quarta-feira, julho 26, 2006

E, se eu vos contasse? – 15.º programa – a fundação da cruz vermelha portuguesa

Nos tempos antigos, era regra que o vencedor matasse os inimigos feridos e, se alguma vez os poupava, era apenas para os exibir como trofeus e prisioneiros de guerra e depois utilizá-los como escravos. Mas, mesmo nesses tempos, havia excepções e sabe-se, por exemplo, que Cirus, rei dos persas, que dispunha de bons médicos no seu exército, ordenava-lhes que tratassem os caldeus feridos e feitos prisioneiros, de igual modo que tratavam os seus soldados. Os hindus tinham uma lei, chamada Manou, que já alguns séculos antes de Cristo, proibia a condenação à morte dos inimigos desarmados, adormecidos ou feridos.
Mas a primeira grande tentativa de modificar o que até aí era norma, veio da parte do sultão Saladino que, nos fins do século XII, tentou conseguir que os feridos de guerra fossem considerados neutrais; durante a guerra que nesse tempo mantinha contra os Cavaleiros da Ordem de São João Hospitaleiro, o inimigo da altura, acordou com eles a permissão de virem cuidar dos seus feridos no campo do inimigo.
Ao longo dos tempos foram aparecendo tentativas várias de resolver o problema. Jean-Jacques Rousseau, no seu «Contracto Social», escrevia em 1762 que a «guerra não é um conflito entre pessoas, mas entre estados; os combatentes só são inimigos na sua qualidade de soldados e não na de homens, pelo que desde que deponham as armas deixam de ser inimigos».
Mas, o grande passo iniciou-se apenas no século XIX, pela mão de Jean Henry Dunant, que nasceu em Genebra no dia 8 de Maio de 1828, nascido no seio de uma família próspera, respeitada e preocupada com os problemas sociais e o bem estar da comunidade.

Dunant, desde tenra idade, foi imbuído pelo espírito caritativo dos seus progenitores. Iniciou, em 1853, a sua carreira profissional como banqueiro. Posteriormente, investe todos os seus bens na Argélia, colónia francesa, em moinhos de milho. Uma viagem de negócios, com vista a obter de Napoleão III, Imperador de França, autorização para a sua empresa explorar as quedas de água necessárias ao movimento dos seus moinhos, torna-o testemunha de uma sangrenta batalha entre os exércitos austríaco, francês e italiano.
A visão deste campo de batalha, conhecido por Batalha de Solferino, juncado de milhares de mortos sem sepultura e feridos padecendo de atrozes sofrimentos e entregues ao mais completo abandono, sensibilizou Dunant. Tocado por uma imensa piedade, organiza, de imediato, numa das Igrejas de Castiglione, um hospital prestando socorros voluntários com o apoio dos habitantes. «Como irmãos», dizia ele, é que se deviam tratar uns e outros.


Tão impressionado ficou que resolveu escrever um livro sobre essa experiência, que intitulou «Souvenir de Solferino». A divulgação deste livro foi importante pois deu a conhecer a muita gente a crueldade da guerra que até aí a desconhecia, levando assim essa gente a pensar nos pobres soldados feridos na guerra. Dunant nunca mais descansou até que em Fevereiro de 1863, quatro cidadãos se juntaram a Dunant para levar a cabo um projecto de constituição do "Comité Internacional de Socorro a Feridos", que, mais tarde, viria a ser designado "Comité Internacional da Cruz Vermelha". Em resposta ao convite do Comité, especialistas de 16 países reuniram-se em Genebra, em Outubro de 1863, para adoptar as 10 Resoluções que formaram a Carta da Cruz Vermelha. Estavam, pois, definidas as funções e os métodos de trabalho para socorro a feridos. A partir desse momento, a Cruz Vermelha tornou-se uma realidade.
A Conferência Diplomática de 1864, celebrada em Genebra, contando com a presença de 36 delegados de 16 países e a representação oficial de 14 governos, dá lugar ao nascimento do Direito Internacional Humanitário, com a assinatura da I Convenção de Genebra.

