quinta-feira, julho 15, 2010

o vinho e o mosto - um exercício de intertextualidade 31


116.
Escrever é esquecer. A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida. A música embala, as artes visuais animam, as artes vivas (como a dança e o representar) entretêm. A primeira, porém, afasta-se da vida por fazer dela um sono; as segundas, contudo, não se afastam da vida - umas porque usam de fórmulas visíveis e portanto vitais, outras porque vivem da mesma vida humana.
Não é esse o caso da literatura. Essa simula a vida. Um romance é uma história do que nunca foi e um drama é um romance dado sem narrativa. Um poema é a expressão de ideias ou de sentimentos em linguagem que ninguém emprega, pois que ninguém fala em verso.

Bernardo Soares, Livro do Desassossego (Assírio e Alvim, 1998)


Se é verdade que os escritores escrevem sempre o mesmo livro e os romances que escrevem têm sempre qualquer coisa de autobiográfico, talvez possamos concluir que eles não escrevem senão a vida, seja ela a que viveram, a que quiseram viver ou a que imaginaram. E se for assim, não será como Pessoa dizia que escrever é esquecer, mas sim que escrever é lembrar. E a literatura não será nunca a maneira mais agradável de ignorar a vida, mas a melhor forma de a lembrar.
Diz Pessoa que a literatura simula a vida. E o que fazemos nós dela, quando a vivemos? Quando simulamos mais? Quando a vivemos ou quando a escrevemos? A literatura tem uma grande vantagem – podemos simular o que queremos e não simular a realidade que nos enfrenta.


CVR

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