ideia de stress foi assim que apareceu. Foi a partir de esmagamentos, em soldados, que o conceito se desenvolveu. O tão conhecido ADN, como e quando aparece? Há escassos 40 anos. E o enorme contributo dos aviões de caça supersónicos e dos submarinos nucleares? A quantos estudos isso obrigou e quantas vantagens vieram para os doentes em geral.
Onde é que o Presidente dos EUA se trata? No Hospital de Walter Reed, naturalmente. A Medicina Militar é uma medicina diferenciada, humana e tecnologicamente bem equipada.
Em Agosto próximo vai decorrer em Lisboa o Congresso Mundial de Cirurgia. Qual é uma das suas secções? O Forum Ambroise Paré, discutindo a especificidade e o futuro da cirurgia de guerra.
Ainda pensam que não se justifica falar em História da Medicina Militar?
E que fizemos nós portugueses no meio disto tudo? Que aproveitamos nós da História e da guerra colonial? A resposta é triste, mas é verdadeira. Nada.
Da História continuamos a babar-nos com o que alguns médicos ilustres fizeram, e a recordar os seus nomes. Quer civis, quer militares. E da guerra? O zero absoluto. Para além do enriquecimento humano, profissional e pessoal de cada um dos médicos que a fizeram e que ali puderam viver uma experiência profissional inesquecível, o que resultou a mais do que isso? Eu repito. O zero absoluto.
Não houve a capacidade de atentar na lição da História e, recordar apenas a mais recente, bastaria. Aonde, a Directiva superior que determinasse recolha obrigatória de informações, comparações de resultados, estudos concertados, políticas de actuação comuns? Aonde? Como diria o Esteves, todos à molhada e fé em Deus. Cada um usando técnicas, métodos e medicamentos a seu belo prazer, impossibilitando estudos e possíveis progressos.
Que ficou realmente da guerra colonial no que à Medicina respeita? O zero absoluto em termos de País e uma experiência única para quem lá esteve.
Não creio que houvesse grande vantagem em que a Comissão encarregada de fazer a História da Guerra Colonial tentasse fazer agora algum estudo, mas o facto de ela não integrar nenhum médico militar que a tenha feito, é prova clara que se continua autista nesta matéria.
E, neste momento? O tal que já é história amanhã. Alguma coisa é diferente? Por força de pertencermos à Nato, alguns médicos militares fazem parte integrante e de direito de alguns Grupos de Trabalho que se encarregam de estudar vários aspectos directamente ligados à Medicina Militar. Todos, à sua maneira, fazem o melhor que podem e sabem. E, vão produzindo trabalho. Mas, pergunta-se, a quem aproveita? A título de exemplo posso referir-vos que, durante dez anos, pertenci como representante de Portugal ao Grupo de Trabalho de Emergência Médica. O nosso trabalho foi reconhecido pelo Plenário do Euromed como tendo muito mérito e decidiu que ele devia ser vertido em livro, que seria a bíblia da emergência médica, para uso dos médicos em serviço no 1º e 2º escalões. O livro foi editado pela Itália que o distribuiu por todos os Países e com a recomendação de que haveria conveniência em que cada país o traduzisse na sua própria língua. O que se fez em Portugal? Que fosse traduzido já se não esperava, mas esperava-se ainda, que, pelo menos, fosse dado a conhecer a todos os médicos militares e lhe fosse distribuído. Na reunião do Vimeiro, em princípio deste mês, ficou claro que ninguém o conhecia. Os exemplares, que a Itália pagou, repousam em gavetas ou prateleiras para exclusiva leitura do pó e da traça.
Isto é um exemplo, mas é já História. No nosso caso, quando seremos capazes de olhar e construir o futuro olhando os erros da nossa História, já que pouco mais temos para aprender do que não cair na sua repetição e tudo fazermos para os evitar.
Foi uma passagem rápida pela História da Medicina Militar, como convinha numa palestra deste tipo. Muito gostaria que tivesse conseguido despertar o interesse de alguns, para um conhecimento mais pormenorizado desta matéria. Terei sido pessimista, mas não fui com certeza menos verdadeiro.
Muito obrigado a todos.

sábado, novembro 26, 2005

a ética na história da medicina

Quando tomei conhecimento de que o título da palestra era A Ética na História da Medicina, devo confessar que baloucei, mesmo sem me ter dado conta da terrível empreitada que me tinha sido confiada.
A ética, só por si, é assunto de se lhe tirar o chapéu. Querer falar dela na história da medicina é de fugir. E agora, Carlos? Que fazer com este tema que me aterrou no colo? Todas as formas de abordar o tema, me pareciam pouco interessantes e muito difíceis de tratar em tão pouco tempo, de preparação da palestra e de apresentação da mesma.
Creio que foi durante o sono, ou o sonho, que me veio a ideia de apresentar este tema tomando como base os juramentos médicos, partindo do princípio que eles contariam a ética médica ao longo dos tempos. Quando esta ideia apareceu, sucedeu-me como nos leilões, arrematei-a.
E aqui estou para vos dar conta do que consegui fazer com este tema. Desde já vos peço desculpa pelas palavras demasiado cinzentas, para meu gosto, que vos vou fazer ouvir. Mas outras não se abeiraram de mim, nem quiseram colorir meu discurso. Ainda por cima temo que vá longo, mas isso, como dizia não sei quem, foi apenas porque não tive tempo bastante para o fazer mais pequeno.
Embora o esqueleto desta palestra seja o conjunto de juramentos médicos que arrebanhei, terei que iniciar a abordagem dos mesmos com algumas palavras generalistas sobre ética, moral e deontologia.
Porquê se fala tanto em ética, hoje?
Porque num mundo em que os princípios morais oscilam, são postos constantemente em dúvida, se apresentam diferentes de sociedade para sociedade, de religião para religião, mesmo de indivíduo para indivíduo, a Moral, como um todo, deixou de governar ou de orientar o cidadão.
Isso levou a que as sociedades procurem, através de leis civis, colmatar aquela alteração, porque continua a ser indispensável haver directrizes. Só que há leis morais que não podem ser substituídas completamente por leis civis. Então, grupos de várias naturezas, social, profissional, etária, ideológica, procuram encontrar uma via intermédia que dê solução ao vazio provocado pela perda de, e da, força da Moral. É assim que se refugiam na Ética. Se atentarmos bem, hoje em dia, é raro ouvir falar-se em moral, a menos que seja para afirmar que cada vez há menos e, em contrapartida, raro será o dia em que não ouvimos nos midia a ética ser invocada umas dúzias de vezes.
O que são uma e outra?
Moral vem do latim Mores e Ética vem do grego Etikon – e ambas significam Costumes.
Deontologia vem de Deontos – o Dever.
A Deontologia constitui um ramo da Ética, podendo definir-se como a ética profissional.
Há quem afirme que a ética é a ciência da moral. Outros entendem que a ética é a moral aplicada.
A moral vive da noção do bem e do mal que são noções de carácter moral, filosóficas. Por isso os filósofos foram tratando destes assuntos ao longo dos tempos.
Sócrates atendia ao conteúdo do bem moral. Era uma ética do bem.
Platão optou por uma ética de fins. Se estes são bons, também o são a intenção, o saber e o poder.
Aristóteles colocou o bem moral, como actuação perfeita do homem, o que lhe permitirá, usando a inteligência prática ou prudência, a situar a virtude em rigorosa equidistância.
Para os epicuristas a ética não seria o estudo de um bem objectivo em si.
Os estóicos acentuaram uma ética do dever e do ser.
O cristianismo deu lugar à ética cristã, ontológica e teleológica, por isso o bem ético encontra-se inserido na consecução dos próprios fins da natureza e da sua obra, nas virtudes específicas e no valor de cada ser.
A partir de Kant, a ética ficou independente das ideias religiosas e transformou-se numa ética do dever, da determinação da verdade.
A revolução industrial ou social teve reflexos importantes no relacionamento entre as pessoas e portanto na ética. Criou-se a ética da era industrial.
No que respeita a matéria médica, a ética do médico disponível, cheio de bondade, sempre pronto a sacrificar o seu descanso pelos doentes, muitas vezes sem qualquer paga, deu origem a uma nova ética: a do profissional de saúde. Onde se apreciavam qualidades morais, avaliam-se agora qualidades técnicas.
As correntes da ética e da moral evoluíram sempre paralelamente às escolas filosóficas.
A moral é a ciência do comportamento espontâneo, porque estuda o comportamento adquirido durante a formação do indivíduo, nas fases mais precoces da sua vida, intrínseco, quase interiorizado, como tal espontâneo, constituindo a consciência de cada um.
A ética é a ciência do comportamento elaborado, interessado no comportamento perante as novidades, as tecnologias avançadas; resulta de conceitos muito discutidos, constituindo por fim um Código.
Com a evolução acelerada, maior divulgação e absorção mais precoce dos conhecimentos, muitos dos conceitos éticos transformam-se em conceitos morais.
Tanto no que se refere à moral como à ética, importa definir não só o que deve ser, mas também o que não deve ser, o moral e o imoral, o ético ou o anti-ético.
Muitos dos princípios considerados éticos nos séculos passados, deixaram hoje de o ser, porque a evolução da ciência e da tecnologia assim o tem exigido.
O código ético fica situado entre a Moral e a Ética. E só existe porque os homens não cumprem ou não aceitam os princípios morais.
Um certo número de elementos de carácter social ou pessoal, os conceitos científicos, tecnológicos, as noções morais ou para-morais, a luta entre o saber e o sentir, a importância da emotividade, as modas filosóficas, constituem factores determinantes no sentido ético do comportamento das sociedades. Existem outros factores, mais estáticos, que têm a ver com as características dos povos, o seu modo de ser e estar que, por exemplo, separam os povos nórdicos dos mediterrânicos.
Ao longo dos séculos, a noção de ética tem sofrido uma evolução permanente, o mesmo não se passando, de modo tão marcado, com a noção de Moral, porque esta se apoia na existência do Bem e do Mal. Por isso, a Moral é teoria, elaboração mental. À Ética não interessa o que deve ser ou não deve ser porque se baseia nos factos, na ocorrência. A ética depende do que ocorre, do que acontece, da novidade.
Nas últimas décadas a Ética passou a ser preocupação dos profissionais de várias áreas, mais do que dos próprios filósofos.
Um pouco por todos os lados, formam-se comissões, integradas por indivíduos que se esforçam em criar princípios éticos relacionados com as suas profissões, que por vezes são princípios de natureza moral, não de natureza ética; porque na sua maioria apontam o que deve ser ou o que não deve ser que, como se sabe, são princípios morais.
A moral é individual, decide-se no próprio indivíduo, na sua consciência; a ética é recíproca ou colectiva, um contracto com aceitação das partes.
A moral é resultado de preceitos, a ética resultado de confrontos de ideias. Enquanto o tratador e o doente estão de acordo, não é exigida a intervenção da ética.
A moral propõe, aconselha, mas cada um decide por si; a ética impõe, e uma vez estabelecida, é entendida como lei que não permite incumprimento.
A moral diz como deve ser, a ética diz o que tem de se fazer.
A moral é ampla, a ética restrita, porque se refere apenas a campos determinados da actividade humana.
A moral baseia-se em princípios, a ética em consequências. Quais as consequências da interrupção voluntária de gravidez, por exemplo.
A moral é independente, a ética é condicionada, pela lei geral do país, pela moral, pela deontologia, pelos condicionalismos da profissão e da tecnologia.
A moral é abstracta, a ética concreta, tem em mira uma aplicação concreta. Depende de uma prática e desligada desta deixa de ter consistência.
A moral realiza-se numa Doutrina, a ética num Código.
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Há mais de dois milénios que o Corpo médico se rege, ou procura orientar-se, por verdades e princípios essenciais que, sendo a base indis­cutível da sua independência e liberdade profissionais, constituem a trama e a estrutura da própria independência e liberdade dos doentes que se lhe entregam.
Independência e liberdade do doente, fundamento da liberdade e independência do médico e seu limite. São elas, precisamente, a Independência e Liberdade, que transparecem e ressaltam nos Juramentos ou nas Preces que ecoam desde há séculos até aos nossos dias, como compromissos do Corpo Médico perante o doente, perante a sociedade, perante a moral e perante Deus.

