sexta-feira, outubro 02, 2009

o vinho e o mosto - um exercício de intertextualidade 24


85.

Reparando, às vezes, no trabalho literário abundante ou, pelo menos, feito de coisas extensas e completas de tantas criaturas que ou conheço ou de quem sei, sinto em mim uma inveja incerta, uma admiração desprezante, um misto incoerente de sentimentos mistos.
Fazer qualquer coisa completa, inteira, seja boa ou má – e, se nunca é inteiramente boa, muitas vezes não é inteiramente má -, sim, fazer uma coisa completa causa-me, talvez, mais inveja do que outro qualquer sentimento. É como um filho: é imperfeita como todo o ente humano, mas é nossa como os filhos são.
E eu, cujo espírito de crítica própria me não permite senão que veja os defeitos, as falhas, eu, que não ouso escrever mais que trechos, bocados, excertos do inexistente, eu mesmo, no pouco que escrevo, sou imperfeito também. Mais valera, pois, ou a obra completa, ainda que má, que em todo o caso é obra; ou a ausência de palavras, o silêncio inteiro da alma que se reconhece incapaz de agir.

Bernardo Soares, Livro do Desassossego



Sem ter pensado alguma vez nisso, dei comigo nos últimos anos a fazer obra completa ou a tentar fazê-la. Desviei-me do caminho que estava a percorrer, no que respeita à escrita, e atirei-me, é o termo justo, à obra, melhor dizendo – às obras completas. Imaginei-as, preparei-as, investigando e escrevi-as o que melhor que sabia ou pude. Estão feitas e publicadas. E, agora? Que penso eu delas? São o que queria? São completas? Posso orgulhar-me delas? Sei que não são inteiramente boas, mas também sei que, realmente, não são inteiramente más. Mas para que serve uma obra que não é inteiramente má? A quem, se nem a mim? O que poderia ter feito de bom com o tempo, o esforço que nelas investi? Teria conseguido outra coisa completa? Inteiramente boa? Não o problema não está no tamanho do que se faz, no tipo de coisa que se faz. O problema está na verdade, na autenticidade com que se faz, na autenticidade do que se faz. Não, também não seria pelo silêncio que eu iria ou poderia ir. Porque não tendo como tu, Bernardo, um sentido crítico que me deixe ver apenas os defeitos, as falhas, dou comigo a achar, vezes de mais, que o que escrevo, breve ou extenso, ligeiro ou profundo, não só não é inteiramente mau, como, por vezes me parece quase bom, com a lucidez suficiente para saber que bom, com a força dessas três letras, não o é. Raras vezes o é, mesmo quando a escrita é de outros. Costumo pensar que a leviandade com que às vezes escrevo é fruto da imperiosa necessidade de o fazer. Como então respeitar o silêncio inteiro da alma, para que apontas?

CVR
Justificar completamente

1 comentário:

msg disse...

Doutor Carlos Vieira Reis

Desculpe o atrevimento.
A propósito de obras que "não são inteiramente boas,mas também não são inteiramente más",fui encontrar obras suas nos catálogos da nossa Biblioteca Nacional,da Library of Congress,USA,da Biblioteca Nacional do Canadá,no Summit Catalog.
Para terminar,não sei um ror de coisas,em que se inclui o que é uma obra completa.
Mais uma vez,as minhas muitas desculpas pelo atrevimento, por ter saído do silêncio.
Muito boa saúde,Doutor.