Esta Convenção supõe a materialização de um marco jurídico, dentro do qual se podia desenvolver uma acção efectiva de socorro aos feridos. As instalações médicas militares, os veículos e o pessoal sanitário, deviam ser considerados neutros e, deste modo, protegidos, embora com a relutância dos chefes militares que não viam com bons olhos, o importante papel desempenhado pelos civis na organização do serviço de saúde militar. Na primeira página da Convenção de Genebra de 22 de Agosto de 1864, entre outros reis de países europeus, figura o de Sua Majestade o Rei de Portugal e dos Algarves, como um dos fundadores da Convenção, para melhorar a sorte dos militares feridos em campanha. Foi criado o símbolo da Cruz Vermelha, invertendo a bandeira da Suíça, como homenagem ao país onde ela se fundou. Por outro lado e, de certo modo, era a representação do símbolo da caridade usado pelos Pais da Boa Cruz, de Santo Camilo de Lellis. Este símbolo passou também a significar, quando usado como braçadeira, que o portador era enfermeiro voluntário.
A Convenção tinha 10 artigos, que se podem resumir assim – neutralidade das enfermarias, hospitais, ambulâncias e seu pessoal, cuidados e protecção dos feridos de ambas as partes, a dar pelos habitantes da região onde a guerra se desenrolasse, reenvio para casa dos soldados feridos que ficassem inválidos após a sua cura, protecção dos hospitais, enfermarias, depósitos de material e pessoal de saúde, tudo sob a insígnia da Cruz Vermelha. O artigo 9º, destinava-se aos países que não tinham estado presentes, exortando-os a aderirem e a assinarem a Convenção.
A dedicação ao trabalho humanitário em que se envolvera fê-lo descuidar os seus negócios. Abre falência e perde a sua respeitável posição de cidadão de Genebra. Caído em desgraça na sua cidade natal, exila-se em Paris, onde, conservando a fé nos seus ideais, luta, com todas as suas forças, por causas nobres, muitas das quais vingarão anos após a sua morte.
Esquecido, pobre e enfermo é internado num hospital em Heiden, Suiça, onde permanece nos restantes dezoito anos da sua vida. A sua solidão só é quebrada, em 1895, com a visita, ocasional, de um jornalista – Baumberger que, emocionado com a sua história, publica um artigo que altera a atitude do mundo para com Dunant e lhe dá um novo alento, ajudando-o a esquecer a humilhação que sofrera.
Em 1901, reconhecendo-se o seu valor, é agraciado com o primeiro Prémio Nobel da Paz. À data da sua morte, 30 de Outubro de 1910, então com oitenta e dois anos de idade, o prémio estava intacto e destinado, por testamento, ao pagamento das suas dívidas e a obras filantrópicas.
A sangrenta batalha ocorrida, em 1859, em Solferino e o manuscrito de Jean Henry Dunant originaram o nascimento de um movimento humanitário que se estendeu a todos os cantos da terra - A Cruz Vermelha e o Crescente Vermelho.
Em sua homenagem, o dia do seu nascimento é comemorado em todo o mundo como o Dia Mundial da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho.


Ao congresso de 22 de Agosto de 1864, esteve presente, como representante de Portugal, o cirurgião militar José António Marques, que no seu regresso a Portugal, iniciou todas os contactos necessários à constituição em Portugal, da Comissão Portuguesa de Socorro a Feridos e Doentes Militares em Tempo de Guerra.