Código de Hamurabi, 1690 AC
Refere todo o corpo legislativo de Hamurabi e faz menção a várias profissões, entre as quais a médica. Por isso, não se pode considerar um Juramento, até porque não é escrito por médico. No entanto nos números 215 a 227, traz sentenças sobre a prática e conduta médica que devem ser o primeiro registo de ética médica.

Juramento de Hipócrates, 400 AC
Juro por Apolo, médico, Asclépio, Hygeia e Panaceia, tomando como testemunhas todos os deuses e deusas, cumprir segundo o meu poder e o meu discernimento este juramento e este compromisso escrito.
Juro considerar como igual de meus pais, Aquele que me tiver ensinado a Arte da medicina; partilhar com ele a subsistência e prover às suas carências, se se encontrar em estado de necessidade; olhar os seus filhos como irmãos, e se eles quiserem estudar esta arte, ensi­nar-lha sem salário, nem contrato; comunicar os preceitos gerais, as lições orais e todo o resto da doutrina aos meus filhos, aos do meu mes­tre e aos discípulos matriculados e ajuramentados segundo a lei médica, mas a nenhum outro.
Farei seguir o regime dietético adequado aos doentes segundo o meu poder e o meu discernimento; para seu prejuízo e seu mal ... não. E não darei, seja quem for que mo peça, uma droga homicida nem toma­rei a iniciativa de semelhante sugestão; da mesma forma não darei a nenhuma mulher um pessário abortivo.
Pela castidade e santidade salvaguardarei a minha vida e a minha profissão. Não talharei os calculosos e deixarei esta prática a profissionais.
Em qualquer casa em que deva entrar, guiar-me-ei pela utilidade dos doentes, evitando todo o prejuízo voluntário e corruptor e, muito particularmente, as atitudes lascivas no corpo das mulheres ou dos ho­mens, quer sejam livres ou escravos.
As coisas que, no exercício ou fora do exercício da minha arte, puder ver e ouvir sobre a existência dos homens e que não devam ser divulgadas fora, calá-las-ei, entendendo que estas coisas têm direito ao segredo dos Mistérios. .
Se cumprir até ao fim este juramento e o honrar, que me seja dado gozar dos frutos da vida e desta arte, honrado para sempre por todos os homens. Mas se o violar e for perjuro, que me aconteça o inverso.

Juramento Grego (Século IV ou V), de autor desconhecido.
Ao grande Deus eu juro em palavras sinceras, que nunca destruirei por doença nenhum homem estrangeiro ou compatriota, à custa de prá­ticas homicidas; que nunca ninguém conseguirá peitar-me para me levar a cometer o horrível crime de dar a alguém remédios nocivos, capazes de lhe causar um mal mortal; que, mesmo por amizade ou compaixão, nunca eu me incumbirei de os ministrar a quem quer que seja.
Ergo ao céu mãos piedosas para que em tudo não tenha senão pensamentos isentos de manchas de crime. Esforçar-me-ei por fazer tudo quanto possa para salvar os doentes e em todos procurarei manter a saúde que conserva a vida.»

Juramento Médico de Assaph, médico judeu do século VII
Eis a aliança que Assaph, filho de Berakyahou e Yahanan, filho de Zabda, concluíram com seus discípulos que ajuramentaram nestes termos:
Não sejais de parecer de matar quem quer que seja com sucos de raízes e não façais beber uma poção abortiva a uma mulher grávida por adultério.
Não vos deixeis tentar pela beleza duma mulher e não cometais adultério com ela.
Não divulgareis nenhum dos segredos que vos confiarem e não acei­tareis por nenhum preço prejudicar ou destruir.
Não cerrareis o coração à piedade para com os pobres e os de­serdados, para os tratar e não direis que o bem é mal e que o mal é bem.
Não deveis lançar-vos na via dos charlatães que encantam, exor­cisam e enfeitiçam, a fim de separar o marido da sua querida esposa, e esta do marido que escolheu na sua juventude.
Não vos deixareis tentar por nenhuma riqueza e por nenhuma vantagem para favorecer um acto de deboche.
Não recorrais nunca à arte dos idólatras para cuidar quem quer que seja e não tenhais confiança nos seus métodos terapêuticos.
Sede fortes e não vos deixeis desencorajar, porque os vossos esfor­ços serão recompensados. Deus estará convosco se vós estais com Ele, se conservais a Sua aliança e se seguis as Suas leis e se Lhe permaneceis fiéis. Então sereis considerados como Santos aos olhos de todos os ho­mens e eles dirão: Feliz o povo a quem isso sucede - Feliz o povo de quem o Eterno é o Deus.
Os discípulos responderam então, dizendo: Tudo o que nos orde­nastes o faremos, porque são os mandamentos de Torach e nós devemos cumpri-los de todo o coração, de toda a nossa alma e com todo o nosso poder.
A aspereza do ganho não deverá nunca incitar-vos a ajudar quem quer que seja a conspurcar uma alma inocente.
Não preparareis veneno para um homem ou para uma mulher que quisesse matar o seu próximo. Também não direis, a composição de tais venenos e não os ministrareis a ninguém, nem sequer, de tal falareis.
Não vos carregareis de sangue (de crimes) na prática da profissão médica.
Não provocareis intencionalmente uma doença a um ser humano. Também não provocareis uma enfermidade a um homem.
Não vos apresseis a cortar a carne humana com instrumentos de ferro ou com o cautério e não tomeis nunca decisão sem ter, previa­mente, duas ou três vezes, examinado bem os factos.
Não vos deixeis dominar por um espírito de altivez; elevai, pelo contrário, o vosso coração.
Não conserveis rancor, nem animosidade vingativa contra um doente, e não formulareis propósitos que sejam detestáveis a Deus.
Observai, pelo contrário, as Suas prescrições e os Seus mandamentos, e segui pelas Suas vias, para que encontreis graça a Seus olhos e sejais puros, sinceros e justos.
É assim que Assaph e Yohanan exortaram seus discípulos.

Prece de Moisés Maimonide, século XII
Ó Deus inundai a minha alma de amor pela Arte e por todas as criaturas. Não admitais que a sede do lucro e o desejo da glória influenciem no exercício da minha Arte, porque os inimigos da verdade e do amor dos homens poderiam facilmente iludir-me , e afastar-me do nobre dever de fazer o bem aos Teus Filhos.
Mantém a força do meu coração afim de que ele esteja sempre pronto a servir o pobre e o rico, o amigo e o inimigo, o bom e o mau. Fazei com que eu não veja senão o Homem na pessoa daquele que sofre.
Que o meu espírito permaneça esclarecido junto do leito do doente que ele não seja distraído por nenhum pensamento estranho, afim de que tenha presente tudo o que a experiência e a ciência lhe ensinaram; porque grandes e sublimes são as investigações científicas que têm por objectivo conservar a saúde e a vida de todas as criaturas. Fazei com que os meus doentes tenham confiança na minha Arte, que acatem os meus conselhos e sigam as minhas prescrições. Afastai do seu leito os charlatães, a legião de familiares com mil e uma sugestões e os «entendidos» que sabem sempre tudo, casta de gente perigosa que, por vaidade, faz malograr as melhores intenções da Arte e conduz muitas vezes os doentes à morte.
Quando os ignorantes me difamarem e escarnecerem, fazei com que o amor à minha Arte me sirva de couraça e me torne invulnerável de forma que eu possa perseverar na verdade, sem consideração pelo prestígio, renome e idade dos meus inimigos. ­
Concedei-me, meu Deus, indulgência e paciência em face dos doen­tes teimosos e grosseiros.
Fazei com que eu seja moderado em tudo, mas insaciável no meu amor pela ciência.
Afastai de mim, ó meu Deus, a ideia de que eu tudo posso.
Dai-me a força, a vontade e a ocasião de alargar cada vez mais os meus conhecimentos. Eu sou capaz de descobrir hoje no meu saber coi­sas que ontem nem imaginava, mas o espírito do Homem penetra sem­pre cada vez mais longe».

Juramento de Amato Lusitano, feito em Salónica, no ano do Mundo 5.319 (1559 da nossa era).
Juro perante Deus imortal e pelos seus dez santíssimos sacramentos, dados no Monte Sinai ao Povo Hebreu, por intermédio de Moisés, após o cativeiro no Egipto, que na minha clínica nunca tive mais a peito do que promover que a Fé intacta das coisas chegasse ao conhecimento dos vindouros.
Nada fingi, acrescentei ou alterei em minha honra ou que não fosse em benefício dos mortais.
Nunca lisonjeei, nem censurei ninguém ou fui indulgente com quem quer que fosse por motivo de amizades particulares;
Sempre em tudo exigi a verdade;
Se sou perjuro, caia sobre mim a ira do Senhor e de Rafael seu Ministro e ninguém mais tenha confiança no exercício da minha arte;
Quanto a honorários, que se costuma dar aos médicos, também fui sempre parcimonioso no pedir, tendo tratado muita gente com mediana recompensa e muita outra gratuitamente.
Muitas vezes rejeitei firmemente grandes salários, tendo sempre mais em vista que os doentes por minha intervenção recuperassem a saúde do que tornar-me mais rico pela sua liberalidade ou pelos seus dinheiros;
Para tratar os doentes, jamais cuidei de saber se eram hebreus, cristãos, ou sequazes da Lei Maometana;
Nunca provoquei a doença;
Nos prognósticos sempre disse o que sentia;
Não favoreci um farmacêutico mais do que outro, a não ser quando nalgum reconhecia, por ventura, mais perícia na arte e mais bondade no coração, porque então o preferia aos demais;
Ao receitar sempre atendi às possibilidades pecuniárias do doente, usando de relativa ponderação nos medicamentos prescritos;
Nunca divulguei o segredo a mim confiado.
Nunca a ninguém propinei poção venenosa;
Com a minha intervenção nunca foi provocado o aborto;
Nas minhas consultas e visitas médicas femininas nunca pratiquei a menor torpeza;
Em suma, jamais fiz coisa de que se envergonhasse um Médico preclaro e egrégio.
Sempre tive diante dos olhos, para os imitar, os exemplos de Hipócrates e Galeno, os Pais da Medicina, não desprezando as Obras Monumentais de alguns outros excelentes Mestres na Arte Médica;
Fui sempre diligente no estudo e, por tal forma, que nenhuma ocupação ou circunstância, por mais urgente que fosse, me desviou da leitura dos bons autores;
Nem o prejuízo dos interesses particulares, nem as viagens por mar, nem as minhas pequenas deambulações por terra, nem por fim o próprio exílio, me abalaram a alma, como convém ao Homem Sábio;
Os discípulos que até hoje tenho tido, em grande número e em lugar dos filhos, tenho educado, sempre os ensinei muito sinceramente a que se inspirassem no exemplo dos bons;
Os meus livros de Medicina nunca os publiquei com outra ambição que não fosse o contribuir de qualquer modo para a saúde da Humanidade;
Se o consegui, deixo a resposta ao julgamento dos outros, na certeza de que tal foi sempre a minha intenção e o maior dos meus desejos.

