quinta-feira, outubro 14, 2010

uma verdade difícil de engolir


Desde os últimos tempos do Expresso e depois no Sol, são inúmeras as vezes que não tenho concordado com as opiniões de José António Saraiva. Mas neste seu texto que intitulou Crise Nacional, concordo com tudo que ali escreveu. É um texto bastante realista, embora quase fúnebre, derrotista, mas verdadeiro. Sabemos que irá ser assim, mas recusa-mo-nos a acreditar. Talvez seja melhor que não deixemos de pensar nisso e acautelemos o nosso futuro e o do país. E por assim pensar aqui o transcrevo para conhecimento de quem o não tenha lido.

Crise nacional

Creio que a maioria das pessoas ainda não percebeu bem esta crise – e os economistas não estão a saber explicá-la com clareza. É verdade, como se tem dito, que há uma ‘crise nacional’ e uma ‘crise internacional’. Mas, depois desta evidência, a confusão que por aí vai é enorme.
Comecemos pela crise portuguesa.
Trata-se de uma crise profundíssima, potenciada por três factos capitais: o fim do Império, a passagem da ditadura à democracia e a entrada na União Europeia. Tudo isso, que se pensava vir a ter um efeito benéfico na economia, produziu de facto consequências devastadoras. O fim do Império limitou-nos o espaço vital, cerceou-nos matérias-primas e mercados, diminuiu-nos política e psicologicamente. A passagem da ditadura à democracia (com o seu rosário de greves, nacionalizações, perseguições, saneamentos, reivindicações laborais insustentáveis, etc.) destruiu boa parte do nosso tecido económico.
A entrada na União Europeia e a abolição das fronteiras pôs-nos em confronto com economias muito mais avançadas, acabando de liquidar o que restava da nossa débil capacidade produtiva.
A crise internacional é de outra natureza.
Ela decorre da globalização e tem duas vertentes. Por um lado, os produtos feitos no Ocidente começam a não ter condições para competir a nível global com outros produzidos em países (China, Índia, Coreia, etc.) onde os salários e as regalias laborais são muitíssimo inferiores. Por outro lado, as empresas tendem a transferir cada vez mais as suas fábricas e serviços de Ocidente para Oriente – o que significa que no Ocidente vai aumentar o desemprego e no Oriente vai acentuar-se a procura de mão-de-obra. E, em consequência disso, no Ocidente baixarão os salários, acabarão muitas regalias sociais, numa palavra, será posto radicalmente em causa o tipo de vida que se fez nos últimos 50 anos. No Oriente, pelo contrário, os salários tenderão a subir e o nível de vida crescerá.
Assim, a crise que hoje se vive no Ocidente é de natureza diferente das anteriores.
Antes, eram crises de crescimento do capitalismo dentro da sua área geográfica; agora, a crise tem a ver com a globalização do capitalismo. Repare-se que grande parte do planeta, que até pouco vivia fora do sistema capitalista, aderiu à sociedade de mercado: basta pensar nas adesões quase simultâneas da Rússia e da China para se ter uma ideia do abrupto alargamento da área do capitalismo nos últimos anos. Os grandes grupos multinacionais, que antes estavam limitados a um determinado espaço territorial, hoje têm o planeta inteiro para instalar os seus centros de produção – podendo procurar os salários mais baixos, as melhores ofertas de mão-de-obra, as menores regalias dos trabalhadores.
O planeta tornou-se um sistema de vasos comunicantes – onde, para uns viverem melhor, outros vão ter de viver pior. Para certas regiões subirem o nível de vida, outras vão necessariamente perder privilégios.
Perante isto, perguntará o leitor: o que poderemos fazer para inverter o estado das coisas?
Basicamente, não há nada a fazer.
Os factores que potenciaram a crise nacional são irreversíveis – e a globalização não vai andar para trás.
Assim, vamos ter de nos adaptar à nova situação, o que significa de uma maneira simples trabalhar mais e ganhar menos. Os salários vão baixar (lenta ou abruptamente) entre 10 e 30%, os horários de trabalho vão aumentar (com a abolição total das horas extraordinárias), o 13.º e 14.º meses vão ficar em causa, a idade da reforma também vai ser ampliada (para perto dos 70 anos), o rendimento mínimo garantido vai regredir drasticamente, o subsídio de desemprego também vai diminuir, a acumulação de reformas vai ser limitadíssima. Muitas ‘conquistas dos trabalhadores’ na Europa, obtidas no pós-guerra, vão regredir. As leis laborais vão ter de ser flexibilizadas. O sistema de saúde não vai poder continuar a gastar o que tem gasto.
Preparem-se, porque não vale a pena protestar.
O que não tem remédio, remediado está.
Dizia há dias, com graça, Ernâni Lopes, a propósito do subsídio de férias: «Se dissessem a um americano: ‘Para o mês que vem não trabalhas e ganhas dois ordenados’, ele não acreditava».
Pois há muitos anos é esta a situação: não trabalhamos nas férias e recebemos o dobro.

Isto vai acabar.

José António Saraiva

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