Formou uma comissão organizadora, que reuniu logo em 11 de Fevereiro de 1865, para discussão dos estatutos. Estes só viriam a ser aprovados, por decreto, em 26 de Maio de 1868. Para além de José António Marques, constituíam essa comissão, mais dois médicos militares, João José de Simas e Bernardino António Gomes e vários civis como o Barão de Wiederhold, Augusto Xavier Palmeirim, António Maria Barbosa e Carlos Cyrilo Machado.
Em 1877, esta comissão foi reformulada, dando lugar à Sociedade Portuguesa da Cruz Vermelha, com estatutos aprovados em 4 de Maio desse ano. Entraram mais sete médicos militares, de que destaco Guilherme José Enes e António da Cunha Belém, dois prestigiados médicos daquele tempo. Foi seu primeiro secretário geral, José António Marques, sendo presidente o General Augusto Xavier Palmeirim. Como protectores o rei D. Luís I, a rainha D. Maria Pia e o rei D. Fernando e vários presidentes honorários, quase todos fidalgos da melhor estirpe.
Para além da sua acção na guerra, a Cruz Vermelha alargou a sua actividade ao tempo de paz, nomeadamente nas reformas higiénicas, na acção social e nas catástrofes naturais, correio, serviço de desaparecidos, campos de prisioneiros, etc...
Nos estatutos da Cruz Vermelha portuguesa, pode ler-se que é sua missão «vulgarizar por meio do ensino e do exercício, o conhecimento dos socorros ministrantes a prestar no caso de todos os desastres, de maneira que esse ensino aproveite, não só ao pessoal de enfermeiros para o serviço de campanha, como também aos agentes de polícia, bombeiros, marítimos, etc...»
Hoje, a Cruz Vermelha está em todo o mundo. Para além do seu símbolo inicial, adoptou outros em função dos credos religiosos e das etnias, como o crescente vermelho, a estrela de David ou o novo cristal Cristal Vermelho.
São regras básicas da Cruz Vermelha:

Os ataques têm de ser limitados aos combatentes
e aos objectivos militares.
Os
civis não podem ser alvo de ataques;
As estruturas civis não podem ser atacadas (casas, escolas, hospitais, igrejas, monumentos históricos);
É proibido utilizar civis para proteger
objectivos militares;
É proibido aos
combatentes disfarçarem-se de civis;
É proibido utilizar a fome nos civis como método de combate;
É proibido atacar os objectos indispensáveis à sobrevivência da população civil (alimentos, terrenos para cultivo, água potável);
É proibido atacar barragens, centrais nucleares e diques se tais ataques causarem baixas entre a população civil.
São proibidos ataques ou armas que atinjam indiscriminadamente pessoas e
objectos civis e militares causando sofrimento excessivo.
São proibidas armas específicas - químicas, biológicas, laser e anti-pessoais que causem cegueira, feridas por fragmentos não detectáveis a raios X, envenenamentos, etc;
É proibido ameaçar a sobrevivência das populações.
Civis, combatentes, feridos e presos têm de ser poupados e tratados humanamente.
Ninguém pode ser sujeito a tortura física ou mental, punição corporal ou tratamento cruel ou degradante;
É proibida a violência sexual;
As partes do conflito têm que assistir e tratar os inimigos feridos e doentes que estão em seu poder;
É proibido matar ou ferir um inimigo que se esteja a render ou
fora de combate;
Os presos têm direito ao respeito e têm que ser tratados de maneira humana;
É proibido fazer reféns;
É proibido obrigar a população civil a deslocar-se;
A chamada "limpeza étnica" está proibida;
As pessoas nas mãos do inimigo têm a possibilidade de trocar mensagens com as suas famílias e de receber assistência humanitária (alimentos, cuidados médicos, assistência psicológica, etc.);
Grupos vulneráveis, como mulheres grávidas e mães que amamentam, crianças não acompanhadas, velhos, etc., têm que receber uma protecção especial;
As crianças com menos de 15 anos não podem ser recrutadas como
combatentes;
Todos têm direito a um processo justo (tribunal imparcial, procedimento regular, etc.). A punição colectiva está proibida.
O pessoal médico e as estruturas sanitárias (hospitais, clínicas, ambulâncias, etc.) têm que ser respeitadas e protegidas, recebendo toda a ajuda possível para a realização das suas missões.
O emblema da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho simboliza a protecção do pessoal médico e das instalações. Ataques a pessoas ou objectos mostrando o emblema são proibidos.
É também proibido utilizar o emblema indevidamente; unidades médicas e transportes não podem ser utilizados para perpetrar actos ofensivos contra o inimigo.
A prioridade no tratamento do ferido ou do doente obedece unicamente a regras médicas.

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