A Prece dos Médicos ou «Thephilat Herofim», de Jacob Zahalou, médico e rabino em Itália (1630-1693).
Senhor do Universo, que criaste o céu e todos os seus hóspedes, a terra e tudo o que sobre ela vive, os mares e tudo o que eles contêm. Tu fazes nascer e dás a vida a tudo. Todos os seres dos Céus se prosternaram diante de Ti.
Não há ninguém entre os superiores ou os inferiores que ousasse perguntar-te o que fazes. Criaste o homem da poeira da terra, e insuflaste-lhe a vida através das narinas. Tornaste-Te o Senhor de toda a Tua obra, de tudo o que se encontra sob os Teus pés. Tudo criaste para ele. Se ele cumpre a vontade do seu Senhor, a sua mão governará tudo, senão ele será dominado pela sua mão.
Depois favoreceste-me pela Tua graça e cumulaste-me de honras e de glória e tornaste-me digno de conhecer um pouco da ciência mé­dica. Eis porque eu quero actuar segundo a Tua vontade e Te imploro «não recuses um benefício àquele que a ele tem direito quando tens o poder de conceder-lho» (Provérbios, III, 27). Tive a intenção de ocupar-me da ciência médica em Teu santo nome e graças ao Teu auxílio, afim de que as Tuas palavras se realizem «que Tu sejas justo na tua sentença» (Psalmo II, 6), porque Tu és o médico e não eu.
Eu não sou entre as Tuas mãos, ó Criador de todas as coisas, sen­ão uma substância inerte, senão um instrumento por intermédio do qual Tu curas as Tuas criaturas.
Não me apoio na minha inteligência, não desejo também a minha confiança nas drogas, nas ervas nem nos remédios que criaste no Teu Universo, porque eles não são senão meios de realizar a Tua vontade e de proclamar a Tua grandiosa providência, porque a ciência médica é cheia de perigos (Hipp. I-1)
Faz brilhar as luzes da minha inteligência para que eu possa compreender e conhecer as verdadeiras causas das doenças de todas as partes do corpo das pessoas que vierem até mim. Ensina-me quais são os medicamentos mais activos segundo o temperamento e o tempo favorável e, ensina-me que medicamento melhor convém a tal ou tal doença. Faz que me não engane nos meus actos ou nas minhas palavras. .
Como está escrito... (Provérbios, XXIV-17), «Sustenta-me para que eu não estremeça» e para que nenhum mal possa ocorrer pela minha mão. Enche-me da Tua caridade, porque é para fazer caridade que me lancei na profissão médica, para salvar a vida do teu povo de Israel. Sustenta-me e protege-me da vergonha e das afrontas. Senhor, confio-me a Ti, para que não seja coberto de vergonha e que os meus inimigos se não regozijem a meu propósito (Psalmos, XXV -2).
Se vem a mim um doente cuja afecção é grave, faz por Tua Vontade que eu não possa apressar a sua morte (que Deus me livre de tal!) nem mesmo um só minuto. Mas, pelo contrário, instrue-me e revela-me as drogas que é preciso dar-lhe para restabelecer a sua saúde, antes que tenha soado a sua hora fatídica. E se ele morrer, que se faça a Tua vontade. Faz que os seus admiradores, os seus amigos ou as pessoas de sua família não suspeitem de mim e me não acusem de ter sido causa da sua morte, mas que a aceitem porque é o veredicto de Deus, porque Ele tem nas Suas mãos a vida e o espírito de todos os seres vivos.
Salva-me do ódio e da luta. Faz que eu não inveje os outros e que os outros me não invejem. Estabelece entre mim e os outros médicos o amor, a fraternidade, a paz e a amizade, que eu não sofra vergonha e desgraça perante eles, mas que seja honrado aos seus olhos.
Faz, se os meus colegas se enganam, que eu não me regozije e que se por desgraça fizeram mal na sua profissão, que seja a Tua vontade: fecha-me a boca para que eu não revele o mal que eles fizeram, mas que eu possa ter o mérito de reparar os seus erros. .
Peço-te, ó Senhor, que faças recair sobre mim o mérito neste mundo e não (que Deus me livre!) o opróbrio, que nada de mau seja encontrado na minha mão, que de mim não provenha nenhuma corrupção, de tal modo que eu não cause a morte de nenhum homem e nenhum prejuízo em nenhum dos seus membros, nem voluntária nem involuntaria­mente! Não me coloques na categoria destes médicos de quem se diz que «mesmo os melhores são bons para o Inferno» (Mishna Kiddushin, IV-14 ) .
Senhor, livra-me da mão do mau, da mão do iníquo e do opressor (Psalmos XXI-4). Não me coloques em seu poder mesmo por um breve momento, para que eu não tome nenhuma parte em seus festins (Psal­mos, CXLI-4), para administrar uma droga, uma beberagem ou um veneno que pudesse prejudicar um homem ou fazer abortar uma mulher (que Deus me livre!). Se ele ameaça tentar-me, humilha-o, livra-me dele (Psalmos, XVII-13 ) . Ó Eterno, estou na angústia, «socorre-me» porque tu és a minha esperança, Senhor, a minha confiança, desde a minha juventude (Psalmos, XXI-5). Limpa o meu coração, purifica os meus pensamentos, de tal forma que nada de mau me venha ao espírito a propósito de uma mulher, virgem ou esposa, quando a visito, que eu não siga os desejos do meu coração e dos meus olhos.
Que se faça a Tua vontade. Abençoados todos os meus trabalhos, que os honorários que me derem possa considerá-los como um presságio da Tua bênção e que eu tenha o privilégio de me servir deles com uma finalidade justa e recta para engrandecer e glorificar a Tua Lei.
Se as pessoas me honram por causa do meu saber «que o pé do orgulho me não atinja» (Ps., XXXVI-12), mas que a minha alma seja «como uma criança desmamada que está junto de sua mãe» (Ps., CXXX-12). Que nenhum mau desejo, que nenhum mau olhar tenha poder sobre mim, que nunca me torne suspeito de qualquer má acção. Reforça a sensibilidade de todos os meus sentidos para que eles digam a exacta verdade de tudo o que se passa diante deles.
Faz, pelo contrário, que possa compreender as causas do seu sofrimento segundo as suas palavras e segundo os sintomas da sua doença.
Faz que seja prudente e que seja capaz de indicar ao doente o dia­gnóstico da sua afecção e que a verdade seja conforme às minhas pala­vras e às minhas advertências, para que ele observe tudo o que eu lhe tiver prescrito. «Sustenta-me segundo a tua promessa a fim de que eu viva e não me confundas na minha esperança» (Ps., CXIX-116 ) .
«Não destruas o espírito que está no meu coração» (Job...).
Que não me incline para o mal e não fuja às minhas súplicas. Sê pleno de misericórdia e responde-me, atende a minha prece, porque «Tu ouves a minha prece» (Ps., LV-2).
«Por tudo isso devo agradecer-te, cantar e louvar o Teu nome, porque ele é favorável em presença dos Teus fiéis» (Ps., LII-11).
«Que estas palavras, objecto das minhas súplicas diante do Eterno sejam dia e noite presentes ao Eterno nosso Deus e que ele garanta em todos os tempos direito ao seu servidor e ao seu povo de Israel a fim de que todos os povos da terra reconheçam que o Eterno é Deus, e que não há outro» (Ps., LII-11).

Juramento Médico de Montpellier, redigido por Lallunaut.
Em presença dos Mestres desta Escola, dos meus queridos condis­cípulos e diante da efígie de Hipócrates, prometo e juro, em nome do Ser Supremo, ser fiel às leis da honra e da probidade no exercício da Medicina. Darei os meus cuidados gratuitos ao indigente, e não exigirei nunca um salário acima do meu trabalho. Admitido no interior das casas, os meus olhos não verão o que aí se passa, a minha língua calará os segredos que me forem confiados e o meu estado não servirá para corromper os costumes, nem para favorecer o crime.
Respeitoso e reconhecido para com os meus Mestres, darei aos seus filhos a instrução que recebi de seus pais.
Que os homens me concedam a sua estima se me mantiver fiel às minhas promessas. Que seja coberto de opróbrio e desprezado pelos meus confrades se faltar ao seu cumprimento.

Juramento do Conselho da Ordem dos Médicos de França
Em presença do Conselho Departamental da Ordem dos Médicos, prometo e juro conformar estritamente a minha conduta profissional às regras prescritas pelo Código de deontologia e observar em todas as circunstâncias os princípios tradicionais de correcção e rectidão que neles se contêm.
Nesta hora solene faço diante de vós o juramento de ter, a todo o momento e em qualquer lugar, o cuidado constante da dignidade e da honra do Corpo Médico.

Juramento ou Declaração de Genebra, adoptada pela Assembleia Geral da Associação Médica Mundial em Genebra, Suíça, em Setembro de 1948)
No momento em que sou admitido como Membro da Profissão Médica :
Comprometo-me solenemente a dedicar a minha vida ao serviço da humanidade.
Terei para com os meus professores, o respeito e a gratidão que lhes é devida. Exercerei a minha profissão com consciência e dignidade.
Considerarei em primeiro lugar a saúde dos meus doentes.
Respeitarei os segredos que me forem confiados.
Respeitarei por todos os meios ao meu dispor, a honra e as nobres tradições da profissão médica.
Os meus Colegas serão meus irmãos.
Não permitirei que entre o meu dever, e os meus doentes; se inter­ponham considerações de religião, nacionalidade, raça, partidos políticos, ou condição social.
Terei o maior respeito pela vida humana, desde a época da concepção; mesmo sob pressão, não utilizarei os meus conhecimentos médicos de modo contrário às leis da humanidade. ­
Faço estas promessas, solene e livremente, e por minha honra. ­

Juramento do Médico Hebreu, redigido pelo Prof. Halpern, de Jerusalém e pronunciado pela primeira vez em 12 de Maio de 1952, quando da entrega de diplomas aos primeiros diplomados do Estado de Israel.
Jovens médicos de Israel, apresentais-vos todos hoje diante dos vossos guias nos caminhos e nas leis da medicina. Para ser admitido na aliança da medicina e para aplicar a sua doutrina, com toda a vossa força, aprofundando-a com a vossa razão e com a rectidão do vosso coração. Afim de que se levante, em socorro do homem que sofre, uma geração de médicos voltados para a acção e confiantes na sua vocação. Eis pois a aliança que eu concluo hoje convosco dizendo: sois chamados a velar dia e noite, mantendo-vos à direita do doente angustiado, por todos os tempos e a toda a hora.
Conservai a vida do homem desde as entranhas de sua mãe e que a sua saúde seja a vossa preocupação de todos os dias. Socorrei o homem doente como doente, quer se trate de um peregrino, de um estrangeiro ou dum cidadão, de um filho do nada ou dum homem respeitável.
Esforçai-vos por compreender a alma do doente para reanimar o seu espírito pelas vias da inteligência e pelo amor do género humano.
Não vos precipiteis a pronunciar um julgamento, pesai pelo contrário o vosso parecer na balança da prudência, experimentada no cadinho da experiência.
Conservai a vossa lealdade para com o homem que pôs a sua confiança em vós, não divulgueis o seu segredo e não o calunieis.
Concedei a vossa atenção também à saúde pública para trazer a cura às doenças do povo. Prestai homenagem e glória aos vossos mestres - àqueles que se esforçaram por guiar-vos nas veredas da medicina.
Enriquecei a ciência e não a descureis porque ela é a vossa vida e ela gera a vida. Testemunhai respeito aos vossos confrades, porque sereis estimados honrando-os.
Estas palavras da aliança estão junto de vós, na vossa boca e no vosso coração afim de que as possais cumprir.
Assim seja! Assim actuaremos.

Oração do Médico, de Sua Santidade o Papa Pio XII.
Ó Médico divino das almas e dos corpos, Jesus Redentor, que durante a Vossa vida mortal distinguistes com a Vossa predilecção os enfermos, curando-os ao contacto da Vossa mão omnipotente; nós que fomos chamados para a árdua missão de médicos, adoramo-vos e reco­nhecemos em Vós o nosso excelso modelo e a nossa força.
Que o nosso espírito, o nosso coração e as nossas mãos sejam sem­pre guiados por Vós, de modo que mereçam o louvor e a honra que o Espírito Santo atribui à nossa profissão. Aumentai em nós a cons­ciência de ser, de certo modo, Vossos colaboradores na defesa e no desenvolvimento das criaturas humanas e instrumento da Vossa misericórdia.
Iluminai as nossas inteligências no áspero combate contra as inúmeras enfermidades dos corpos a fim de que, servindo-nos rectamente da ciência e dos seus progressos, não nos sejam ocultadas as causas dos males nem nos enganem os seus sintomas mas, ao contrário, com diagnóstico seguro, possamos indicar os remédios eficazes, graças à Vossa Providência.
Dilatai os nossos corações com o Vosso amor, de modo que vendo-vos a Vós mesmo nos doentes, especialmente nos mais abandonados, correspondamos com infatigável solicitude à confiança que depositam em nós.
Fazei que, imitando o Vosso exemplo, sejamos paternais, compar­tilhando a dor dos outros, sinceros no aconselhar, diligentes no curar, incapazes o de enganar, suaves ao anunciar o mistério da dor e da morte; e, sobretudo, que sejamos firmes em defender a Vossa santa lei, no respeito pela vida, dos assaltos do egoísmo e dos perversos instintos.
Como médicos que glorificamos o Vosso Nome, prometemos que a nossa actividade se realizará constantemente na observância da ordem moral e sob o império das suas leis.
Concedei-nos, por último, que nós mesmos, por um modo de vida cristã e pelo recto exercício da profissão, mereçamos um dia escutar dos Vossos lábios a bendita sentença prometida àqueles que Vos tiverem visitado como enfermo nos Vossos irmãos «Vinde benditos do meu Pai, possuir o reino preparado para Vós» (Mat. 25-34).
Assim seja.

1.° Código Internacional de Ética Médica, adoptado pela 3.ªAssembleia Geral da Associação Médica Mundial, Inglaterra, Outubro de 1949)
Deveres dos médicos em geral
O médico deve manter sempre os padrões mais elevados de conduta profissional.
O médico deve praticar a sua profissão sem ser influenciado por razões lucrativas.
São considerados contra a ética, os seguintes procedimentos:
a) Qualquer propaganda pessoal fora da que é autorizada expres­samente pelo Código nacional de ética médica.
b) Colaborar em qualquer forma de serviços médicos, em que o médico não tem independência profissional.
c) Receber pagamentos em relação com serviços prestados a um paciente fora dos honorários profissionais, mesmo com conhecimento do paciente.
Qualquer intervenção ou conselho susceptível de enfraquecer a resistência física ou mental de um ser humano, só deve ser feita unicamente para o seu interesse.
Aconselha-se o médico a ter a maior prudência na divulgação de descobertas ou novas técnicas de tratamentos.
O médico só deve certificar ou atestar unicamente aquilo que veri­ficou pessoalmente.

Deveres do médico para com o doente
O médico deve ter sempre presente no seu espírito, a obrigação de proteger a vida humana.
O médico deve ter para com o seu doente inteira lealdade, e deve proporcionar-lhe todos os recursos da sua ciência. Sempre que um exame ou tratamento esteja além da sua capacidade, deve recorrer a outro médico que tenha a necessária aptidão para os realizar.
O médico deve manter absoluto segredo de tudo o que sabe acerca do seu doente, por motivo da confiança que lhe é atribuída.
O médico deve prestar serviços de urgência, como um dever huma­nitário, a menos que se tenha assegurado que outros estão aptos e dispostos a prestar tais serviços.

Deveres dos médicos para com os seus Colegas
O médico deve conduzir-se para com os seus Colegas, como ele gostaria que estes se conduzissem com ele.
O médico não deve desviar os doentes dos seus Colegas.
O médico deve observar os princípios da «Declaração de Genebra», aprovada pela Associação Médica Mundial.

Declaração de Helsínquia, Recomendações para orientação dos médicos em investigação clínica (Adoptada pela 18.ª Assembleia Médica Mundial, Helsínquia, Finlândia, 1964)

Introdução
A missão do médico é salvaguardar a saúde da população. A sua consciência e os seus conhecimentos dedicam-se ao desempenho desta missão.
A declaração de Genebra da Associação Médica Mundial compromete o médico com estas palavras:
«A saúde do meu paciente tornar-se-á o meu cuidado principal, do mesmo modo que o Código Internacional de Ética quando declara:
«Qualquer intervenção ou conselho que possa enfraquecer a resistência física ou mental do ser humano só deve ser usada para o seu próprio interesse».
Como é essencial que os resultados das experiências laboratoriais sejam aplicadas aos seres humanos, para um melhor conhecimento científico, e para auxiliar a humanidade que sofre, a Associação Médica Mundial preparou as seguintes recomendações como guia de cada médico na investigação clínica. Deve acentuar-se que estas normas, tais como são expostas, têm apenas o valor de um guia para os médicos de todo o mundo.
Os médicos não ficam por elas libertos das responsabilidades criminais, civis e éticas, dependentes das leis do seu país.
No campo da investigação clínica, deve fazer-se uma distinção fundamental entre a investigação clínica cujo fim é essencialmente terapêutico para um doente, e aquela cujo objectivo principal é puramente científico, e sem valor terapêutico para a pessoa sujeita ao estudo.

I - Princípios básicos
1 - A investigação ou estudo clínico, deve respeitar os princípios morais e científicos que justificam a investigação médica, e deve basear-se em conclusões laboratoriais, ou experiências em animais, ou em outros factos cientificamente estabelecidos.
2 - A investigação clínica deve ser conduzida unicamente por pessoas cientificamente qualificadas, e sob a supervisão de um médico qualificado.
3 - A investigação médica só pode ser legitimamente praticada, quando a importância do objectivo é proporcional ao risco para o paciente a ele sujeito.
4 - Cada projecto de investigação clínica deve ser precedido por um cuidadoso estudo dos riscos inerentes, em comparação com os bene­fícios previsíveis para o doente ou para os outros.
5 - O médico deve ter um cuidado especial ao praticar investigações clínicas, em que a personalidade do indivíduo seja susceptível de ser alterada por drogas, ou por formas de procedimento experimental.

II - Investigação clínica associada a cuidados profissionais
1 - No tratamento de uma pessoa doente, o médico deve ser auto­risado a usar um novo meio terapêutico, se, de acordo com o seu julgamento, este oferece esperanças de salvar a vida, de restabelecer a saúde, ou aliviar o sofrimento.
Se for possível, e está de acordo com a psicologia do doente, o médico deve obter o seu consentimento dado em toda a liberdade, depois de lhe ter dado uma clara explicação do problema.
No caso de incapacidade legal, o consentimento deve buscar-se junto do responsável legal; no caso de incapacidade física, a permissão do respon­sável legal substitui a do paciente.
2 - O médico pode associar a investigação clínica aos cuidados pro­fissionais, sendo o objectivo a aquisição de novos conhecimentos médicos, unicamente até ao limite em que a investigação clínica está justificada pelo seu valor terapêutico em relação ao doente.

III - Investigação clínica não terapêutica
1 - Na aplicação puramente científica da investigação clínica rea­lizada num ser humano, é dever do médico considerar-se o protector da vida e da saúde do indivíduo, sobre o qual incide a investigação.
2 - A natureza, o propósito, e o risco da investigação clínica devem ser explicados pelo médico, ao paciente a ela sujeito.
3-a) – A investigação clínica num ser humano, não pode ser realizada sem o seu livre consentimento, depois de ter sido informado a respeito da mesma. Se este é legalmente incompetente, deve pedir-se o consentimento ao seu responsável legal.
3-b) - O indivíduo sujeito à investigação clínica, deve estar em condições físicas, mentais e legais, que lhe permitam exercer plenamente a sua capacidade de escolha.
3 -c) - O consentimento deve ser, por via de regra, obtido por escrito. Todavia, a responsabilidade da investigação, pertence sempre ao investigador; nunca recai sobre a pessoal a ela sujeita, mesmo quando esta deu o seu consentimento.
4 - a) - O investigador deve respeitar o direito de cada indivíduo e salvaguardar a sua integridade pessoal, especialmente se está numa relação de dependência com o investigador. ­
4 - b) - Em qualquer altura no decorrer da investigação, o indi­víduo a ela sujeita ou o seu responsável legal, poderão retirar a permissão para que esta seja continuada.
O investigador ou o grupo de investigação, interromperão a inves­tigação, se julgarem que o seu prosseguimento pode ser prejudicial para o indivíduo.


Se analisarmos todos estes juramentos e declarações veremos que, embora com o desajuste do tempo, não há grandes alterações nos princípios consignados. Muda a forma de os enunciar e a marca de cada período.
Hoje, com o desenvolvimento imparável da medicina, as alterações estão finalmente aí à espreita. Avanços científicos e tecnológicos, banalização das técnicas, modificação dos princípios sociais, influência de filósofos e pensadores, movimentos sociais, são base de fermentação de novos cozinhados éticos.
Ao longo dos últimos anos isso tem sido aparente com problemas como os transplantes, gravidez in vitro, interrupção voluntária de gravidez, eutanásia, doentes terminais, clonagem e por aí fora.
É de esperar que hoje em dia, com a evolução da medicina, nos apareça qualquer dia o dito «cuida de ti mesmo», integrando um código ético de saúde, dado que cuidar de si, será também responsabilidade de cada um.

Entretanto, a ética deu lugar à bioética e esta prepara-se para dar lugar à saniética. Enquanto a primeira tem a ver com o relacionamento entre o homem e a vida, o relacionamento do homem com os elementos da biosfera, a saniética aplica-se à ética da saúde.
E não será ainda aqui que as coisas vão parar ou abrandar, pois presumo que daqui em diante ainda iremos assistir à publicação anual dos Códigos éticos e tal como na lei civil, o crime terá que ser analisado à luz do código do ano em que o crime foi cometido.
A menos que a Moral recupere do estado de doença em que caiu e termine o ciclo histórico da sua queda. Por aqui e por ali, começa a haver sinais de que se prepara um renascimento moral. Assim seja. Tenho dito.
Bibliografia
Moreno, Armando – Ética em tecnologias da saúde
Neves, Carlos – Bioética – temas elementares
Serrão, Daniel e outros – Ética em cuidados de saúde
Silva, João Ribeiro da – A ética na medicina portuguesa

sexta-feira, novembro 25, 2005

o ensino da cirurgia ao longo dos tempos. a propósito da criação das régias escolas de cirurgia de lisboa e do porto

Desde que se pratica a arte de curar, existe uma clara disparidade entre o exercício da medicina e o exercício da cirurgia. Porquê, perguntarão? Por uma razão ou um punhado delas fáceis de explicar.
Durante séculos os conhecimentos médicos eram extremamente rudimentares e eram passados de boca a boca, portanto duma forma não muito diferente do que se passava com os actos cirúrgicos que também eram passados dessa forma.
Com o aparecimento das universidades, o ensino da medicina passou a ter alguma qualidade. Só que nas universidades apenas se ensinava matéria médica e o ensino da cirurgia continuava a ser feito por pessoas incultas, que nem sabiam ler nem escrever, mas tinham habilidade para usar o bisturi em alguns actos cirúrgicos. Os médicos consideravam indigno o exercício da cirurgia.
E séculos e séculos se passaram sem que esta situação fosse alterada. Em Portugal a primeira tentativa que se fez, não para equiparar médicos e cirurgiões, mas para dar a estes mais formação, foi a criação do Hospital de Todos os Santos, que resultou da junção dos mais de cinquenta hospitais que havia em Lisboa, num só construído de raiz.
Este hospital foi construído de 1492 a 1501, no local do Rossio, onde hoje é a Praça da Figueira, junto ao Convento de São Domingos. Tinha uma frontaria lindíssima de que sobressaía a sua igreja e escadaria. Tinha uma forma de cruz, em que a igreja era um dos braços e os outros três eram as três enfermarias que tinha – a de São Vicente para os febricitantes, a de São Cosme para os feridos e a de Santa Clara para as mulheres. Cada uma delas tinha anexo um claustro com uma fonte no seu centro. Havia ainda uma outra divisão que era a casa dos enjeitados.
Inicialmente tinha a capacidade de 103 camas, que logo vieram a mostrar-se insuficientes, o que levou a que começassem a deitar dois doentes em cada cama. Por volta de 1551 acrescentaram uma enfermaria para sifilíticos e uma outra na cerca que servia apenas para internar os frades de São Francisco.
Continuava a ter uma capacidade insuficiente; por volta de 1601 tinha 324 doentes internados e em 1620 tinha 600, tendo chegado mesmo a ter 700 doentes, exactamente no dia em que foi destruído pelo terramoto de 1755. Quando começou a funcionar dispunha de dois cirurgiões e de um médico, mas em 1564 já tinha 3 cirurgiões e dois médicos.
Por alvará de 20 de Novembro de 1556 foi criada uma aula de cirurgia e anatomia, iniciando-se assim uma verdadeira escola de cirurgia que funcionou até ao século XIX. Para o funcionamento desta aula recorreu-se a estrangeiros, tal como se tinha feito em relação aos médicos, de que destaco Dias de Ysla.
Pelo ensino da cirurgia passaram Afonso Rodrigues de Guevara e António de Monravá y Roca, que viria a ser despedido por incompetência e que deve ter sido o primeiro a criar uma universidade privada em Portugal – A Academia das quatro ciências – medicina, anatomia, cirurgia e física, também chamada Academia dos Ocultos. Ao longo dos tempos destacaram-se António da Cruz e o seu livro Recopilação, e Manuel Constâncio, este já discípulo de Dufau, que se seguiu a Santucci.
O primeiro problema com este hospital viria a ter lugar em 1750, por causa de um grande incêndio que o destruiu quase por completo, estando internados 740 doentes e 5 anos depois foi totalmente destruído pelo terramoto de 1755.
Os doentes foram instalados em cabanas armadas no Rossio e nas cocheiras do Conde de Castelo Melhor e depois no palácio de Antão de Almada.
Só 4 anos depois, expulsos os jesuítas em 1759, foi o seu convento destinado a hospital a que deram o nome de São José em homenagem ao rei. Os doentes só foram transferidos em Abril de 1760. Iniciava-se então uma nova fase na vida hospitalar de Lisboa e na formação dos cirurgiões portugueses.
Pode dizer-se que a escola de cirurgia do hospital de S. José representou a grande escola formadora de cirurgiões até ao primeiro quartel do século XIX e mesmo até meados do século XX, se tivermos em conta que a Régia Escola de Cirurgia que viria a ser criada em 1825 ficou aqui instalada.
Não está em causa saber-se ou dizer-se que aquilo que aqui se ensinava neste hospital de S. José era bom ou mau, moderno ou antiquado. A única coisa que importa dizer é que este hospital representava o único local do país onde verdadeiramente se ensinava a cirurgia, pese embora outros haver que se iam formando por todo o país, desde que o Cirurgião Mor ou o Físico Mor os aprovassem em exame. Sabe-se que estes exames eram na maioria dos casos autênticas burlas, havendo aprovações em troca de dinheiro dado ao examinador ou a outros cirurgiões que se apresentavam a exame, na vez dos candidatos. A corrupção era um facto.
Contudo, no princípio do século XIX houve outras aulas de anatomia e cirurgia a funcionar e com grande qualidade, destinadas a formar os cirurgiões militares. Foram particularmente importantes, a de Chaves e a de Elvas.
Houve cirurgiões preparados em Chaves que depois trabalharam e ensinaram no hospital de S. José, outros que foram aqui professores, como houve cirurgiões deste hospital que foram professores em Chaves, nomeadamente o seu primeiro professor, de seu nome Manuel José Leitão.
Também no Brasil se fundaram aulas de anatomia e cirurgia, nomeadamente no Hospital da Misericórdia e no Hospital Militar, ambos no Rio de Janeiro e outra no Hospital da Bahia.
Para frequentar estas aulas de anatomia e cirurgia referidas, já era necessário que os alunos soubessem ler, escrever e contar e que soubessem latim e francês, o que representava um claro e gigantesco progresso na dignificação desta profissão.
O Marquês de Pombal tentou honrar e dignificar a cirurgia e decretou que dessa data em diante as universidades ensinassem igualmente cirurgia e que os licenciados o fossem igualmente em medicina e cirurgia. Foi um importante passo, embora pouco tivesse sido conseguido com esse decreto.
Para que verdadeiramente se iniciasse a caminhada para a equiparação da medicina e da cirurgia, foi necessário esperar por 1825 e pela criação das Régias Escolas de Cirurgia de Lisboa e do Porto, que por sua vez viriam a dar lugar anos mais tarde às Escolas Médico-Cirúrgicas e estas, posteriormente, às Faculdades de Medicina.
Como se formaram estas Régias Escolas?
De uma forma extremamente curiosa e por razões marginais ao poder político. Sucedeu que o Intendente Geral da Polícia, Pina Manique mandara prender o mais importante contratador de tabaco. Essa prisão despertou um grande movimento no sentido de ser conseguida a sua libertação, mas todas as tentativas, mesmo que encabeçadas por gente de condição, não obtiveram qualquer efeito.
Alguém se lembrou então de interceder junto do rei, sendo escolhido para essa tarefa o Cirurgião militar e Cirurgião Mor do Reino, Teodoro Ferreira de Aguiar, de quem o rei era muito amigo. Este cirurgião falou ao rei e este mandou libertar o contratador.
A Corporação dos tabacos agradecida, empenhou-se em agradecer principescamente a Teodoro Ferreira de Aguiar, para o que se prontificaram a oferecer-lhe dez contos de réis. Este não aceitou a oferta e sugeriu que eles dessem o dinheiro ao rei para que com ele se mandassem instalar duas Escolas Régias de Cirurgia.
Teodoro Ferreira de Aguiar conseguiu ainda que a Corporação dos tabacos se encarregasse das despesas daquelas duas escolas enquanto durasse o contracto do tabaco. Quem diria que o tabaco foi o primeiro «sponsor» da cirurgia?
O rei concordou e foi desta forma que nasceram as duas escolas.
Nem sempre os caminhos do progresso e da modernidade passam por grandes decisões, mas apenas pelas cabeças e pela generosidade de uns quantos que têm do bem comum uma ideia correcta.


terça-feira, novembro 22, 2005

cultura e atitude

A formação de um Homem passa por um nunca terminado processo e por várias e diferentes fases, fermentações, pousios, centrifugações, agitações, misturas, influências.
Por mais que os tempos mudem, os costumes se alterem, os padrões variem, sempre a formação de um Homem passará por um processo único, individual no objecto e colectivo nos agentes.
Estando o Homem feito, se é que o está alguma vez, outras formações se perfilam, outras águas, de outras fontes, há para beber, outros fatos a vestir, outras atitudes a tomar.
E quando o Homem está supostamente feito, e a sua formação profissional definida e supostamente terminada para o início de uma fase de aprendizagem permanente, está naturalmente definida a atitude desse Homem. Atitude, soma de atitudes parcelares, de matriz única e perfil próprio.
E quando esse Homem se fez médico, a sua atitude, somatório de todas as atitudes que tem de tomar, face à vida e à morte, ao sofrimento e à dor, à esperança e à fé, ao amor e à paz, aponta para uma clara imagem de marca, para uma personalidade com marca individual, com assinatura de designer de si próprio.
E se ao Homem, ao médico, se juntar a faceta da comunicação e da escrita, ou da arte, essa sua atitude fica também modelada por essa influência cultural que cumulativamente também veste.
Que podemos nós entender por atitude? Aquilo que os dicionários inscrevem para a definir ou qualquer coisa mais ou qualquer outra coisa ? Diz-nos o dicionário que atitude é palavra do género feminino que significa postura, modo de ter o corpo. Propósito; significação de um propósito. Norma de procedimento. É isto, com certeza. Mas é ainda qualquer coisa mais para além disto.
E esta qualquer coisa mais, que o dicionário não contempla e como tal não define, é tudo aquilo que está para além da postura, para além do propósito, mais para além, mas não além; mas, antes pelo contrário, muito dentro de uma e outro, muito dentro de si, profundamente interiorizada nesse ser total, que é homem, médico, escritor, artista.
O Homem, o médico, a cultura, a atitude são inseparáveis. Não se pode mudar de atitude por uma determinada e voluntária decisão de mudar essa postura, esse propósito. A atitude é inalterável para cada ser, para cada Homem formado e supostamente concluído.
A partir de determinada altura da vida, de determinada fase do processo formativo, a atitude, em si, é inalterável, tenha as faces que possa ter sem quebra da sua unidade.
Alterar a atitude, modificá-la, é ser outro, é não ser o que se pensava ser. Cultura e atitude. Tema fácil de entender e difícil de explicar. Cultura, segundo o dicionário é acto, modo ou efeito de cultivar ... Estado de quem tem desenvolvimento intelectual. Estudo. Elegância, esmero. E sendo isto, que atitude pode ter um homem de cultura? Pode a atitude desse homem ser o contrário do homem estudioso, elegante na forma e no conteúdo, agindo com esmero no seu modo de cultivar?
Atitude pressupõe, quanto a mim, coerência. E pressupõe ainda, acção. E ainda, verticalidade e frontalidade.
Coerência de actos, ideias e vida. Uma forma de vida correspondente à sua matriz formativa. Uma posição face à vida, bem definida, sem hesitações ou dúvidas. Uma postura que não dê ocasião a que se possa dizer que o rei vai nu.
Acção. Permanente e coerente. Passar das palavras aos actos, de acordo consigo, com a sua forma de estar, com o seu eu. Acção em todas as situações. Nas imediatas, presentes, directamente vividas, no local e no tempo. Mas, não só nessas. Também naquelas que parecem não ter a ver connosco, directamente, nem parecem depender de nós. Diria que nessas, sobretudo, deve haver acção quando o Homem é um ser de cultura.
Como pessoa bem informada, esclarecida, pensante, tem obrigação de saber que agir nessas condições é mais do que agir. É dar exemplo, é mostrar, é reforçar a frente de luta, é tornar de todos o que parece só de alguns.
Verticalidade. Sempre e em tudo. Em situações pacíficas ou perigosas. Contra ventos e marés. Postura com marca. Verticalidade evidente. Desafio, se necessário. Posição e exemplo. Imagem. Afirmação.
Frontalidade. Em tudo e sempre, preto no branco. Sem cenários desenhados, nem cortinas de fumo. Situações e respostas claras. Apenas sim e não. Concordo ou discordo.
É grande a responsabilidade do homem de cultura. Maior do que a responsabilidade do homem comum, embora devesse ser igual. Mas, não é. Porque o homem de cultura tem de ser um exemplo e, se tem que o ser, deve sê-lo pela positiva e nunca pela negativa, pela afirmação e nunca pela ausência.
Tudo isto entronca na atitude. Na cultura e atitude. Há que ter a atitude de dignidade e compostura, de verticalidade e frontalidade capaz de mover o mundo. Fazer a paz onde há guerra. Levar alimentos onde há fome. Levar justiça onde há desigualdade.
Ninguém, por mais grão de areia que se sinta, deve eximir-se à responsabilidade da sua participação. Afirmar a sua opinião, levantar a sua voz, manifestar apoio ou desacordo. Afirmar-se, mais do que afirmar.

Sobretudo ser e mostrar que se é. Um ser inteiro, digno, solidário, lutador e justo. Usar a palavra e os actos sempre que se mostre necessário. Não calar, nem se calar. Afirmar-se mais do que afirmar.
Ser. Homem, médico, escritor.

segunda-feira, novembro 21, 2005

aquele psiquiatra era tido por maluco

Aquele psiquiatra era tido por maluco. Designação que lhe servia como uma luva e de que ele tirava proveito o mais sadia e sabiamente que sabia e podia.
O estatuto de maluco, implantado na sua especialidade de psiquiatra, permitiu-lhe viver como poucos o conseguiram naquela época. Eram tempos de ditadura, a polícia política vigiava tudo e todos, com ouvidos e olhos desmultiplicados por milhares de informadores, que faziam dessa condição um complemento razoável de seus magros ordenados ou graciosa manifestação da sua grande fé no destino de tão grande Pátria.
O que se dizia de menos conveniente, mas não menos verdadeiro, tinha que ser a meia voz e com a garantia de que quem ouvia nadava nas mesmas águas de pensamento e opinião. Era um sistema político vigiado e musculado. A maioria, por menor convicção ou por menos coragem, nem baixo falava. Pura e simplesmente calava-se, transformando-se numa maioria silenciosa e amorfa.
Imagine-se a vantagem de ser maluco quando se é também psiquiatra. Ainda por cima ele era senhor de uma voz potente e de gargalhadas sonoras, quase contagiantes. Eram tais as coisas que ele dizia, que, quem não o conhecesse bem, diria que ele pertencia à polícia política, ou era um provocador a mando dela. Nunca se coibiu de dizer o que pensava, nem nunca escolheu lugar para o fazer ou seleccionou o auditório. O que lhe vinha à boca logo por ela saía, escandalizando uns, amedrontando outros, que, apesar de não serem os senhores daquela voz, lhe tinham emprestado os ouvidos. E ouvir, também era perigoso.
Sucedeu ter sido incomodado algumas vezes, mas não mais que isso, por pouco conhecimento de quem se tratava, logo tudo se esclarecendo quando ele se identificava. Tudo quanto dissesse ou fizesse que se afastasse das normas do regime, era tomado à conta da sua loucura saudável. Alguém dizia, Não o levem a sério. É maluco, e tudo voltava à normalidade instituída.
Não se pense que o proveito da loucura só lhe rendia em termos de não perseguição política. Nada disso. Era assim em todas as coisas.
Faltava à consulta? Está cada vez pior, alguém dizia.
Atendeu dez doentes em menos de uma hora e demorou duas apenas com um doente? Não há nada a fazer. Ele é mesmo assim.
Desobedecia a superiores hierárquicos? É maluco, eu bem vos dizia.
Vocês sabem que ontem durante a consulta a uma senhora, ele acendeu velas e depois benzeu-a com óleos, na testa? E, no fim da consulta disse-lhe—Vá em paz. Está curada. Todos quantos isto ouviam, logo diziam—Está cada vez pior.
Estava cada vez melhor. Isso, sim. Cada vez mais livre, cada vez mais ele, sem limites e sem fronteiras, dominando tudo e todos, regulando o tempo pelo seu próprio relógio biológico, uma voz cada vez mais potente, uma gargalhada cada vez mais feliz e contagiante.
Ninguém como ele definia em traços curtos e exactos a personalidade dos colegas. E, cada vez mais, todos receavam a sua língua viperina, que em segundos arrasava a credibilidade de um colega tido por perfeito. Que se saiba nunca nenhum pediu justificações ou lavou sua honra. Não vale a pena perder tempo e cuspo com tal indivíduo.
Todos? Aqui é que a questão se punha. Alguns dos que com ele privavam mais assídua e fraternalmente, sabiam bem que não era assim e que ele era senhor de grande estabilidade psíquica e emocional, de grande capacidade de raciocínio e de análise lógica, de uma mente sã, capaz de fazer inveja ao ser mais normal.
Ele era tão anormalmente normal, que era capaz de reverter a seu favor o uso que fazia de emoções, gestos, atitudes e palavras, fazendo que os outros pensassem que ele era maluco, quando, na verdade, não o era e em cada instante analisava, quase de uma forma freudiana, o comportamento e os sentimentos de quem o rodeava. Rapidamente sabia os fracos de cada um e, com habilidade e inteligência, usava esse conhecimento para desfazer vaidades, convencimentos e atitudes.
Era um provocador, por excelência. Tirava da vida o melhor e acoitava-se à sombra do rótulo que, os tidos por normais, gostavam de lhe colocar. Ai, eu é que sou o maluco? Quem com ele privava, sabia que ele se perguntava isso muitas vezes, como inequívoca afirmação de lucidez e coragem.
Eram inúmeras as histórias que se contavam a seu respeito, mas convinha acreditar apenas nas que ele contava de si próprio. Essas eram autênticas, as outras tinham tanto de verdade como a sua apregoada loucura. Mas, algumas havia que toda a gente conhecia e que contadas assim, de uma forma seca e desarticulada da sua personalidade e da sua superior inteligência, punham efectivamente em causa a sua idoneidade mental, para já não falar da sua idoneidade médica.
Lembro-me, por exemplo, que era voz corrente a forma como ele media a tensão arterial a quem lho solicitava. Sabedor que era dos inúmeros hipocondríacos que lhe passavam pelas mãos, quando, por razões militares, teve que exercer clínica geral para além da psiquiatria de sua especialidade, desmontava esses apetites hipocondríacos de uma forma simples, para ele, e igualmente tranquilizante para o candidato a doente. Possuía em cima da sua secretária um dedal de costura e quando solicitado para medir a tensão arterial, metia lentamente o dedal no seu dedo indicador direito, colocava-o correctamente na radial e dizia – está normal. Tirava o dedal, orgulhosamente, por mais uma missão cumprida.
E quando os paraquedistas «adoeciam» subitamente, apanhados por um qualquer virus antimilitar e anti operações especiais, ele tinha o remédio certo. Mandava-os formar em linha e dar as mãos uns aos outros. Colocava delicadamente um termómetro na axila do primeiro, anunciava em voz alta a temperatura encontrada e dizia calmamente que todos estavam bons e podiam partir para a operação especial.
Dizia ele que media a temperatura pelo processo dos vasos comunicantes... Era ele o maluco? Mas, não era ele quem duma forma, assim simples e divertida, desfazia pelo ridículo a tentativa de fuga ao dever de um bando de militares super preparados e pagos para isso?
Alguém teria sido capaz de cobrir de ridículo todo um País e uma organização militar, como ele o fez quando foi incumbido, pelo Poder instituído, de fazer testes psicotécnicos aos candidatos a pilotos da Força Aérea? Bem ele argumentou, de uma forma séria, que não havia condições para tal fazer, uma vez que não se dispunha da bateria de testes necessários e muito menos de preparação e experiência necessárias e ainda menos de psicólogos habilitados. Era evidente que concordava com a realização dos testes, mas só depois de uma equipa montada e que soubesse o que fazia.
Mas, o Poder achou que não era preciso e o psiquiatra que se desenrascasse. Foi o que ele fez. A cada candidato distribuía uma folha de jornal e mandava-o fazer aviões de papel, chegar à janela e atirá-los. Os que voassem bem, mostravam que o lançador era pessoa determinada e até um avião de papel fazia voar. Os outros, bem os outros, nem os de papel sabiam atirar.
É maluco, disseram. Mas, quem conseguiria mais ridículo e faria com que, no futuro, se organizasse o Gabinete Psico–Técnico? Era ele o maluco?
Mas uma das histórias que se contavam que mais fazia sorrir quem a ouvia, era a história do electroencefalograma.
Numa das consultas de psiquiatria infantil que ele fazia, chegado ao termo de uma das consultas, feitas as recomendações à criança e à mãe que a acompanhava, quando esta e o filho se aproximavam da porta de saída do gabinete de consulta, a mãe voltou atrás e disse-lhe – O senhor doutor desculpe, mas não seria melhor fazer um electroencefalograma ao menino?
O psiquiatra ouviu, fez uma curta pausa e calmamente disse – Tem toda a razão, minha senhora. Vem cá, Alberto.
O menino aproximou-se da secretária do psiquiatra, e este disse—chega-te um pouquinho mais e, delicadamente, colocou-lhe um dedo na testa. Com a mão direita empunhando a esferográfica, fez uma série de riscos no bloco de notas e sempre calmamente disse – Está normal, minha senhora. Vá descansada.
Como teria reagido outro psiquiatra, dos ditos normais, à sugestão da mãe do menino? Teria provavelmente reagido mal; teria reivindicado a sua qualidade de expert da matéria, teria chamado a atenção para a sua qualidade de médico, para a impertinência da mãe, para um sem número de coisas, que só conduziriam à insatisfação da mãe, à manutenção da sua dúvida permanente sobre a não realização do electroencefalograma e à revolta do médico pela invasão indevida do seu campo de acção. Todos saíam a perder. O que fez o maluco? Satisfez a dúvida da mãe, não criou stress a si próprio e ficou mais uma vez a rir-se da estupidez humana.
Será ser maluco conhecer bem a psicologia e a forma de lidar com os outros, sem comprometer a relação necessária com o doente, nem a forma correcta de tratamento? O que é que este fait divers alterou na medicação que anteriormente tinha feito? Que problemas criou? Nenhuns. Mas, se assim não tivesse feito, ainda hoje a mãe do menino diria—Devia ter feito um electroencefalograma.

Aquele psiquiatra era tido por maluco.


domingo, novembro 20, 2005

o 25 de abril para estudantes do secundário

Se eu vos disser que não era permitido estarem mais do que três pessoas, três amigos, a conversarem num passeio público, por exemplo, o que é que vocês serão levados a pensar? Ou que estou a mentir ou que estou a inventar. De facto, nenhuma outra razão vocês encontrarão.
Se eu vos disser que havia liceus masculinos e liceus femininos e que não era possível os rapazes entrarem e nem sequer se aproximarem de um liceu feminino, o que é que vocês serão levados a pensar? Que eu estou a mentir ou que estou a inventar, evidentemente.
Se eu vos disser que, mesmo depois de aparecerem os liceus mistos e apenas em terras onde seria descabido haver dois por não haver estudantes em número suficiente, continuava a ser proibido haver uma conversa franca entre rapazes e raparigas, que os recreios eram separados, as aulas de ginástica também e que era totalmente proibido que os rapazes dirigissem a palavra às raparigas num raio de 100 metros à volta do liceu, depois de saírem das aulas, o que é que vocês são levados a pensar? Que eu estou a mentir ou que estou a inventar, evidentemente.
Se eu vos disser que depois de terminarem as aulas, as raparigas iam que nem um tiro para as suas casas, mesmo as universitárias e que os rapazes também iam, embora um pouco mais devagar, o que é que vocês são levados a pensar? Que eu vos estou a mentir ou a inventar, evidentemente.
Se eu vos disser que fumar era só às escondidas e que para usar um isqueiro, que os mais afortunados tivessem, era necessário ter licença para o seu uso, paga todos os anos às Finanças, o que é que vocês são levados a pensar? Evidentemente, que vos estou a mentir ou a inventar.
Se eu vos disser que os livros eram vigiados e alguns proibidos e que os jornais todos os dias iam previamente à comissão de censura e vinham cheios de artigos censurados e proibidos pelo lápis azul dos censores, o que é que vocês são levados a pensar? Em coro, todos, que eu vos estou a mentir ou a inventar, evidentemente.
Se eu vos disser que só os homens, os chefes de família, podiam votar e mesmo assim em eleições controladas e fraudulentas, em que se fosse preciso para ganhar se chegavam a descarregar como tendo votado, milhares de eleitores já mortos, o que é que vocês são levados a pensar? Mais uma vez, em coro, que eu vos estou a mentir ou a inventar, evidentemente.
E agora, porque os exemplos me parecem já suficientes para vocês terem uma pálida ideia do que eram esses tempos, chegou a vez de eu vos perguntar – em nome de quê, que razões terei eu, para aqui, tão descaradamente vos vir mentir? E, antecipando-me a que um de vós, aí dos vossos lugares, me grite – porque é um mentiroso, eu garanto sobre a Bíblia que não tenho, que não sou mentiroso, nem vos menti e que tudo que vos disse é totalmente verdade. E se não vos chegar esta minha afirmação, perguntem aos vossos pais, evidentemente, se acreditam neles. E acabo de dizer, sem querer, outra coisa que naquele tempo era impossível dizer, era impossível pensar. Duvidar dos pais? Onde é que isso alguma vez se viu?
Os exemplos estão dados, a cena está descrita e criada. Passemos à acção. Tudo isto se passava antes de 1974, mesmo depois de ter acontecido o Maio de 68, de haver o festival de Woodstock, do aparecimento e consumo do LSD e outros alucinogéneos e de começarem em Coimbra e em Lisboa as manifestações de estudantes, protestando contra a política de educação, contra as prisões arbitrárias de estudantes, contra as cargas da polícia de choque sobre os estudantes concentrados na cidade universitária de Lisboa, contra o assassinato pela PIDE de um estudante de Economia, Ribeiro Sanches, dentro da própria Faculdade, durante uma reunião de alunos.
Tudo isto se passava durante a ditadura fascista de Salazar e da primavera marcelista, da evolução na continuidade de Marcelo Caetano. Tudo isto se passava naquele longo período de obscurantismo, em que o medo era dominante, a polícia política era soberana e tinha um longo braço que a todos chegava, ajudada por um bando de milhares de bufos, os chamados informadores, que sem qualquer controlo e a maior parte das vezes sem qualquer verdade, denunciavam à polícia política o vizinho de que não gostavam, o conhecido que lhes fizera qualquer agravo e muitas vezes os próprios familiares, a troco de uns míseros escudos ou em nome da ideologia em que diziam acreditar, mas que, na verdade, os protegia.
Entretanto começara a guerra colonial em 1961, primeiro em Angola, logo depois em Moçambique e na Guiné. Para ela começaram a partir os oficiais formados nas Academias Militares e até aí sustentáculos do regime e do governo. Mas com eles começaram a partir também milhares de jovens, enquadrados por jovens oficiais milicianos, muitos dos quais conheciam bem no corpo os efeitos das cargas da polícia de choque e muitos deles o terror das prisões políticas. E é muito gratificante estar diante de uma plateia de jovens e estudantes e poder dizer-lhes como foi importante a acção de todos aqueles estudantes que mais formados cultural e politicamente falando e desejosos de transformações sociais e de liberdade, com a sua palavra e acção foram lançando as sementes que permitiram a transformação ideológica dos quadros militares, até aí avessos a politização e pouco dados a pensar sobre a injustiça, as desigualdades sociais e a falta de liberdade.
Parece certo que o Movimento dos Capitães começou por razões corporativas. Os oficiais dos quadros permanentes sentiam-se descontentes, alguns deles com mais de cinco comissões na frente de combate, sem regalias correspondentes e com os olhos mais abertos. Mas também parece certo que, à medida que as reuniões preparatórias se sucediam, se foi tornando evidente que o movimento começava a ter características políticas e aquilo porque passaram a lutar já pouco tinha de corporativo e os valores fundamentais porque lutavam se tornavam cada dia mais evidentes. O Movimento das Forças Armadas passou a ter como finalidade recuperar a liberdade perdida e instaurar a democracia para que todos pudessem ter voz e manifestar as suas opiniões. Foram eles os principais responsáveis por essa grande conquista da Revolução de Abril e que vos permite hoje, a vós, estar e conviver em liberdade, criticar tudo e todos e, assim o espero, aceitar as críticas que vos façam. Mas igualmente responsáveis foram os antigos estudantes integrados nas fileiras como milicianos, que com a sua cultura e formação muito contribuíram para tornar tudo isto possível.
É por isso que ser estudante é importante. Estudar implica aprender, depois de compreender. E só quem compreende e aprende pode ensinar e ajudar os outros que não tiveram essa possibilidade ou apetência. Porque estudam os estudantes? Para ser doutores, advogados ou engenheiros é manifestamente pouco. Para aprofundar os conhecimentos, transmiti-los, pensar nos problemas colectivos e lutar por um mundo melhor, é já bastante mais.
Vinha aqui para vos falar do 25 de Abril e dos seus valores. Mas, penso que o não vou fazer. Do que foi o 25 de Abril, de quem o fez e de como se fez, já vocês o saberão ou já alguém vos terá falado. Dos valores, seguramente que também. Por isso, me dispenso de o fazer eu. Vinha também para vos falar de uma figura ímpar do 25 de Abril que foi Salgueiro Maia e da importância que Santarém teve naquele movimento. Mas, por acrescidas razões, todos saberão quem ele foi e o que fez. Contudo, não deixarei de vos chamar a atenção para o facto de ele ter sido um puro, na verdadeira acepção da palavra. E é da História, que os puros são sempre sacrificados ou se sacrificam. Foi o que ele fez, tendo lutado pela justiça, pela igualdade e pela fraternidade e por isso se viu objecto de perseguições e injustiças que não merecia e pelas quais pôs em risco a vida e a carreira. Não podia deixar de vos chamar a atenção para isto. Porque as nossas acções e a concretização das nossas ideias e dos nossos ideais não deve passar nunca pelas compensações e benesses que normalmente acontecem, mas exclusivamente pela alegria de mudar o mundo e o fazer melhor, não só para nós, mas para todos.
Penso que não vos vou dizer mais nada. Mas coloco-me inteiramente ao vosso dispor para todas as perguntas que me queiram fazer e a que eu possa e saiba responder. Mais uma vez afirmo que só se poderá responder se se souber e só se saberá, se se pensar e se se estudar. Saiba eu responder-vos e queiram vocês perguntar. O tempo e a palavra, a partir de agora, são vossos.

sábado, novembro 19, 2005

à bolina navegámos

Agora, vedes bem que, cometendo
O duvidoso mar num lenho leve,
Por vias nunca usadas, não temendo
De África e Noto a força, a mais se atreve:
Que, havendo tanto já que as partes vendo
Onde o dia é comprido e onde breve,
Inclinam seu propósito e porfia
A ver os berços onde nasce o dia.

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Comendo alegremente, perguntavam,
Pela arábica língua, donde vinham,
Quem eram, de que terra, que buscavam,
Ou que partes do mar corrido tinham.
Os fortes Lusitanos lhe tornavam
As discretas respostas que convinham:
--«Os portugueses somos do Ocidente;
Imos buscando as terras do Oriente.

Pelas vozes dos poetas falam os deuses. E, os deuses quiseram que assim fosse. Ao mar se fizeram os portugueses e pelos cinco cantos da Terra espalharam a língua, a fé e uma forma especial, muito própria de estar no mundo. Os padrões com a cruz de Cristo foram sendo semeados por esse mundo fora, dando assim sinal claro do que pode a vontade de um povo. Ao mar se fizeram os portugueses e assim foram fazendo sua história. Pelos mares andaram e pelos mares foram, naufragando uns, regressando outros.
À bolina navegámos. E, mesmo assim lá chegámos, primeiro a uma terra depois a outra, a mais outra ainda. E as naus, as caravelas se foram progressivamente fazendo ao mais longe e assim fazendo do longe, perto. Agora cinco, logo dez, vinte depois, as caravelas partiam.
A experiência ensina, os olhos vêem, os ouvidos ouvem, a inteligência organiza e assim se foi fazendo o saber de experiência feito.
No Livro das Armadas pode ler-se que «No ano de 1500, partiu Pedro Álvares Cabral para a Índia, em 9 de Março, por capitão de treze velas – naus, navios, caravelas --, das quais, com temporal rijo que lhe deu na travessa do Brasil para o Cabo da Boa Esperança, se perderam quatro; e de todas estes eram capitães:

– Luiz Pires; arribou a Portugal;
– Gaspar de Lemos; de Santa Cruz, terra do Brasil, tornou a Portugal com a nova do descobrimento dela;
– Pêro Dias; com a tormenta foi ter a Mogadixo, junto ao Cabo de Guardafui, e à tornada se encontrou com Pedro Álvares Cabral no Cabo Verde;
– Vasco de Ataíde; perdido com a tormenta;
– Pedro Álvares Cabral;
– Nicolau Coelho;
– Nuno Leitão;
– Simão de Miranda; abalroou na tormenta com Pedro Álvares Cabral, e milagrosamente se
salvaram;
– Aires Gomes da Silva; perdido com a tormenta;
– Simão de Pina; perdido com a tormenta;
– Sancho de Tovar; em tornada para Portugal se perdeu com o vento rijo travessão em um
baixo perto da costa de Melinde, e, depois de toda a gente ser salva, lhe puzeram fogo;
– Bartolomeu Dias; perdido com a tormenta. »

Assim partiram estes capitães, como outros antes deles tinham partido, com suas naus, navios e caravelas, sempre à bolina navegando, e assim, chegando sempre onde o vento os levou. O mesmo vento que quinhentos anos depois lhes marcaria o regresso, como o nosso colega Jorge Vila, na sua Anti-Mensagem, descreveria tão exemplarmente, há escassos dez anos.

Aquelas naus que mandaste
Atafulhadas de heróis
Marcaram rotas vazias
Cinco séculos depois !

O vento, sempre o vento e o imprevisto que comporta.

«Pergunto ao vento que passa,
notícias do meu País;
e o vento cala a desgraça,
o vento nada me diz.»
escreveria o poeta Manuel Alegre, antes da revolução democrática, quando as nossas vozes gritavam, mesmo em silêncio, as palavras belas dos poetas. Por isso nós cantávamos, e cantamos ainda, com nossa voz de bolina, cada vez mais de capa, cada vez menos folgada, outros versos de Manuel Alegre, talvez o nosso Camões do século XX, com seus poemas épicos e grandiosos, mesmo que de misérias feitos.

«Meu pensamento, partiu no vento,
Podem prendê-lo, matá-lo não.
Foi à conquista do novo mundo,
Foi vagabundo, contrabandista,
Foi marinheiro, maltês, ganhão,
Foi prisioneiro, mas servo não.»

Assim partiam os valentes capitães em suas naus de vento, baptizadas com seus nomes de esperança, de fé e de beleza. Esmeralda, Frol del mar, São Gabriel, São Rafael, Julioa, Bate Cabelo, Leitoa-a-Nova, São Jerónimo, Santiago, Conceição, Santa Cruz, Rainha Nova, São Jorge, Santo António, Belém, Botafogo, Santo Espírito, Faia, Virtudes, Santiaguinho, Santo António Grande, São Bartolomeu, Piedade, Corpo Santo, Bom Jesus....
E quem mandava tais destemidos capitães para a aventura do mar, à descoberta do além que ficava para além do que cada um via, sempre e sempre mais além, só vento e água, os corvos e as gaivotas acompanhando.
Quem os mandava? A vontade de um Rei? A loucura de um sonho? A vontade de um povo? A loucura colectiva de um mesmo sonho? O seu destino? Os deuses que lhes sopravam as velas? As ondas mansas da beira Tejo e a serenidade enganosa desse mar de palha? O desafio? A insatisfação? O quê? O quê?
Ou apenas o sentimento que Fernando Pessoa nos quis transmitir na «Mensagem»?

«Ah, seja como fôr, seja para onde fôr, partir !
Largar por aí fora, pelas ondas, pelo perigo, pelo mar.
Ir para Longe, ir para Fora, para a Distância Abstrata,
Indefinidamente, pelas noites misteriosas e fundas,
Levado, como poeira, p’los ventos, p’los vendavais !
Ir, ir, ir, ir de vez !»

Quem poderá responder a isto? Os teóricos das suposições históricas? Os estudiosos honestos de manuscritos, cartas e testemunhos? Quem me garante que a interpretação de cada um não é exclusivamente pessoal, e já preconcebida, para tudo ser como já anteriormente tinham decidido que fôsse? Quem sabe? Apenas coloco a dúvida, não a desconfiança, nem de pessoas, nem de factos. Mas, quem o sabe ao certo? O vento? Aquele que sempre foi soprando, umas vezes mansamente, outras de rajada, enfurecendo o mar, rasgando as velas, carregando em seus braços as caravelas, não para as embalar, mas para as afundar? O que fazia com que os deuses quisessem que o vento assim soprasse? Porque lhe davam uma ajuda, soprando de mansinho, quando o vento estava de proa, a bolina de capa e não podiam navegar? Porquê logo sopravam um pouco mais forte, numa bolina cerrada, um pouco mais de amura e logo folgada, para depois, inesperadamente, soprarem forte, bem de través, de travessão, criando perigo acrescentado, medos, pânicos, esforço desmedido?
Quem dizia aos deuses para que assim fizessem? Umas vezes assim, outras de outro modo, naufragando uns, outros se salvando?
E, quem ensinou os capitães? Qual Escola de Sagres, qual nada, que nunca existiu! Apenas o conhecimento de experiência feito, passado de boca a ouvido, a mão treinada, as estrelas aprendidas, um certa maneira de olhar o sol e mais a lua e mais o astrolábio e o sextante e um poder assumido de representação de um povo que se queria afirmar e que o vai fazer noutras terras, não nas suas, que o faziam envergonhado da sua pequenez. Quem disse pela primeira vez que se chamava bombordo a um lado e estibordo a outro, daquelas casca de noz em que viajavam e comandavam? Quem? Quem? Quem lhes explicou as mareações?
Quem ensinou os carpinteiros a domar a madeira, a moldá-la, a escolhê-la, a construir cascos ousados de proas levantadas, de costados macios ao afagar das águas, os mastros resistentes, suportando velas e forças desmedidas? Quem ensinou as esforçadas mulheres, com suas agulhas e suas paciências a desenharem, a cortarem, a cozerem as velas, as grandes e as de estai, a tornarem-nas resistentes e capazes de enfunarem e assim arrastarem aquelas naus e caravelas, mar adentro? Quem ensinou os outros artífices, os caldeireiros, os ferreiros, os correeiros, os retroseiros, a tratarem do massame e do poleame? Quem os ensinou a fazer estais e brandais e adriças e escotas, garrunchos, esticadores, sapatilhos, manilhas, mordedores e moitões? Quem?
Quem sabia como aparelhar uma nau?
Aquele povo magnífico que Camões cantou

Cessem do sábio grego e do troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandre e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram,
A quem Neptuno e Marte obedeceram;
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
................................................................
E, enquanto eu estes canto, e a vós não posso,
Sublime Rei, que não me atrevo a tanto,
Tomai as rédeas vós do Reino vosso;
Dareis matéria e nunca ouvido canto,
Comecem a sentir o peso grosso
(Que pelo mundo todo faça espanto)
De exércitos e feitos singulares,
De África as terras e do Oriente os mares.
....................................................................

No mar tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra o bicho da terra tão pequeno?

Foi seguramente este magnífico povo que em perigos e guerras esforçados entrou por esses mares dentro, como nos diz Sofia de Mello Breyner Andresen, neste seu belíssimo poema

Vi as águas os cabos vi as ilhas
E o longo baloiçar dos coqueirais
Vi lagunas azuis como safiras
Rápidas aves furtivos animais
Vi prodígios espantos maravilhas
Vi homens nus bailando nos areais
E ouvi o fundo som de suas falas
Que já nenhum de nós entendeu mais
Vi ferros e vi setas e vi lanças
Oiro também à flor das ondas finas
E o diverso fulgor de outros metais
Vi pérolas e conchas e corais
Desertos fontes trémulas campinas
Vi o rosto de Eurydice das neblinas
Vi o frescor das coisas naturais
Só do Preste João não vi sinais

As ordens que levava não cumpri
E assim contando tudo quanto vi
Não sei se tudo errei ou descobri

Como me apetece repetir este final, por me parecer tão real e tão falso, tão lúcido e tão enganoso
As ordens que levava não cumpri
E assim contando tudo quanto vi
Não sei se tudo errei ou descobri

Terá sido por isso que também à bolina regressámos? Terá sido por isso que nos perguntámos, e perguntamos, o que fomos lá fazer? O que construímos e deixámos? O que trouxemos e mantemos? Será por isso que Almeida Faria em «Imagens para Luiz de Camões» escreve

De longe viste tua terra ingrata
que de avião agora olho alto
e pela língua amo ou pouco mais
porquê saudade desta terra que
não nota minha falta nem precisa
de mim para nada nem sequer a língua

escrever na qual é danação porque
ninguém vai ler ou poucos e esses poucos
te leram sabem que não faço falta
.
Ou como mais desanimadamente ainda, escreve Mário Cláudio, na mesma obra

De rastos te enxugo a febre, ó pobre como eu, de tais letras, tais enigmas
As aranhas te singram o peito. Que sextante as enreda em que mar de sargaços?
Nereides, dessas de infaustos bares, te tratam entre um rock e uma cerveja.
É o Tejo de luz e de lodo. Que olhar o avista? Qual a vista?
«Morrer de puro triste» -- julgavas -- «que maior contentamento?»
Era quando pela ribeira os maçaricos te dormiam nos braços, rosas doutros múltiplos ventos.
Que a terra te seja leve, que nem a sintas. Que terra para a chama?
Esferas armilares?
Só que nunca pude soletrar-te o nome.

Que tristeza, que dor, a de um povo tanto fazer para nada ter. Tudo porque à bolina navegámos e fomos até onde o vento nos levou, apenas porque ele nos levou? Ou fomos pela vontade de um povo, pelo sonho de um rei? Se foi a vontade de um povo porque não a cumprimos? Se foi um sonho de Rei, porquê a cumprimos? A vontade, e também o sonho de um povo?
Se assim foi, talvez Manuel Alegre tenha razão quando escreveu, desta forma tão bela, que essa vontade e esse sonho se mantêm

Dai-nos de novo o astrolábio
e o Quadrante
Velas ao vento venha a partida
Há sempre um Bojador perto
e distante
Nosso destino é navegar
para diante
Dobrar o cabo dobrar a vida
Dai-nos de novo a rosa
e o compasso
A carta a bússola o roteiro
a esfera
Algures dentro de nós
há outro espaço
Chegaremos ainda a outro lado
Lá onde só se espera
O inesperado.

E, que o inesperado seja a certeza de que tudo valeu a pena, porque a alma não era, de facto, pequena e esta língua, esta Pátria nossa, como também Fernando Pessoa disse, estabeleceu a ponte que tudo une, ponto a ponto, terra a terra onde os portugueses passaram, com suas naus e seus cabelos de vento, onde levantaram padrões, não ao poder, nem à posse, mas ao amor e à fraternidade, à memória colectiva dum povo de raças várias unidas pelo cimento comum da língua que falamos.
O que é que fazemos nós aqui, neste momento, neste local? Não são nossas mãos dadas, nosso pensamento comum, nossa relação fraterna, a prova provada de que tudo valeu a pena? E nós, que somos vós e nós, podemos sentir-nos particularmente orgulhosos do nosso sentir comum, e da nossa lúcida antecipação à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Em boa hora fundamos a UMEAL, bandeira honesta daquilo que nos une, casa mãe de nossos sonhos e sentires. Não somos mais colegas, confrades, camaradas, amigos. Somos isso e mais do que isso. Somos irmãos de sangue de nossa mãe comum, a língua portuguesa.
Mas, continuamos a navegar à bolina, mais nós do que vós. Talvez ainda não tivéssemos conseguido despir-nos da pele antiga que um povo supostamente conquistador e colonizador pensou ser a sua e que nunca, em verdade, vestiu, nem em si nem nos outros, e que mais não era, só e apenas, do que a ideia dela. Será que essa pele se escreve com as palavras fado e saudade? O que nos terá levado a não acreditar em nós? Para que serviram as palavras de Vieira e a sua ideia do V Império?
Um bom amigo meu, e suponho que vosso, pois por aqui viveu anos e anos, ensinando e aprendendo, como ele dizia, e que infelizmente nos deixou, vão três anos feitos, Agostinho da Silva, o filósofo, aquele que entendia que o bom professor não é aquele que ensina muito aos alunos, mas aquele a quem os alunos ensinam muito, tomou nas mãos essas palavras de Vieira e delas fez estandarte. E teria sido só ele ou todos aqueles que ele iluminou com as suas dúvidas permanentes? Bem ele me ensinava que estavam profundamente errados todos aqueles que pensavam que a ideia do V Império nada mais era do que a ideia que Vieira tinha de que Portugal devia mandar no mundo. Nada mais falso. O que António Vieira queria significar com a sua ideia do V Império era dizer às pessoas que outro mundo se aproximava ou tinha de ser construído e que seria o Império da criatividade. E que depois dele não haveria necessidade de mais nenhum, porque este não seria destruído como o tinham sido os anteriores, a crer no que está escrito na Bíblia, no Livro de Daniel.
Não acredito no V Império, mas acredito na criatividade e na sua força imparável. Não concordo com tudo que Agostinho da Silva escrevia ou defendia em relação a esse novo mundo, mas concordo, em absoluto, quando ele dizia «Que há sempre alguma coisa a fazer por cada um de nós. Que temos que perceber que é preciso participarmos, dos outros, com os outros e para os outros. Que é imperativo concorrermos, todos juntos, para criar uma Humanidade plenamente livre de ser criadora. Que ninguém devia deixar de ser criança, mantendo assim, a vida inteira, o mesmo gosto poético, a mesma inocência, a mesma alegria, as mesmas profundidade e atracção com que uma criança brinca e, assim brincando, aprende. Tudo que a vida traz é uma experiência que devemos fazer até ao fim, ver o que é que dá».
Sinto que é um pouco isso o que nós todos, juntos e aqui, estamos a fazer. A manter uma chama viva da nossa ideia criadora inicial e iniciática. Daquela experiência que tem atravessado nossos caminhos e que devemos manter até aos nossos fins, mantendo sempre a alegria e a pureza que desde o primeiro dia reclamamos.
É verdade que à bolina navegámos, então e agora. É verdade que Adamastores vários atravessam e atravessarão nossos caminhos. É verdade que por vezes, muitas vezes, o vento sopra forte e rasga as velas de nossas vidas inseguras e frágeis. Mas, nada rasgará nossos sonhos e nossos pensamentos.
Agora aqui, amanhã acolá, procuraremos com total comunhão de vontades manter vivos nossos ideais, nossos sonhos, nossas vidas limpas e estruturadas. Hoje estamos aqui, para o ano em Lisboa, durante a maior demonstração do que pode a vontade de um povo, quando mete ombros a uma obra, mesmo que à bolina. Antes foram os Descobrimentos. Agora será a memória deles, através dos oceanos. A Expo 98 será a mais participada exposição internacional de sempre. Mais de 130 Países já confirmaram a sua presença com seus Pavilhões. Mas não será isso, por certo, o que vos levará até Lisboa. Poderá ser também isso, mas primeiramente estará tudo aquilo que nos une para sempre, irmãos. E, não esqueçamos que

«Não há machado que corte
A raiz ao pensamento
Porque é livre como o vento
Porque é livre.»